Como gamers mentem para você: o número de jogadores simultâneos de Avowed

A imagem é um gráfico mostrando o número de jogadores simultâneos na Steam de Avowed que gamers estão usando para "provar" que o jogo é um fracaso de vendas

Já tem uns dias que venho pensando em como falar de Avowed no blog. Não com uma análise do jogo, afinal as chances de eu jogar qualquer coisa durante o seu lançamento são próximas de nulas. Mas, por se tratar de um BO da Semana, vocês podem assumir que o jogo se envolveu numa polêmica. Ou melhor, FOI ENVOLVIDO numa polêmica. Essa é uma pedra que já cantei no Backlogger meses atrás e reparo há alguns anos. Fica cada vez mais difícil de se ter um lançamento sem que ocorra uma treta ao seu redor. Não por causa do estúdio ou qualquer pessoa envolvida na produção. Apenas por causa da atual conjuntura da comunidade gamer e nichos de cultura pop como um todo.

Avowed cometeu um pecado capital gamer ao permitir que os jogadores escolham os FUCKING PRONOUNS dos seus personagens, o que inclui os infames pronomes neutros. Além disso, tem FUCKING GENDER AMBIGUITY porque existem outros personagens não-binários no jogo. Logo o gamer – e vocês sabem qual tipo de gamer – com base nessa única informação já fechou o diagnóstico que conclui que Avowed só pode ser um jogo muito ruim e, mais do que isso, um flop.

*sigh*

Lá vamos nós de novo!

Antes de irmos mais a fundo, acho bom deixar claro a minha posição aqui caso ela já não tenha ficado bem explícita e episódios passados. A maior parte das pessoas que vejo reclamando de pronome neutro só estão fazendo tempestade em copo d’água, se apoiando num discurso raso de linguística para dar um verniz intelectual ao seu “posicionamento” e que no fundo só querem subterfúgios para ser transfóbico nos meios digitais e sociais. Essa galera não se importa de verdade com a língua portuguesa, só querem aproveitar do pânico moral para seus próprios interesses políticos e ideológicos ou então dar vazão aos seus preconceitos mais latentes.

Num mundo ideal apenas apontar para o reacionarismo escondido por trás da fala dessas pessoas deveria ser o bastante. Ou então fazer um memizinho besta e publicar num subreddit do qual vocês fazem parte.

Eu quero royalties!!!

Porém não estamos num mundo ideal, estamos? Xingar ou debochar dessa gente dá até uma satisfação momentânea e admito que eu gosto da sensação. Só que isso não vai pará-los. Pelo contrário, vai até dar mais combustível para eles, alimentando suas paranoias sobre a degeneração iminente da nossa sociedade. Porque se precisar agir com desonestidade, eles não têm problema algum com isso. Eles conseguem até usar o tão temido identitarismo quando isso lhes convém. Porque eles precisam se convencer que estão do lado certo da guerra cultural que eles mesmos fomentam e, mais do que isso, convencer você a vir para trincheira deles. Ou no mínimo ficar longe do campo de batalha porque é menos chance de você cair para o lado oposto.

Isso nos traz a ideia desse texto.

Aproveitando essa situação com Avowed, decidi iniciar uma série no blog: Como gamers mentem para você. Tenho já algumas ideias para outros textos que irei escrever quando achar mais pertinente. O objetivo está bem explícito, serão artigos para desmentir alguns dos discursos que vejo pipocar na comunidade gamer. Claro que eu não estou falando dela como um todo, não levem a generalização do título tão ao pé da letra. Aqui eu me refiro a um séquito específico de gamers que gostam muito de assistir os vídeos de canais alaranjados e ex-canais esverdeados. Não tenho qualquer pretensão de desradicalizar ninguém dessa audiência, pois tenho consciência dos limites das minhas habilidades de persuasão e retórica. Estou aqui para falar com você, aquele que está no meio do fogo-cruzado sem entender direito o que está acontecendo.

Conversando com uma amiga ludóloga, Coral, sobre esse tema ela comentou comigo que apenas ridicularizar esse povo não é efetivo. É necessário também desmontar as suas narrativas e os artifícios que eles usam para enganar gente mais desavisada. Este então será meu objetivo daqui para frente com vocês. Eu vejo que parte dessa turma anti-woke age mais por ignorância porque caíram nesse buraco reacionário e não sabem como sair. Alguns talvez nem queiram sair. Porém também tem gente que age na má-fé, sabendo muito bem o que está fazendo e é o papinho desses que eu quero contrapor.

Então vamos lá, o que aconteceu especificamente com Avowed, o mais recente jogo da Obsidian Entertainment? Nada de muito novo que já não tenha conhecido no passado como Starfield. O jogo tem pronomes, pronomes neutros, e o gamer não gosta disso. Aí você salpica aqui os temos de sempre, representatividade forçada, lacração, agenda woke, etc. O que tem de especial nesse caso – e também nem é tão especial assim porque o mesmo rolou com Dragon Age: The Veilguard – é uma “arma” que vem sendo usada com mais frequência nesse contexto de guerra cultural gamer: o número de jogadores simultâneos na Steam.

Não deu dois dias do lançamento oficial de Avowed e eu já esbarrei com pessoas trazendo prints desses sites que trazem métricas sobre a Steam. Junto das imagens vem sempre uma narrativa requentada de como que o número de jogadores simultâneos indicavam que o jogo estava mal das pernas. Apenas dois dias depois do lançamento oficial. E por que estão fazendo isso?

Queria explorar esse tema no seu próprio texto usando Baldur’s Gate 3 de exemplo, contudo é importante trazê-lo agora para ilustrar a raiz da questão. Uma parte importante do discurso sobre o bicho-papão da cultura woke é que ela afeta não só a qualidade, mas também a venda dos jogos. Isso vem lá de trás quando importaram essa pauta americana que estava muito presente no cinema. Vocês já devem ter ouvido o mantra em algum momento, “go woke, go broke” ou o seu equivalente brasileiro de “quem lacra não lucra”. Logo não basta para essa galera que a obra seja vista como ruim, até porque eles perdem devido o caráter subjetivo da arte. Por outro lado, o lucro é mais tangível e é onde as pessoas sentem mais.

Só que no contexto dos vídeo games a gente se esbarra num pequeno problema, porque ainda é muito complicado rastrear o número de vendas de jogos. E não, o VGChartz não é exato e nem confiável para tal. Ainda dependemos das próprias empresas divulgarem seus números, algo que demora para acontecer. Portanto os gamers precisam achar algum método de inferir essa informação, principalmente se parecer que ela corrobora com a narrativa que já criaram sobre o jogo.

Nesse cenário temos sites Steam Charts ou o SteamDB. Esses sites se conectam a uma Web API da Steam que os permite utilizar dados que a empresa coleta na sua plataforma. São boas ferramentas para criadores de conteúdo, pesquisadores e até desenvolvedores estudarem tendências, perfis de consumo, etc. Um dos recursos é o número de jogadores simultâneos que na teoria é só mais uma métrica inocente disponível para o público. Infelizmente, na prática, virou mais uma ferramenta para quem faz guerra cultural na internet.

Não sei afirmar quando isso começou, porém eu vejo que esse dado ganhou mais proeminência em 2024 depois de dois lançamentos desastrosos: Concord e Suicide Squad: Kill the Justice League. Concord foi um dos jogos que praticamente todo dia alguém publicava um print mostrando o número baixíssimo de jogadores simultâneos nos dias que seguiram o seu lançamento. Se eu não me engano era coisa de menos de 700 jogadores. Isso no dia de lançamento! Um número que ficava ainda pior quando comparado ao sucesso que o coop Helldivers 2 fazia naquele período. Desde então eu tenho visto mais e mais gamers se valendo dessa métrica para cravar que algum jogo é um flop. Foi o mesmo de meses atrás com Dragon Age: The Veilguard e agora está sendo o mesmo com Avowed.

No lado esquerdo da imagem há um personagem do jogo Concord, na direita um gráfico de curva mostrando o número de jogadores simultâneos que o jogo teve no dia de lançamento
E assim começou a nossa desgraça

A lógica é simples, pega jogo A, pega jogo B, olhas os dados, mostra que dados de A > dados de B e assim, logicamente, B é flop. Às vezes precisa nem comparar, é só pegar o print sem qualquer contexto e dizer que aqueles números significam que o jogo flopou. A minha opinião sobre quem faz esse tipo de “análise” vocês já devem saber, então vou poupá-los dos xingamentos e explicar o porquê. Na verdade, os porquês. São vários os motivos que indicam como essa métrica é muito mal empregada e não me impressiona que pessoas habituadas a fazer pânico moral semana sim e semana também a utilizem tanto.

Primeiro precisamos entender que vídeo game não é igual cinema (ainda que alguns títulos parecem querer ser mais filme do que jogo). Falo isso no contexto das vendas/lucro. No cinema é óbvio como a quantidade de bilheteria arrecadada na estreia e na primeira semana é fundamental para os estúdios medirem o sucesso do filme. É um produto cultural que vai ficar em circulação por um tempo limitado até ser relançado como mídia física ou nos streamings. Logo, ele de fato precisa gerar retorno a curto-prazo. Porém vídeo games não funcionam na mesma lógica.

Minecraft, lançado em 2011, atualmente é o jogo mais vendido da história. A última vez que consultei a informação era algo em torno de 300 milhões de cópias vendidas. Mas a maior parte delas não aconteceu no primeiro, nem no segundo e nem no terceiro ano após o seu lançamento. De 2019 para cá foram cerca de 120 milhões de cópias vendidas, 40% do total. Claro que esse volume de vendas não vai acontecer com todos os jogos, porém nos mostra vídeo game não é uma mídia que precisa gerar muito lucro num espaço curto de tempo pois continua a vender no longo prazo. Ainda mais quando existem ports que surgem anos depois do lançamento oficial e aumentam as vendas.

O segundo ponto, que na real é só uma extensão do primeiro, é que sleeper hits existem. Tem muito jogo que tem um lançamento modesto e ganha mais tração após suas primeiras semanas. O hoje reconhecido como um dos grandes clássicos do PlayStation e um título importante para a origem do metroidvania, Castlevania: Symphony of the Night, é um dos melhores exemplos. Inicialmente ele não vendeu muitas cópias, mas com a boa e velha propaganda boca-a-boca o jogo foi atraindo mais atenção e seu desempenho melhorou horrores. Também podemos falar de Among Us que é um jogo que já existia desde de 2018 e só foi explodir de verdade dois anos depois quando se tornou muito popular entre criadores de conteúdo durante a pandemia da COVID-19.

Também não podemos esquecer que esse lance de jogar algo no lançamento não é uma realidade de boa parte da comunidade gamer. Muitos jogadores nem mesmo ingressaram na atual geração, mesmo com a gente entrando no seu quinto ano. Mesma coisa acontece com os jogos cujos preços estão cada vez mais altos. Várias pessoas não vão desprender uma grana considerável só para jogar algo no lançamento e irão aguardar uns meses quando os preços caírem ou quando tiver promoção.

Gráfico em curvo da plataforma do SteamDB mostrando o número de jogadores simultâneos em toda a história do jogo Among Us na Steam
É flops ou não é flops, clã?

Ao que nos leva ao terceiro ponto que esses gamers parecem ignorar ou fingem não entender. O número de jogadores simultâneos não é uma métrica que você pode sair usando para todo jogo como se fosse tudo igual. Ela até fazia sentido para mostrar o fracasso de Concord, um hero shooter multiplayer tentando surfar tardiamente na onda de Overwatch & Cia. Esse é um tipo de jogo que precisa ter uma base de jogadores sólida diária para não ser descontinuado. Afinal, por que a empresa gastaria rios de dinheiro para manter servidores de um título que fosse jogador por menos de mil jogadores por dia?

Agora eu pergunto ao caro amiguinho que está indo lá tirar outro print dos gráficos de Avowed: é um jogo multiplayer cooperativo ou competitivo? Não! A ideia inicial do projeto até era fazer um jogo multiplayer que ao decorrer do projeto se converteu para uma campanha singleplayer. Não faz diferença para Obsidian se tiveram cinquenta mil ou cinco mil ou jogadores simultâneos durante o lançamento do jogo, é um estilo de gameplay totalmente diferente. O mais importante são quantas pessoas compraram e dane-se se elas vão jogar tudo agora ou deixar pra depois. Existe algo mais emblemático na cultura da Steam que é comprar algo para jogá-lo depois de semanas, meses ou até mesmo anos?

Por fim chega o último ponto que, para mim, é o que escancara como essa galera anti-woke está agindo na desonestidade. Avowed não é exclusivo da Steam. A Obsidian é subsidiária da Microsoft, logo o jogo também saiu Xbox e num negocinho chamado Game Pass. Na Steam, Avowed custa uns 350 reais, o Game Pass PC está saindo por uns 36 reais. Façam as contas aí e me digam onde vocês acham que a maioria dos jogadores de Avowed estão?

E mesmo que a tendência não fosse muito grande para lá ou para cá, para entender o quadro geral do lançamento de Avowed a gente precisa olhar todas as plataformas em que o jogo se encontra. Mas obviamente que o pessoal que foi consultar o número de jogadores simultâneos Steam não estava a fim de saber se o jogo está vendendo bem. Esse pessoal foi atrás de um viés de confirmação que os permitisse “provar” que a lacração fez mais uma vítima. E podem ter certeza que mesmo que os números fossem muitíssimo altos eles iriam procurar algum jogo bombado que tem mais jogadores para fazer uma comparação esdrúxula e dizer que flopou.

Enfim, eu falei algo demais nesse texto todo? Não. É o tipo de reflexão que você consegue chegar em poucos minutos para entender como o número de jogadores simultâneos na Steam não é essa métrica matadora para mostrar que o jogo é um sucesso ou um fracasso. E mais uma vez eu gostaria de lembrar que Avowed saiu há uma mísera semana. Não existe motivo para forçar uma análise precipitada. Quer dizer, motivo até que existe, só não é um motivo sincero.

O mais engraçado é que já temos umas reportagens de veículos que a Obsidian está feliz com as vendas iniciais de Avowed. Ainda assim, eu vi gente contrariando a fala do próprio estúdio se valendo do quê? Número de jogadores simultâneos na Steam! Nem a empresa que tem acesso a todas as informações do desempenho comercial do jogo convence essa galera. Porque não é que eles ACHAM que Avowed não está vendendo bem, eles QUEREM que Avowed não venda bem. É inconcebível (para eles) que um jogo “woke” seja um sucesso.

Por isso eu quero reforçar que esse pessoal tirando print de Steam Charts, SteamDB ou qualquer outro site não tem uma real intenção de analisar as vendas seja de Avowed, seja de qualquer outro jogo. Eles só estão fazendo a mesma histeria que fazem quando um jogo inclui personagens e pautas que eles não gostam. Essa galera acha que se fizer barulho suficiente eles vão conseguir convencer as pessoas que estão certas para dar um susto em executivo de estúdio que só se olhar para gráficos de pizza e colunas e planilhas de Excel estratificadas.

Eles não se importam com vídeo game ou com a língua portuguesa. Aposto que nem nem mesmo se importavam com Avowed até ouvir de algum youtuber que tinha pronome neutro no jogo. Saindo por uma tangente aqui, ontem passou pelo meu feed o comentário de um certo youtuber que tem uma tendência a cair no golpe do Urubu do PIX. Ele falava revoltadíssimo como ficaram dez anos esperando um novo jogo de Dragon Age só para receber um jogo “cheio de boiolagem todo colorido”. Imaginem a minha (não) surpresa ao olhar o canal dele e não encontrar um vídeo sequer sobre Dragon Age que não fosse sobre The Veilguard. Entendem?

De novo, essa galera não está falando realmente sobre vídeo game. Tudo que eles querem é tirar o pouco de representatividade de determinados grupos minoritários que existem na mídia. Porque não é apenas que eles não gostem de pessoas trans ou não-binários no seu mundinho escapista dos joguinhos, essa gente não gosta de pessoas trans ou não-binárias no mundo real. Se pudessem eles estariam fazendo abertamente uma militância contra esses grupos – alguns até fazem – mas eles sabem que não pega bem. Mesmo numa sociedade profundamente transfóbica isso daria problema. Então eles vão na militância mais fácil que é falar como o personagem ser chamado elu/delu estraga a imersão e vai impactar nas vendas dos joguinhos. Mas a real intenção dos comentários está bem clara para qualquer um que se preste a ver.


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