A Pequena Loja dos Horrores é um filme da década de 60, misturando comédia e terror, que Roger Corman gravou em apenas três dias. O filme foi ganhando interesse ao longo do tempo e 20 anos depois recebeu uma adaptação num musical off-Brodway. O musical, por sua vez, também acabou ganhando sua própria adaptação de volta ao cinema em 1986. Tudo isso, de alguma forma, tem muito a ver com River City Girls.

Por favor, tenham paciência com a minha linha de pensamento!

O título já deixa bem claro, mas não custa nada reforçar: esse será um texto com MUITOS SPOILERS! E não somente de River City Girls como também do musical de A Pequena Loja dos Horrores. A história tanto da peça quanto da sua adaptação é essencialmente a mesma, já do filme de 60 vocês estão seguros. Eu não cheguei a assistir e duvido muito que vocês irão, então mesmo que eu spoilasse nada seria perdido. Mas se quiserem ver o de 86, corram lá que dá tempo!

UMA ENORME PAUSA PARA FALAR DE UM MUSICAL

Audrey II, personagem do musical A Pequena Loja dos Horrores e um magnífico trabalho de marionete a bonecos animatrônicos
CINEMA!

Na trama de A Pequena Loja dos Horrores nós seguimos um órfão chamado Seymour, que mora e trabalha na floricultura do Sr. Mushnik. Um dia, enquanto andava pela rua, ele encontra uma misteriosa planta e leva para a loja. Lá ele lhe dá o nome de Audrey II, uma homenagem a sua colega de trabalho pela qual está apaixonado. A estranha planta atraí alguns olhares curiosos e Seymour toma a responsabilidade de cuidar dela. Contudo tudo que ele tenta não surte efeito e Audrey II começa definhar. Por conta de um pequeno acidente, Seymour descobre que ela gosta de sangue então passa a furar seus dedos para alimentá-la. Conforme Audrey II fica maior, ela atrai mais atenção para a floricultura e o negócio prospera.

Depois de um tempo Seymour fica “seco” e Audrey II, que revela que pode falar, implora para que ele a alimente com sangue. Fresco! Depois de prometer muitas coisas, a planta finalmente entende o que importa de verdade para o rapaz. Ela o convence a matar o namorado abusivo de Audrey, um dentista sádico chamado Orin, que ele próprio acaba se asfixiando com óxido nitroso. Seymour então pica o seu corpo e dá para a Audrey II comer.

A loja continua crescendo e o Sr. Mushnik descobre o que ele fez com Orin e ameaça entregá-lo para polícia. Audrey II acaba devorando o dono da floricultura e sua fome continua crescendo. Em determinado ponto ela engana a Audrey original e tenta comê-la também. Seymour interfere, mas não a tempo suficiente e ela morre por conta das feridas.

Seymour vai então para o alto de um prédio para se matar e nesse momento descobre um empresário agiu pelas costas dele e tirou mudas de Audrey II. O homem pretende lançar uma linha de produtos com ela e então que Seymour percebe que este era seu plano da planta desde o início. Ele confronte Audrey II para tentar impedi-la e… acaba devorado também!

Na última cena do filme, mostra-se que as mudas se tornaram um sucesso de vendas e as pessoas, acreditando nas suas promessas, acabam dando sangue para os brotos. Depois de crescerem, as novas Audrey II lançam um ataque sobre diversas cidades e começam seu plano de dominação mundial.

“Opa! Mas calma aí, Belmonteiro. Eu já vi esse filme e ele não acaba assim!”

É, eu também. A primeira vez que eu vi A Pequena Loja dos Horrores foi ou no SBT ou na Record e ele tinha um final bem diferente. Seymour conseguia salvar Audrey e destruía a planta com um fio desencapado. Aquele que eu descrevi era o final original do filme, mas que foi regravado, deletado e substituído por um mais feliz que foi para o cinema. Somente em 2012, quando lançaram um director’s cut, que o mundo ficou conhecendo o “true ending” de A Pequena Loja dos Horrores. Considerando que esse mundo não tenha visto a peça de teatro, claro.

Mas por que isso aconteceu? E uma pergunta ainda mais importante: quando que isso tudo vai fazer sentido com River City Girls? Calma, calma! Um questionamento de cada vez.

Você provavelmente já ouviu falar das exibições de teste e caso não conheça vai conhecer agora. Essa é uma prática histórica da produção cinematográfica, e também televisiva, onde os estúdios exibem um corte do filme para um grupo restrito de espectadores. O objetivo disso é pegar um feedback para prever qual a possível reação do público geral quando o filme for lançado. Assim os produtores conseguem fazer alguns ajustes que ajudem a ter um desempenho melhor na bilheteria. De um ponto de vista empresarial, as exibições de teste são uma boa ferramenta para o sucesso do filme. Entretanto eu tenho uma certa divergência com elas do ponto de vista artístico. E, como podem imaginar, é por causa de A Pequena Loja dos Horrores.

Segundo conta lenda, as audiências das primeiras exibições de teste do filme vibraram muito com o que estavam vendo… até chegar no final. O diretor Frank Oz e seu roteirista Howard Ashman queriam muito que o desfecho de A Pequena Loja dos Horrores fosse fiel ao tom do da peça. Só que a mente do publico de cinema é um pouco diferente do teatro. Quando Seymour e Audrey morriam no filme, a reação era um silêncio fúnebre que gerou um imenso feedback negativo quando entrevistaram os espectadores. Temendo que isso afetasse a bilheteria, o produtor David Geffen fez pressão para Oz e Ashman regravassem todo o final.

Detalhe, a sequência original custou 5 milhões de dólares, um quinto do orçamento do filme, para ser produzida. Imagina gastar tanto dinheiro para depois ter que jogar tudo isso fora?

Eu agradeço imensamente que conseguiram recuperar o final original porque seria uma tremenda perda para a história do cinema. Ele não somente fecha com perfeição o tema principal da história de como a ganância corrompe o ser humano e será a ruína dele e do planeta, mas também é uma fantástica demonstração de arte cinematográfica. Se viram o vídeo que deixei lá em cima, sabem do que eu estou falando.

Pronto, falei tudo que eu tinha para dizer do musical.

AGORA SIM: O “TRUE ENDING” DE RIVER CITY GIRLS

River City Girls é um spin-off da franquia Kunio-kun centrado nas personagens de Misako e Kyoko
Foto dos créditos finais pra ninguém reclamar que eu dei spoiler na thumb

O motivo de eu gastar mais de 800 palavras falando sobre um musical dos anos 80 são basicamente dois. O primeiro é porque queria espalhar a palavra de A Pequena Loja dos Horrores porque eu admiro muito o que a equipe por trás do filme conseguiu fazer para dar vida a Audrey II. E o segundo é porque esse é um dos melhores exemplos que eu consigo pensar da opinião da audiência conseguindo interferir PARA PIOR na visão original dos artistas.

Isso até pode fazer parte de uma discussão maior de como as pessoas acham que a arte não deve confrontar ou desafiar nossos ideais e expectativas e apenas entregar aquilo que nos é mais confortável e seguro. Mas vamos deixar isso para outra hora porque senão eu nunca chego em River City Girls.

Pois bem, rápido contexto sobre o jogo. Esse um spin-off de uma franquia de jogos conhecida como Kunio-kun. Ela existe desde os anos 80 e conquistou um nicho ocidental com alguns dos seus títulos que foram lançados aqui como Nekketsu Kōha Kunio-kun, um dos jogos responsáveis pela popularização dos beat’em ups em arcades, e Downtown Nekketsu Monogatari, um clássico do Nintendinho que acredito que foi aquele que pôs a franquia no mapa de fato.

Se você não conhece nenhum desses nomes é porque aqui eles foram lançados, respectivamente, como Renegade e River City Ransom. A maior parte dos jogos de Kunio-kun não saíram do Japão que é o caso de Shin Nekketsu Kōha: Kunio-tachi no Banka, jogo que conta com a participação das protagonistas do River City Girls, Misako e Kyoko. Aliás, esse também foi uma das principais referências para esse spin-off e foi relançado oficialmente desse outro lado do meridiano com o nome de River City Girls Zero.

O jogo é uma colaboração de Adam Tierney e Bannon Rudis – este que trabalhou em outro spin-off de Kunio-kun que foi River City Ransom: Underground que eu recomendo demais também – com a WayForward e a Arc System Works, que é a atual detentora dos direitos da franquia. A jogabilidade é bem inspirada no River City Ransom clássico onde os personagens saem pelas ruas lutando contra alunos de diferentes escolas e outros inimigos. Além disso, ambos os jogos contam com alguns elementos de RPG. A grande diferença é que em River City Girls os itens que você compra nas lojas não aumentam seus atributos. Outro detalhe é que os personagens principais da franquia, Kunio e Riki, tomam um papel de coadjuvantes aqui.

Imagens da gameplay de River City Girls
Só pra dar uma utilidade a outras fotos que tirei durante o jogo

Em River City Girls, como o nome já evidencia, nós controlamos Misako e sua amiga Kyoko, personagens recorrentes da franquia. Um dos papéis mais proeminentes delas foi no já citado Shin Nekketsu Kōha: Kunio-tachi no Banka, onde a Misako é apresentada como namorada de Kunio. Na história do spin-off, Misako e Kyoko estão presas na detenção quando recebem uma foto de Kunio e Riki aparentemente sendo sequestrados. As duas então partem para salvar os seus supostamente namorados. Logo a escolha de palavras fará sentido.

O jogo te leva por várias zonas da cidade onde Misako e Kyoko derrotam dezenas de inimigos tentando encontrar uma pista do paradeiro de Kunio e Riki. Você esbarra também com vários outros personagens recorrentes da franquia, incluindo uma dupla de garotas: Hasebe e Mami. Sempre que aparecerem, elas debocham de Misako e Kyoko por acreditarem que Kunio e Riki estão apaixonados nelas. Inclusive várias vezes Hasebe e Mami deixam a entender que elas que são as namoradas verdadeiras dos garotos.

Aqui vale dar outro contexto porque a Mami de fato já foi representada como namorada do Riki em diversos jogos, incluindo River City Ransom. Tanto na versão original quanto na localização americana em que ela é chamada de Cyndi. Ao mesmo tempo, a Kyoko também já foi representada como namorada do Riki em River City: Tokyo Rumble. Por outro lado, a Hasebe geralmente é apenas uma conhecida dos personagens e nunca chegou a namorar nem Kunio nem Riki. O que já aconteceu foi na localização americana de River City Ransom, onde ela é chamada de Roxy, em que mudam a história da personagem para ela ser a namorada do Slick, o vilão daquele jogo.

Como podem ver, a linha do tempo da franquia de Kunio-kun é um pouco bagunçada por si só e o fato de existir uma linha alternativa por conta da localização americana não ajuda muito.

Mas voltando ao jogo. A busca de pelos seus supostos namorados – olha a palavra mágica aí de novo – leva Misako e Kyoko até a sede da máfia local onde elas enfrentam a filha do líder da gangue que é ninguém menos que o vilão de Shin Nekketsu Kōha: Kunio-tachi no Banka, Sabu. Depois de derrotá-la, as duas caem pela janela por causa de um chute mal planejado e desabam sobre o teto de um spa. Lá elas finalmente Kunio e Riki em total segurança. Em momento algum tinham sido sequestrados, os dois estavam apenas curtindo um dia de folga do colégio.

Seria um desfecho cômico bem adequado para o tom da franquia, porém o jogo vai um pouco além com uma segunda reviravolta. Tanto Kunio quanto Riki mostram que nem ao menos se lembravam de Misako e Kyoko e revelam que estavam mesmo saindo com Hasebe e Mami. Ou seja, as protagonistas estiveram o jogo toda iludidas com um relacionamento que elas botaram na cabeça que existia e arrebentaram metade da cidade – incluindo a máfia local, não vamos esquecer – a troco de nada.

Eu adorei esse final porque é uma quebra de expectativa que também funciona como uma bela punchline – que nesse contexto tem mais de um sentido – cujo setup se construiu ao longo do jogo todo. Mas obviamente que a internet não gostou muito disso. Os fãs reclamaram, reclamaram muito, reclamaram à beça. Tanto que os desenvolvedores precisaram então lançar um patch que estabelecia o famigerado true ending para o jogo. Um que eu particularmente acho muito covarde, abdicando de uma ideia criativa para dar um desfecho clichê e sem sal.

O true ending de River City Girls que eu detesto com todas as minhas forças
Maldito ship!

A versão original já contava com um final alternativo que você habilitava ao conseguir dois pedaços de um medalhão em formato de coração. Antes da chefona final, se você equipasse as duas metades, em vez da filha de Sabu você enfrentava Hasebe e Mami no alto do prédio. Esse final alternativo não chega a mudar o desfecho original, porém diria que ele faz algo pior: explica a piada. Geralmente eu acho isso de uma ofensa a inteligência do jogador, contudo, considerando que um monte de gente reclamou do final original sem entender a real graça dele, não julgo os desenvolveres sentirem a necessidade de se justificar.

Embora eu tenha a absoluta certeza que a maioria reclamou apenas por conta de ship bobo, houveram alguns argumentos contra o final original. Um que eu vi é que ele “destruía a consistência narrativa de River City Girls apenas para terminar com uma piada”. Eu faria, para quem concorda com esse ponto, o seguinte questionamento: VOCÊ JOGOU A P@#$% DO JOGO? Recentemente eu falei como parece que tem pessoas que assistem os filmes de olhos fechados e acho que não seria grande surpresa descobrir que elas também jogam assim.

Porque, assim, usar “consistência narrativa” em River City Girls é não entender como a narrativa está sendo usada dentro dele. Essa não é um jogo sobre duas garotas tentando resgatar os seus amados. Bom, tecnicamente é sim. Ok, essa não é um jogo cujo OBJETIVO é contar a história de duas garotas tentando resgatar os seus amados. Aparenta ser isso, mas é exatamente porque, como falei antes, o jogo está construindo um enorme setup para a punchline final.

Mas outra coisa que eu acho também que as pessoas ignoram é a camada metalinguística que ele adiciona no jogo. Porque é o seguinte, entender a linha do tempo de Kunio-kun é algo que somente o fã mais hardcore vai conseguir. A maior parte das pessoas não vai jogar todos os títulos da franquia, Ainda mais o público ocidental que não recebeu todos os jogos. Portanto essas pessoas não vão ter a menor ideia de quem namora ou nunca namorou quem. Além disso, conforme uma franquia cresce, ela passa por diferentes mãos que acrescentam diferentes ideias logo é natural que surjam contradições ou inconsistências.

O final original de River City Girls brinca com isso, fazendo piada de como essa é uma linha do tempo em que os relacionamentos de cada personagens vão variar de jogo para jogo dependendo do que a equipe quer fazer naquele título. Se ele “não faz sentido” é porque a própria linha do tempo de Kunio-kun não tem como fazer.

Mas eu até argumentaria que o jogo tem sim uma consistência narrativa, pois o tempo todo ele dá indicativos do desfecho para qual a trama se encaminha. Misako e Kyoko, apesar de avançar no jogo, nunca ficam próximas de conseguir uma única pista sequer do paradeiro de Kunio e Riki. Até mesmo a forma inflamada como as protagonistas falam do suposto namoro é exagerada intencionalmente para mostrar que essas são personagens impulsivas que acabam errando pela emoção.

Novamente, é uma pena que ideias interessantes precisam ser revisadas por causa uma audiência que não consegue lidar com algo um pouquinho diferente daquilo que elas esperavam. Tudo bem que nesse contexto o final original ainda está ali. Mas só o fato do pessoal reclamar a ponto que os desenvolvedores se sentem obrigados a “consertar” isso num patch. É um final muito bom, que se alinha perfeitamente ao tom do jogo e é sim consistente dentro da sua função de ser uma enorme piada com as protagonistas. Não precisava ter um true ending covarde.

Mas quando uso hiperbolicamente esse adjetivo não é condenando a decisão dos desenvolvedores. Considero covardia a situação em que o público os colocou. Porque beat’em up é um gênero que se encontra há décadas entre círculos bem nichados, mais ainda considerando uma franquia em que boa parte dos jogos não saiu do Japão. Com uma boa parcela dos jogadores reclamando, e se eles tomaram uma providência é porque tinha muita gente reclamando mesmo, os desenvolvedores não tinham muita escolha. Precisavam fazer uma média e adicionar um final alternativo, mesmo que mais sem graça que o original, para o público não afastar potenciais jogadores com essas reclamações.

Felizmente, ao contrário do que aconteceu por um longo tempo com A Pequena Loja dos Horrores, o primeiro final não foi cortado do jogo. Dá para ter esperanças que estamos tendo algum avanço nisso. Agora só falta o público deixar de ser fresco, o que a cada ano que passa eu fico com mais dúvidas que um dia acontecerá…


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