Na cultura televisiva americana existe o conceito dos very special episodes. Ele surge primeiro como um termo do ramo publicitário, mas logo se torna uma espécie de tradição. Os very special episodes ganharam força nos décadas de 80 e 90 e ainda dá para pegar alguns exemplos nos anos 2000 em sitcoms e séries dramáticas. O que diferenciava esses episódios, sobretudo nas comédias, é que havia uma notavam mudança de tom na série e a trama girava em torno de um tema sensível. Eram tópicos como aborto, drogas, suicídio, racismo, abuso, gravidez na adolescência, violência e por aí vai.

Para quem costumava assistir as séries que passavam no SBT, com certeza se deparou com um very special episode em algum momento. Arnold, O Mundo é dos Jovens, Blossom, Três é Demais, Punky, A Levada da Breca, todas essas em alguma temporada tiveram um desses episódios ou até mais. Porém, apesar de populares, esse formato foi caindo em desuso com o tempo e existe uma lista de fatores para tal.

O Homem da Bicicleta é um famoso episódio da série Arnold que lida com o tema de abuso de menores
“O Homem da Bicicleta” é um famoso episódio de Arnold
abordando o tema de aliciamento de menores

Um dos que eu já ouvi falar é que os very special episodes costumavam abordar seus tópicos de maneira muito simplista, se apoiando demais no sentimentalismo. Isso deixava a discussão pouco nuançada e servia mais para elucidar um problema social do que de fato debatê-lo. Claro que muito disso deve-se ao fato de estarmos falando de episódios de 20 minutos que precisavam voltar ao status quo da série no final. Portanto havia muita limitação do que se podia fazer dentro de um very special episode. Mas acredito que o que mais influenciou no fim deles foi o surgimento na virada do século de mais séries que se desenvolviam ao redor desses temas. Para que dedicar um único episódio para falar sobre violência urbana, racismo, abuso de drogas, sexo na adolescência, etc; quando passamos a ter com mais regularidade coisas como The Wire, Shameless, Olhos Que Julgam e Euphoria?

De qualquer forma, eu ainda tenho muito carinho pelos very special episodes quando me lembro deles. Um que sempre me emociona é aquele de Um Maluco no Pedaço quando o Carlton fica traumatizado e compra uma arma depois do Will levar um tiro num assalto. Obviamente que não citei esse exemplo à toa. O texto de hoje – que queria que fosse mais curto porém me empolguei – é sobre um episódio da série animada Super Choque que também toca no tema das armas: Jimmy!

Jimmy, um icônico episódio da animação Super Choque que fala sobre armas e tiroteios em escolas

Super Choque foi produzido pela Warner Bros. Animation de 2000 até 2004, contando as aventuras do super-herói homônimo. Não sei como era lá fora, mas aqui ele teve uma boa popularidade ainda mais passando em companhia do desenho da Liga da Justiça. E ainda bem que ele passou naquele período, viu? Em tempos de guerra cultural promovida por adultos e jovens adultos abobalhados, eu não tenho a menor dúvida que Super Choque seria chamado hoje de lacração. Ainda mais que a própria gênese do personagem está inserida em meio a questões sociais.

Ao todo, existiram quatro episódios de Super Choque que podemos classificar nessa categoria de very special:

  • Filhos dos Pais: episódio em que Virgil passa uma noite na casa de seu amigo Richie e conhece seu pai, quem faz comentários racistas sobre o protagonista e sua família;
  • Congelados: especial de natal em que Super Choque descobre uma meta-humana de gelo que vive nas ruas e é traumatizada pela morte mãe e dos abusos do pai, o que faz ela não ter controle dos seus poderes;
  • Onde a Borracha Encontra o Asfalto: episódio em que se descobre que o Homem-Borracha sofre de dislexia e precisa superar essa dificuldade para ajudar o Super-Choque a desarmar um reator de fusão;

O quarto eu já falei aqui que é Jimmy, um episódio em que temos Virgil lidando com um colega da sua escola que tem sofrido bullying e decide ir até as últimas consequências. Escolhi falar de Jimmy porque é um dos episódios do desenho com o qual eu me pego pensando frequentemente. Na época ele me marcou pela temática e hoje continua ressonando comigo por eu estar mais consciente do problema quase que endêmico de tiroteios nas escolas americanas.

É notável que Jimmy teve muita influência do conhecido massacre de Columbine que ocorreu em 1999 e causou um enorme impacto na sociedade americana. Os Estados Unidos é um país com um grande histórico de violência armada e as escolas, infelizmente, não escapam disso. Só para termos uma noção, desde o massacre de Columbine já houve mais de 400 casos foram reportados e quatro dos cinco casos com maior número de mortes aconteceram nos últimos 20 anos. A não ser que você seja o Neil deGrasse Tyson dando uma de Sr. Fatos, não é difícil reconhecer como um problema terrível para os norte-americanos.

Mas voltando ao episódio. Têm muitas coisas que me fizeram e ainda fazem gostar de Jimmy. Como, por exemplo, essa ser uma história em que o fato do Virgil ser o Super Choque é completamente irrelevante para trama. Essa é uma reflexão que eu tive anos depois revendo o episódio. Jimmy é uma demonstração de como que por mais extraordinários que sejam os super-heróis, existem problemas muito maiores e muito mais complexos para eles.

O Super Choque pode lutar contra uma Liga da Justiça sendo controlada pelo Brainiac, porém ele não consegue impedir um garoto de receber abuso emocional sistemático a ponto dele roubar a arma de seu pai para dar um fim nos seus abusadores. Eu não vou considerar isso um spoiler, afinal acho que todo mundo que clicou nesse texto conhece muito bem o episódio. Minha intenção é mais mostrar porque esse é um very special episode que se distingue dos demais.

Virgil chegando no colégio depois que Richie é baleado por Jimmy
Algumas coisas nem super-heróis podem resolver

Até narrativamente falando podemos dizer que Jimmy é especial porque foge da fórmula tradicional dos episódios da série naquele formato de “vilão da semana”. A gente começa vendo Richie sendo levado pela ambulância e com Virgil tentando ir com ele. Isso já causa um choque e uma confusão inicial na audiência que aumenta quando rola uma transição e percebemos que aquele era um flashback. No presente estamos acompanhando Virgil numa sessão com uma psicóloga onde eles mencionam o personagem que dá nome ao episódio. A partir daí toda a história é contada através de flashbacks narrados pelo protagonista.

Virgil então nos fala sobre Jimmy, um garoto solitário do seu colégio que sofria um bullying constante de outro rapaz, Nick, e seus dois colegas. Ele e Richie tentam se aproximar de Jimmy, contudo não fazem muita coisa para parar os assédios que o rapaz recebia. Eventualmente Jimmy é levado ao seu limite depois de ser trancado num armário e decide por um fim nos abusos. Ele leva a arma do seu pai para o centro comunitário onde os alunos estavam tirando os enfeites da festa de Halloween e ameaça atirar em Nick. Richie consegue acalmá-lo, porém é atacado pelos dois colegas do rapaz, a arma dispara e acerta Richie na perna.

A narração funciona muito bem para essa trama porque permite que o episódio se centre nos pontos pivotais da história que Virgil tem conhecimento. Então assim como o personagem, nós temos que preencher as lacunas com a nossa imaginação. Algo que mão é muito difícil porque o roteiro deixa vários foreshadows pelo caminho que deixam tanto o final bem amarrado quanto fazem um ótimo desenvolvimento do personagem do Jimmy num tempo tão curto.

Durante o episódio todo vemos Jimmy mexendo no seu laptop e ficando nervoso se alguém tenta ver o que ele está escrevendo

O detalhe mais evidente é o laptop de Jimmy. Ao longo de todo o episódio a gente vê ele digitando algo no computador e sempre ficando nervoso quando alguém tenta ver. Na primeira interação que ele tem com o Virgil, este pergunta no que ele está trabalho e Jimmy responde “Coisas!”. Mais para a frente iremos descobrir que aquele era seu “Diária de Batalha” onde ele expressa sua vontade de se vingar de Nick.

Outro importante momento é quando Virgil e Richie vão visitá-lo em casa pela primeira vez. Lá rola uma troca rápida de diálogos entre Jimmy e sua mãe na qual ela se surpreende que ele fez novos amigos e adiciona um “Tente não espantá-los, tá bom?”. Com isso já fica evidente que o garoto sempre teve problema de fazer e também manter amizades. Também é nesse cena que Jimmy revela que o pai dele comprou uma arma e ele sabe onde está guardada.

Ao chegar na metade do episódio surge uma personagem recorrente da série, Frieda. Ela entra para anunciar que o pai de Virgil permitiu que eles fizessem a festa de Halloween no centro comunitário. Frieda pede para os outros alunos ajudarem na decoração, incluindo Jimmy. Virgil conta como Jimmy ajudou muito na festa, como ele parecia “funcionar no seu próprio mundo” e, acima de tudo, como nesse período ele passou a se afeiçoar muito de Frieda.

Isso culmina numa cena em que ele estuca Nick e Frieda conversando e acaba sendo perseguido outra vez pelo seu valentão. Nick e seus amigos prendem Jimmy num armário e pela reação do garoto parece que ele também era claustrofóbico. Então quando Virgil e Richie vêm resgatá-lo, Jimmy cai no chão chorando e se sentindo completamente humilhado na frente da garota que ele gostava.

Então algo que eu vejo Jimmy fazer muito bem é mostrar como o bullying ocorre de maneira sistemática e vai escalonando até chegar num ponto que a vítima não consegue mais suportar. Mas o episódio não mantém apenas na visão simplista de dizer que é tudo por culpa do bullying. A série reconhece que leva um garoto a recorrer a violência armada é um somatório de fatores tanto internos quanto externos. Isso se reforça no diálogo final de Virgil com a psicóloga onde ele se mostra com raiva de todos… incluindo ele mesmo!

Isso porque para aquela arma ser disparada foi necessário que os professores ignorassem que Jimmy estava sendo vítima de abusos constantes. Também foi necessário que nenhum outro aluno intercedesse e reportasse esse bullying. Jimmy também precisou ser negligenciado dentro da sua própria família, com uma mãe alheia as suas dificuldades de socialização e um pai inconsequente que deixou uma arma ao alcance do filho. Se você tirasse qualquer uma dessas peças do tabuleiro, seria bem possível que o destino do garoto fosse outro.

Pai de Jimmy lendo o Diário de Batalha do seu filho, momentos antes de descobrir que o garoto pegou a  arma que ele guardava em casa

E como se já não bastasse tudo isso, o episódio toma uma excelente decisão no final. Não me refiro a quebra da quarta-parede num momento bem lição de moral do He-Man, mas sim ao que acontecesse antes disso. Quando Richie volta para o colégio com a perna engessada, ele e Virgil conversam sobre tudo que aconteceu naquelas semanas. Richie demonstra uma esperança que ao menos o caso de Jimmy sirva para ensinar uma lição aos alunos. E o que acontece logo em seguida? A gente vê dois alunos fazendo bullying com um terceiro. Nada mudou… bom, nem tudo. Virgil finalmente entende o que ele tem que fazer. Não como Super Choque, mas como pessoa. Ele se aproxima do garoto e oferece ajuda para pegar o seu material que foi derrubado e mostra apoio a ele.

Jimmy não está tentando nos avisar das consequências do bullying. Ele nos fala sim do perigo das armas, mas o episódio demonstra que esse não é um problema tão simples de resolver. Nem mesmo um super-herói pode impedir que tiroteios em escolas aconteçam. Para isso cada um tem que estar atento e fazer o que estive ao seu alcance para impedir que uma situação escale para as consequências mais terríveis.

Desfecho do episódio Jimmy, da série Super Choque, que Virgil percebe que ele pode fazer a diferença apenas como uma pessoa comum
Alguns problemas pessoas podem ajudar a evitar

Então, finalizando, acho que Jimmy é de fato um episódio muito especial. Ali você vê que até uma série voltada para um público infantil pode tocar em temas sérios e sensíveis de forma bem digerível. O episódio também reforça como histórias de super-heróis podem e devem buscar esse lado mais humano e identificável com seus espectadores. E, por fim, ele fica também como um exemplo que ainda dá para fazer very special episodes que tenham algo a dizer e que dizem muito bem.


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2 thoughts on “Super Choque, Jimmy e armas”
    1. Filhos dos Pais é excelente também e é mais um desses episódios que eu curto por tornar o fato do Virgil ser o Super Choque irrelevante para trama. Congelado parece ser bom também, mas o SBT só passava na época de Natal então eu nunca consegui assistir na TV.

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