A Concierge Pokémon, nova série stop-motion da Netflix
Nem mesmo um paraíso pokémon consegue aplacar as aflições da vida profissional

Ontem um amigo me mandou uma mensagem recomendando que eu desse uma olhada na mais recente série da Netflix, A Concierge Pokémon. Eu já tinha visto uma postagem ou duas passando no meu feed falando sobre a série, contudo nada despertou a minha curiosidade. Já estou há uns bons anos longe da franquia, tanto que não faço a menor ideia em qual geração estamos e consigo nomear no máximo uns três pokémons que não sejam um dos 251 primeiros. Mas como era uma série curtinha – quatro episódios de 20 minutos – e eu tenho um carinho por animação em stop-motion, resolvi dar uma chance.

Cheguei nA Concierge Pokémon esperando nada mais do que um descontraído slice of life num resort de pokémons. Até me bateu uma nostalgia porque, quando criança, eu tinha uma fita VHS de Pokémon: O Filme, o primeiro longa-metragem da franquia. Lembro que antes da história principal passava um curta onde o Ash deixava seus pokémons numa espécie de colônia de férias. Por isso imaginei A Concierge Pokémon seria uma oportunidade de ver esses personagens interagindo num contexto mais introspectivo e descontraído.

De fato a série é muito sobre isso, sobre contemplar esse universo fantástico de pokémons sob um ponto de vista cotidiano. Mas para minha surpresa, A Concierge Pokémon foi um pouco além disso. Por baixo de toda aquela trama leve de uma moça no que seria o trabalho dos sonhos de muitas crianças havia uma surpreendente representação das aflições dos jovens adultos no mercado de trabalho atual. Não é um exagero da minha parte. A série pode não ser uma crítica contundente a vida no mundo corporativista moderno, mas é inegável que o comentário está ali.

Ok, uma pausa rápida aqui. “A série/filme critica o capitalismo” é provavelmente a análise mais manjada que a internet faz de qualquer obra. Tem algumas variantes, como colocar “tardio” em companhia de capitalismo ou então substituir o termo por “neoliberalismo”. Apesar de ser um clichézão de rede social, eu acho que cabe perfeitamente em A Concierge Pokémon. Haru, a protagonista, ilustra uma gama de jovens trabalhadores que se encontram cheio de preocupações e ansiedades nos seus ambientes de trabalho dada a alta cobrança para demonstrar produtividade. Nesse cenário, o simples ato de se divertir ou tirar um momento para si soa como um pecado capital.

O primeiro episódio de série abre com Haru narrando uma série de infortúnios que aconteceram na última semana. Seu namorado terminou o relacionamento de seis anos deles por mensagem, ela pisou num chiclete com seus sapatos favoritos, teve alguns problemas no trabalho, viu uma amiga pedir demissão, raspou as sobrancelhas errado, não conseguiu fazer curry e pisou em outro chiclete. Apesar do tom cômico, é evidente que a série quer mostrar como tanto a vida pessoa e profissional de Haru está uma bagunça e como esse segundo lado afeta o primeiro.

Então a história faz então uma elipse e vemos ela chegando num resort paradisíaco para pokémons e treinadores, não para tirar férias e sim para trabalhar. Não fica claro se Haru foi transferida ou se é um trabalho de meio período, porém isso pouco importa para o contexto geral da série. Chegando no resort, Haru conhece sua chefe, a sra. Watanabe, e tenta demonstrar muito entusiasmo para começar logo suas tarefas. O que a sra. Watanabe lhe diz é que no seu primeiro dia do trabalho ela deve apenas curtir o resort como se fosse uma cliente.

Para muitos isso seria um belo de um presente, certo? Imagina poder ficar à toa curtindo uma praia com pokémons em vez de trabalhar? Quem não gostaria disso? Eu digo quem: Haru!

Haru, protagonista da série A Concierge Pokémon
Pelo amor de Deus! Relaxa, mulher!!!

Em vez de curtir a folga, nossa protagonista fica mais preocupada achando que tudo aquilo é um teste. Assim ela passa o restante do dia numa pilha de nervos, procurando por alguém que lhe dê alguma função no resort. Mesmo que todos colegas de trabalho reforcem que ela deveria apenas relaxar, Haru segue achando que precisa fazer algo. Isso culmina com ela virando a noite para escrever um relatório das suas atividades e criando políticas de trabalho para apresentar para a sra. Watanabe no dia seguinte.

Os temas que envolvem as ansiedades de Haru no seu novo trabalho se estendem ao longo dos três primeiros episódios da série. Sempre que alguém fala para ela que tudo que precisa fazer é passar um tempo com os pokémons, cuidar deles e se divertir a protagonista demonstra um estranhamento e desconforto com essa ideia. Pois, como eu falei, na sua cabeça ela acha que precisa mostrar produtividade tal como no seu trabalho anterior. Por isso é emblemático que a série coloca como parceiro de trabalho de Haru um Psyduck, um pokémon que sofre com constantes dores de cabeça.

Na superfície você pode achar que A Concierge Pokémon é nada mais que uma série de aventurazinhas cotidianas num resort de pokémons. Entretando, no fundo, o que ela faz é mostrar as dificuldades que as novas gerações encontram de curtir o momento ao chegar na vida adulta. Tudo isso porque o mercado de trabalho convenceram-nas que devem sacrificar todo seu tempo no seu “aperfeiçoamento profissional”, que serve muito mais a empresa do que aos empregados.

Por isso que Haru não consegue acreditar que seu trabalho envolva qualquer forma de diversão quando ela deveria estar sendo prestativa. Ou melhor, produtiva. No terceiro episódio quando ela vê que a sua colega de trabalho consegue escalar, além de ter várias outras habilidades, Haru fica decepcionada consigo mesmo, se sentindo imprestável. Pois na lógica do mercado de trabalho, você precisa estar constantemente se atualizando para não ficar para trás. Então a “evolução” – para usar uma terminologia de pokémon – não vem de uma motivação pessoal, ela é alimentada pelo medo de ser substituído por outro profissional.

Óbvio que a gente não pode “parar” na vida e nem mesmo A Concierge Pokémon diz isso. O que a série tenta mostrar é que essa evolução precisa ocorrer num processo gradual, através de vivência e compartilhamento de experiências. E isso também significa não sacrificar o seu tempo de descontração na busca de encontrar formas de ser uma pessoa mais produtiva. Apenas viver um momento é fundamental para nossa existência e bem-estar.

Por fim, é interessante notar como essa reflexão parte de uma pequena série de pokémon. Ao mesmo tempo que o mercado nos cobra excessivamente, nós também acabamos por exigir esse mesmo alto nível irrealista das coisas que consumimos. Tudo precisa ser maior, mais épico, mais dramático, mais complexo. Nessa ânsia de querermos ser o melhor e termos o melhor, sem nem mesmo saber o que exatamente é esse melhor, a gente acaba não apreciando o valor, a magia e até mesmo a profundidade que se pode tirar de uma singela série stop-motion de Pokémon!

Haru e Psyduck passando um tempo juntos em A Concierge Pokémon
A beleza da vida se encontra nesses pequenos momentos

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