
Semanas atrás, sabe-se lá por qual motivo, eu ouvi vários episódios do podcast da série It’s Always Sunny in Philadelphia. Não acompanho a série, tudo que fiz foi ver até mais ou menos a sétima ou oitava temporada há um tempo e acabei nunca voltando a assisti-la. Mesmo assim eu conferi o podcast que foi onde fiquei sabendo que Rob McElhenney e Charlie Day – duas das três principais mentes por trás de It’s Always Sunny in Philadelphia – produziram outra série de comédia, Mythic Quest. Fiquei curioso com o nome, pesquisei um pouco e… acabei maratonando as quatro temporadas no espaço de uma semana!
Mythic Quest é sobre um estúdio de desenvolvimento de jogos responsável pelo MMORPG homônimo que é um dos mais populares do seu universo. Os episódios giram em torno da caótica equipe do estúdio no seu dia-a-dia. Nela temos o criador de Mythic Quest e diretor criativo Ian Grimm – interpretado pelo próprio Rob McElhenney – a engenheira-chefe Poppy Li, o produtor executivo David Brittlesbee e sua assistente Jo, o chefe de monetização Brad Bakshi e o escritor C.W. Longbottom. Por fim, temos a dupla de game testers Rachel Meyee e Dana Bryan. Elas começam como personagens satélites, mas ganham mais proeminência conforme a série se desenvolve.
Eu sabia que ia gostar de Mythic Quest porque a premissa me lembrou outra série favorita minha, Silicon Valley. A diferença fundamental é que nesta acompanhamos toda a jornada de uma empresa emergente no setor de tecnologia. Por outro lado, em Mythic Quest o estúdio existe há anos e a história começa próximo a data de lançamento da primeira expansão do MMORPG. Então, ainda que a série aborda algumas questões da indústria e da cultura dos vídeo games, os episódios se focam mais nas relações dos personagens e, sobretudo, nos conflitos entre o Ian e a Poppy que são o motor principal de Mythic Quest.
Isso foi o maior motivo de eu adorar a série, porque além da comédia ela traz momentos profundamente dramáticos. Tem vários episódios que Mythic Quest puxa o freio de mão na e deixa rolar cenas mais longas sem qualquer piadinha. São nessas horas que a série brilha de verdade para mim. Foi o que me fez apaixonar não só por Mythic Quest como também por seus personagens. Assim chegamos em A Dark Quiet Death, o quinto episódio da primeira temporada que é simplesmente perfeito. Uma produção incrível, e um dos melhores episódios tanto da série quanto da TV (ou streaming) em geral.
Mythic Quest estabeleceu uma tradição na qual cada temporada tem um episódio especial que se separa da história atual em andamento. Tais episódios ainda se conectam tematicamente com a série e alguns exploram o passado do elenco principal. Contudo A Dark Quiet Death é bastante diferente porque se trata de dois personagens que não aparecem em mais nenhum momento de Mythic Quest. Existem algumas referências, porém nada muito explícito. O episódio é quase um curta-metragem que você pode assistir isolado da série e ainda sair muito emocionalmente impactado. Tanto que é próximo de um consenso que A Dark Quiet Death é o melhor episódio de Mythic Quest. Pelo menos para mim é!

A Dark Quiet Death começa em 1993 com Doc, um produtor de jogos, e Bean, uma aspirante a game designer. Os dois se conhecem numa loja de vídeo games e a química, tanto dos personagens quanto dos atores, é instantânea. A partir dali Doc e Bean começa um relacionamento e também uma parceria que resulta nos dois fazendo uma proposta de um jogo de terror experimental – que como podem imaginar se chama Dark Quiet Death – para uma grande publisher baseada em Montreal. Sim, é a Ubisoft apesar de nunca falarem o nome. O casal recebe o financiamento e o jogo se mostra um grande sucesso. Isso aumenta a confiança da publisher que oferece mais dinheiro para Doc e Bean para que eles abram um estúdio e comecem a trabalhar na sequência.
Uma história bonitinha, para aquecer o seu coração e inspirar artistas a correrem atrás dos seus sonhos… Mas infelizmente tem a segunda parte do episódio!
O jogo original de Dark Quiet Death, como é mostrado durante a cena da proposta, é um Doom-like onde o jogador tem que achar a saída de cada fase enquanto vários monstros o perseguem. Bean descreve esses monstros como uma metáfora para medo e mortalidade. A única forma de se defender deles é com uma lanterna que os repele temporariamente. Não existem chefões e nem mesmo um final, o jogador tem que tentar sobreviver o máximo de tempo que conseguir. “É como a vida!”, descreve Bean outra vez.
Por que eu estou dando esses detalhes? Por conta do sucesso que foi o primeiro jogo, a publisher quer ampliar o público do jogo na sequência. Em outras palavras, tem que vender mais cópias. Então a equipe de marketing faz uma série de testes com grupos de foco – algo que Bean tinha combinado com Doc que não seria feito – e vê que alguns jogadores gostariam que fosse possível matar os monstros. Doc acha a ideia bacana, porém Bean discorda porque vai contra a concepção que tiveram para Dark Quiet Death, mas seu marido acaba convencendo-a a fazer essa concessão. Ela ainda tenta criar um meio-termo, fazendo com que as armas dissipam os monstros. Que ela no fundo sabe que é só um eufemismo para matá-los.

Isso dá uma sequência a concessões ainda maiores que eles são obrigados a fazer porque a publisher de Montreal quer aumentar as vendas. Se livram da lanterna para colocar uma mira laser nas armas e depois negociam uma adaptação para cinema produzida pela Disney que completamente descaracteriza o jogo. Dá para ver o impacto que cada concessão causa em Bean porque ela percebe o quanto a sua visão artística é sacrificada em prol do sucesso financeiro da empresa.
Ninguém aqui é tão ingênuo para achar que sucesso financeiro não tem sua importância na produção cultural. Fazer jogo não é algo barato, até mesmo na década de 90, e obviamente que todo artistas quer poder viver da sua arte. E aí que o A Dark Quiet Death faz algo muito sagaz que é mostrar que o problema não é querer o lucro, mas sim como o lucro nunca é grande o suficiente para as empresas. Não importa o quanto o jogo vender, o próximo projeto TEM que vender mais do que seu anterior tomando qualquer medida possível. Cabível já são outros 500!
Já mais perto do fim do episódio temos o Doc conversando com o gerente de marca do estúdio. Nesse ponto, Bean já resolveu largar a empresa e se separar do marido. Ele e o gerente estão vendo um trecho do próximo filme de Dark Quiet Death que irá incluir um mascote fofinho chamado Roscoe e Montreal quer que ele seja inserido no universo dos jogos também. Tudo isso porque descobriram que a franquia tem um público infantil. A publisher também pressiona para fazerem uma outra mudança na jogabilidade do próximo jogo, fazendo com que haja um final para o jogador ter uma sensação de vitória e conquista.
Para quê? Óbvio, aumentar mais ainda as vendas. Doc, que agora discorda da decisão para tentar manter o mínimo de integridade artística que sobrou na franquia dele e de Bean, fala como no ano anterior eles venderam 5.3 milhões de cópias. Mas como eu disse, não importa. Os acionistas querem mais!
A Dark Quiet Death termina com Doc voltando a loja de vídeo games e lá vemos que o Roscoe não apenas entrou no universo do jogo como virou a sua própria franquia, fagocitando a série original. Lá ele encontra com Bean novamente, que seguiu com sua vida, casou e teve filhos. Os tem um pequeno momento nostálgico onde Doc pede desculpa por não tê-la apoiado no passado e os dois partem por caminhos diferentes de novo. É um final agridoce porque mesmo que haja uma reconciliação momentânea, sabemos que o que se perdeu não volta mais.

Esse é um episódio que nos marca tanto no seu lado humano quanto no seu lado artístico. É triste ver o paralelo de um relacionamento acabando da mesma forma que um jogo que vinha com uma proposta única e especial sendo usurpado de toda sua identidade. Não porque os artistas estão genuinamente buscando novos caminhos, testando novas ideias, experimentando e sim pela pressão de uma empresa que toma decisões com base no que pode aumentar o número de vendas.
Quiséramos que isso fosse tudo ficção e não problema endêmico da atual indústria dos vídeo games. É fácil apontar o dedo para Ubisoft – ops – “a publisher de Montreal” como a grande vilã, mas sabemos que ela é apenas uma dentre os vários membros da Legião do Mal das Desenvolvedoras de Jogos™. Quantos estúdios vimos serem fechados nesses últimos anos? Quantos projetos foram cancelados? Quantas demissões?
Numa triste coincidência, dias antes desse texto a Microsoft mandou embora 9000 funcionários, muitos deles da sua divisão de jogos. E vamos lembrar que essa é a SEGUNDA demissão em massa da empresa este ano. Em maio foram mais de 6000 pessoas. Equipes foram embora, estúdios fecharam as portas, jogos que estavam em desenvolvimento não existirão mais. A Dark Quiet Death pode ser um único episódio de Mythic Quest, porém a sua história é uma realidade diária.




