Na língua inglesa existe a expressão “uma tempestade perfeita” que faz referência a uma situação desastrosa/crítica consequente de uma série de eventos ruins combinados. Apesar da sua conotação negativa, eu gosto de dar um uso positivo a essa expressão quando relacionado a produção de uma obra. Eu utilizo essa expressão para me referir a um determinado filme ou jogo que alcançou uma posição de qualidade muito mais elevada do que a média graças a soma de diversos fatores como a contribuição coletiva de artistas que são referências nas suas respectivas áreas. Pois bem, nesse sentido Chrono Trigger é uma tempestade perfeita!
UM TIME DOS SONHOS
Há poucas obras que podem se dar o direito de ter o título “não tinha como dar errado” e Chrono Trigger é uma delas. Afinal esse foi um projeto concebido pela contribuição de três grandes lendas da indústria dos JRPGs. O jogo contou com Hironobu Sakaguchi e Yuji Horii, criadores de duas das maiores franquias de RPGs que permanecem como referência no gênero; respectivamente Final Fantasy e Dragon Quest, e o mestre Akira Toriyama, criador do fenômeno mundial Dragon Ball, que já tinha sua contribuição para o mundo dos jogos ao fazer os designs de personagens de Dragon Quest. Horii, além de ajudar no desenvolvimento da enredo do jogo, junto com Sakaguchi desenvolveram o sistema geral de Chrono Trigger. Enquanto isso o Toriyama cuidou de toda a sua estética, incluindo personagens, monstros e a aparência de cada uma das eras pelas quais a trama leva o jogador.
Mas também não é apenas o produto desse indiscutível talento por trás do time responsável pelo desenvolvimento de Chrono Trigger. O timing foi de grande ajuda também. Tanto a Square e a Enix, que eventualmente iriam se fundir nos anos seguintes, tinham consolidado suas franquias na última década. Além disso Super Nintendo estava dominando a atual geração e se mostrou um terreno fértil para levar essas franquias de RPG, mais algumas outras que conseguiram subir no trem a tempo, adiante com um novo potencial do que se podia alcançar em jogabilidade e graficamente.
Todas as peças estavam nos lugares certos. Você tinha um time talentoso por trás do projeto, envolvendo artistas e desenvolvedores de duas das mais populares franquias de RPG da época no console que também estava em alta. Novamente, não tinha como dar errado!
Assim nasceu um dos melhores RPGs de todos os tempos e dá pra falar isso com tranquilidade. Mas como eu gosto de me estender um pouquinho (só um pouquinho), vamos bater um papinho sobre o que faz esse jogo tão fantástico.
UMA AVENTURA (A)TEMPORAL
Começando pelo começo pois esse início de Chrono Trigger é um pouco incomum na sua apresentação. Sem diálogos ou uma sequência de abertura, nos primeiros minutos de gameplay não existe qualquer “plot” aparente. A história começa de maneira completamente mundana. O nosso protagonista, Crono, é acordado pela sua mãe para ir a Feira Milenar. Uma das amigas do personagem, Lucca, irá apresentar uma das suas novas invenções na feira. Você levanta e apesar do jogo te entregar um claro objetivo, não existe nenhum propósito ainda nessa gameplay. Não existe qualquer força ameaçando esse mundo, sua cidade não corre perigo, não há profecias dizendo que o fim está próximo. Só um clima de tranquilo de confraternização e diversão.
Nesse primeiro momento que o jogo te oferece uma escolha por trás dos panos. Você pode ir direto para a Feira Milenar para dar continuidade a ainda não visível trama. Ou então, se preferir, pode andar a esmo pelas regiões que tem acesso, absorvendo pouco a pouco aquele universo. Nesse instante você define o ritmo com que vai avançar no jogo.
Esse foi um detalhe que não peguei quando joguei Chrono Trigger mais de uma década atrás. Afinal eu era mais jovem e alheio e praticamente tudo que faz uma obra ser tão especial. Rejogando hoje eu pude ver como ele tem um dos melhores ritmos possíveis para RPGs. Esse é um gênero que sempre sofre com uma gameplay mais vagarosa que se estende por horas a fio. Tanto por terem histórias mais recheadas e também pela repetição natural dos sistemas de luta.
Há uma gama de fatores que contribuem para Chrono Trigger ter um ritmo tão ótimo. Os diálogos são rápidos, dungeons não se estendem por demais e a progressão de níveis é bem equilibrada de forma que você não sente necessidade de faze grind. Além disso, o sistema de batalha é bem dinâmico e por ter lutas pré-definidas, algumas que você consegue até evitar se quiser, em vez do padrão de encontros aleatórios não fica travando o jogador a cada 3–5 passos. Acima de tudo isso, o jogo te dá, sem deixar isso explícito, essa opção de seguir com a trama ou fazer um pouco de exploração por si só apenas para conhecer um pouco mais do universo.
Temos esse primeiro momento na Feira Milenar e novamente quando passamos para o futuro o jogador pode decidir se vai direto para o Lab 32. Mas também pode fazer um desvio para explorar os esgotos que levam até a Cúpula do Guardião — sei lá se essa é o nome na localização, tô usando Google Translate aqui — e ter contato com NPC que terá relevância apenas mais a frente na história.
Esse elemento do ritmo fica mais aparente na reta final de Chrono Trigger Você pode escolher entre enfrentar o último chefão, que o jogo te oferece um atalho desde o primeiro terço da história, ou fazer uma sequência de sidequests que dão ênfase no desenvolvimento de personagens do elenco. Outra vez o jogo te permite decidir se você quer ou não concluir essa jornada logo. Ou seja, não é que Chrono Trigger esteja necessariamente alongando o tempo de duração do jogo, você que escolhe passar mais tempo nele.
Outro fator que ajuda imensamente o ritmo de Chrono Trigger é como a história está sempre te levando a lugares diferentes. Ela cria uma sensação constante de novidade e movimentação, alimentando seu espírito aventureiro. Isso tudo sem que você sinta que a história está seguindo uma fórmula padrão e se alongando mais do que deveria. A viagem por diversas eras poderia se tornar cansativa e repetitiva, mas o jogo leva o jogador de maneira orgânica para cada época e todas elas tem a sua devida importância na construção da trama.
Cada era não tem apenas uma motivação diferente, mas também uma estética e uma atmosfera diferente. Na Idade Média há uma qualidade épica daquele clima de guerra antiga, enquanto o futuro é um ambiente completamente desolador e melancólico. A pré-história é carregada de um sentimento de aventura. Enquanto isso Antiguidade vive num contraste. Uma parte desse período tem um clima de fim de mundo e a outra existe como se não houvesse problemas. É uma falsa positividade para esconder as ações terríveis dessa sociedade.
Aliás, a mudança súbita no tom quando você passa do presente para o futuro causa um imenso choque no jogador. Antes estavámos numa aventura descontraída e de repente somos confrontados com a revelação que existe de fato uma força ameaçando esse mundo. E o pior, toda a população está completamente alheia a sua existência. O Lavos como vilão dessa história foi uma escolha interessante. A forma como ele se introduz no jogo cria um cenário que, mesmo os personagens tendo a capacidade de voltar no tempo, não podem simplesmente impedir que o Lavos nasça.
Nessa pegada de viagem no tempo que a gente nota a paixão que foi posta em cada detalhe desses projetos. Horii já disse em entrevistas como gosta de histórias que abordam viagem no tempo. É por isso que todo esse tema em Chrono Trigger parece vir de uma inspiração sincera e não apenas uma gimmick para se destacar entre os demais RPGs da sua geração. O jogo consegue te fazer pensar em várias obras que usam essa temática tendo o Horii muita familiaridade com as tropes dessas histórias.
Durante todo o arco de consertar a linha do tempo para que a Marle não deixe de existir, por exemplo. O jogo está claramente referenciando o filme De Volta Para o Futuro. Enquanto isso, as estruturas sociais do Reino de Zeal me fizeram lembrar da sociedade segregada dos Eloi e Morlocks em A Máquina do Tempo de 1960. Porém admito que essa não seja talvez uma comparação muito justa. Contudo, seja essa a real intenção ou não, a paixão de Horii pela temática fica embutida no jogo e te faz reconhecer outras histórias familiares que você tenha alguma conexão.
O PICO DO ACTIVE BATTLE SYSTEM
Enquanto Horii põe sua marca no roteiro, Hironobu Sakaguchi traz consigo a experiência adquirida no combate de Final Fantasy. Com isso ele gera outra das grandes qualidades de Chrono Trigger que foi um dos melhores sistemas de luta da época. E eu argumentaria que continua sendo um dos melhores até hoje!
Vindo como uma versão aprimorada do Active Time Battle desenvolvido pelo Hiroyuki Ito no Final Fantasy IV, o sistema de batalha de Chrono Trigger se destaca nos detalhes. O mero início da luta já é algo a se enfatizar, ocorrendo no próprio mapa do jogo sem precisar fazer uma transição de tela. Por vezes você vê os inimigos andando pela tela existindo a parte dos seus personagens. Isso lhe dá a opção de evitar um embate apenas contornando eles, dando uma imensa naturalidade a esse mundo. Claro que há várias batalhas que também iniciam automaticamente por eventos pré-determinados. Ainda sim é fantástico pois os inimigos chegam de formas variadas, às vezes te emboscando, às vezes interagindo com o cenário ou o jogador. O jogo torna a pequena sequência de início de uma batalha um deleite de se ver.
Um dos meus momentos favoritos é durante as Montanhas Denadoro onde um dos monstros está dormindo e você simplesmente passa por ele, só para surgir um inimigo do alto de uma colina e acordá-lo com uma pedrada para ele te atacar… e eu esqueci de tirar uma screenshot!
E quando a gente entra no combate as coisas ficam ainda melhores. Ter as lutas acontecendo no mapa não foi uma mera escolha de apresentação visual, uma vez que o posicionamento dos inimigos em relação aos personagens é determinante pra muitas dessas batalhas já que você pode acertar múltiplos inimigos de acordo com o tipo de habilidade. Habilidades essas que frequentemente servem para um segundo propósito para incapacitar ou enfraquecer determinados inimigos. Nas montanhas que eu citei, você pode usar fogo para queimar as armas dos Trolls que os deixam significantemente mais vulneráveis a esses ataques.
O próprio chefão desse mapa você pode cancelar um dos seus ataques usando o golpes de Slash do Crono. São pequenas adições, mas que fazem as lutas ficarem mais estratégicas e diferentes entre si. E, claro, não podemos esquecer a possibilidade de combinar alguns ataques entre dois ou três personagens que te estimula a usar diferentes combinações do elenco de protagonistas para obter a melhor equipe para cada cenário.
CARISMA PARA DAR E VENDER
Ah sim, o elenco. Outro ponto maravilhoso dessa mestre-peça!
Os personagens de Chrono Trigger não são dos mais complexos, contudo é difícil encontrar um elenco que exala tanto carisma quanto eles. E isso a gente pode agradecer ao Toriyama. Claro que o traço característico dele vai ter um efeito em toda pessoa que teve como um dos seus primeiros contatos com os desenhos japonês através da adaptação de Dragon Ball e Dragon Ball Z, já trazendo uma familiaridade instantânea com os personagens. Mas o que eu vejo se destacar aqui é a personalidade bem-humorada que o Toriyama consegue trazer para dentro do jogo pela expressividade típica dos seus personagens e universos.
Crono, Lucca, Marle, Robo, Frog (ou Glenn) e Ayla — sim, tô ignorando intencionalmente o sétimo personagem — te conquistam por motivos diversos. Seja o senso de humor que eles trazem para o jogo como o Robo e Ayla, ou então pela sua história dramática como Frog e Lucca de forma que você fica com vontade de fazer novas jogatinas só para ver qual será as reações e diálogos únicos de cada um deles nas diferentes passagens do jogo.
Na maior parte a história de Chrono Trigger prioriza a trama, descrevendo a jornada dos heróis em tentar impedir que Lavos venha a destruir o mundo no futuro, com o desenvolvimento dos personagens sendo deixado em segundo plano. Salvo Frog cuja a história é de longe a mais bem trabalhada ao longo de todo jogo, a maioria dos protagonistas tem seus arcos concluídos no último terço do jogo através de uma sequência de sidequests que ficam disponíveis próximas a batalha final contra o Lavos.
E aqui volta novamente aquela questão da qualidade do ritmo de Chrono Trigger, pois mais uma vez você pode decidir dar uma parada na progressão da história para fazer essas missões que definem cada um desses personagens ou então pular direto para o grande embate que estava aguardando. Claro que o jogar será recompensado por esse investimento de tempo com as melhores armas e equipamentos que poderia encontrar pra cada personagem, mas a verdadeira satisfação vem na conclusão de cada um dos arcos que conseguem ser legitimamente comoventes.
A reconciliação de Marle com seu pai, o evento traumático que fez a Lucca se interessar tanto por máquinas, Frog dando paz para alma de seu antigo companheiro e se consagrando como um verdadeiro herói, Robo aprendendo sobre emoções. Todas essas passagens fazem valer cada segunda pois te dá um sentimento de conclusão merecida para esses personagens tão queridos. A única crítica que eu teria para pontuar aqui que nessa parte a Ayla é deixada de lado, sendo a única personagem cuja sidequest envolve uma mera coleta de itens, perdendo uma valiosa possibilidade de trabalhar o destino do seu povo na sua era, consequência da chegada de Lavos no planeta.
O FIM DOS TEMPOS… OU APENAS “CONSIDERAÇÕES FINAIS”
Eu não vejo motivos para entrar em pormenores da trama porque acho que já entreguei detalhes demais e não quero tirar algumas surpresas dos jogadores. O que resta comentar é a beleza poética de que um jogo que justamente lida com um tema de viagem no tempo consegue alcançar a atemporalidade em termos de qualidade. Desde que eu o joguei mais de uma década atrás, Chrono Trigger parece não ter envelhecido um dia sequer. Tudo nesse jogo funciona perfeitamente mesmo depois de 27 anos desde o seu lançamento, tendo a indústria de jogos passado por tantas gerações e novas tendências de game design.
E acredito que Chrono Trigger mantém suas “juventude” por não se tratar apenas de um jogo, mas também uma colaboração histórica de três grandes artistas e visionários dessa indústria que botaram todo seu talento nessa obra para garantir que ela pudesse, tal como seus personagens, quebrar a barreira do tempo e conseguir ser admirada e aproveitada em todas as gerações que ela passar!
O Backlogger precisa do seu apoio para crescer. Então, por favor, compartilhe ou deixe um comentário que isso ajuda imensamente o blog. Você também pode me seguir em outras redes como Twitter, Facebook e Tumblr
Eu concordo com a parte da Ayla, a bixinha, não teve um desenvolvimento muito bom nas sidequests. Sempre achei isso paia, de resto o jogo é 10/10.
Levemente intimidado com o nick, hahaha! Realmente, a Ayla é a mais colocada de lado depois que a linha da pré-história é fechada ali no meio do jogo. Eu não defendo um remake de Chrono Trigger e jamais defenderei, mas não ligaria se alguém fizesse um Ayla’s Quest