Clair Obscur e a “defesa Chiquinha” dos RPGs de turnos

Cena de Chaves em que a Chiquinha "defende" o Nhonho. A imagem foi editada colocando a capa de Clair Obscur: Expedition 33 na mão dela e o letreiro "RPGs de Turnos" no Nhonho

Ontem foi o fatídico dia do evento games daquele miliciano do Geoff Keighley. Mesmo que você não tenha assistido, provavelmente já esbarrou com uma notícia ou um comentário falando que um dos jogos de maior sucesso do ano, Clair Obscur: Expedition 33, ganhou nove dos prêmios para os quais foi indicado. Inclusive nas categorias que ele não deveria estar participando. As próximas 48 horas no Twitter ou Reddit serão cansativas (ou seja, o normal dessas redes).

Pois bem, não vim aqui para discutir o mérito das premiações. No fundo é só uma questão do jogo que você queria que tivesse vencido x o jogo que acabou vencendo. Os prêmios que Clair Obscur ganhou ou deixou de ganhar no The Games Awards não importam nesse momento. O que eu quero falar hoje é sobre a… comoção ao redor desse jogo. Não sei qual é a sua posição sobre ele, mas provavelmente você já escutou que ele vem “recebendo muito hate” nas redes sociais e isso é verdade em partes. Não descarto que existam pessoas que odeiam Clair Obscur, algumas delas não pelos motivos mais honestos. Entretanto, o que uma parcela da comunidade vem criticando – e eu me incluo nela – não é o jogo e sim seus fãs.

Clair Obscur foi uma das grandes surpresas de 2025, ninguém pode negar. Só que, conforme a popularidade do jogo crescia, as pessoas notaram um certo padrão nos elogios. Muita gente o tratava não apenas como um excelente RPG de 2025, mas também como um título revolucionário que veio revitalizar os jogos com combates por turnos. O pior que esse tipo de comentário nem é muita novidade, vimos o mesmo acontecer poucos anos atrás com o fenômeno de Baldur’s Gate 3. Que não era novidade nem dentro do catálogo da Larian. O que já estava claro naquela época ficou ainda mais evidente agora: a ideia de que esses títulos “reviveram” os RPGs de turnos parte de uma galera que simplesmente não consumia tais jogos antes.

Está tudo bem você não ter muito repertório num determinado gênero, pois todo mundo começa de algum lugar. Para dar minha cara a tapa, foi só de alguns anos pra cá que eu comecei a conhecer os beat’em ups para além de uns poucos títulos que eu joguei na infância. Meu repertório consistia apenas de Streets of Rage, Golden Axe, Batman Returns, Double Dragon e The King of Dragons. Nem mesmo o grande clássico Final Fight eu joguei. Mais da metade das referências que eu tenho agora eu tive contato nesse curto período. Mesmo com tudo que conheci, de jogos mais velhos até mais novos, ainda tenho um longo caminho a trilhar. Então para quem começou com Baldur’s Gate 3 e para quem vai começar agora com Clair Obscur: parabéns que você encontrou sua porta de entrada.

Só que esse não é o problema, né? Ninguém quer de fato cagar regra na cabeça desses novatos, achando que eles precisam jogar um Final Fantasy ou um Dragon Quest mais antigo. Acho que é até melhor esse pessoal ingressar por um título mais palatável para as tendências modernas que possui mais chance de clicar com eles. O que incomoda é uma espécie de “defesa Chiquinha” que esses emergentes fãs de Expedition 33 vem fazendo consistentemente com os RPG de turnos.

Ao mesmo tempo que elogiam Clair Obscur pela sua jogabilidade, essa galera sente uma necessidade de diminuir os títulos que vieram antes deles e sua contribuição na história do gênero. Falam quase como se fosse agora que acertaram a fórmula. Eu até brinquei tempo atrás no meu perfil que foi preciso um cara no Ocidente fazer o que desenvolvedores japoneses já produziam há décadas para prestarem atenção nos RPGs de turnos. Surpreende ninguém que quando essas pessoas vão falar do gênero o que elas conseguem citar são as referências mais populares como Final Fantasy VII ou então o primeiro – e talvez único – Persona que tiveram contato. Não é à toa que Clair Obscur já recebeu a alcunha de ser o “RPG para pessoas que não gostam de RPG”.

Eu resolvi escrever esse texto por causa de um tweet que cruzou o meu caminho de um cara que se apresentava como um fã do gênero. A postagem original já foi deletada, então eu vou ter que parafrasear o que foi dito. Era o mesmo padrão de tweet reclamando do “hate” que Clair Obscur estava recebendo. Segundo ele, o jogo merecia ser aclamado porque os RPGs de turnos “respiravam por aparelhos”. Esse tweet me deu até uma nostalgia me fazendo lembrar de quando um fã de JRPGs disse que combate por turnos eram usados por causa da limitação tecnológica da época.

*sigh*

Dragon Quest XI, Shin Megami Tensei V, Chained Echoes, Sea of Stars, Octopath Traveler, Metaphor: ReFantazio, Darkest Dungeon, Yakuza: Like a Dragon, Fire Emblem: Engage, Wasteland 3, Omori e três jogos de Pokémon diferentes. Esses são alguns dos RPGs de turnos lançados de dez anos para cá que eu consigo citar de cabeça. Não precisamos fazer qualquer juízo de valor aqui para dizer quais são bons RPGs de turnos e quais não, pois os citei apenas para ilustrar a cacetada de jogos que tivemos nesse período. Portanto, pintar um quadro que o gênero estava em decadência é só uma forma de dar a Clair Obscur uma proporção messiânica.

Percebem que não é uma mera questão de elogiar o jogo pelas suas qualidades? Há também uma necessidade de criar um cenário apocalíptico que simplesmente não reflete aquele que os fãs desses jogos conhecem. É essa prepotência que tem irritado tanto as pessoas, pois ela menospreza a contribuição que outros títulos tiveram para os RPGs de turno querendo entregar todo o crédito nas mãos de Expedition 33.

Embora eu tenha pegado um exemplo ocorrido hoje, não pensem que isso é um caso isolado daquele único indivíduo. É uma mentalidade coletiva. Agora mesmo eu fui olhar uma notificação no meu Twitter e caí num comentário do cara se referindo a outros RPGs de turnos como “bons”, porém “apenas jogos de nicho” e não – implicitamente falando de Clair Obscur – “uma obra-prima que vai marcar a história do videogame”. Notem de novo que não é apenas elogiar um jogo, mas desdenhar de todos os demais.

Um dos comentários que mais me incomodam é os que dizem que o gênero precisava se atualizar, ou que tinha se estagnado, ou no vocabulário do gamer médio, estava datado. Falam como se os RPGs de turno que temos agora fossem nos mesmos moldes os Dragon Quest clássicos e que nenhum deles explorou novas mecânicas. Se você pegar alguns dos exemplos que citei ali em cima irão encontrar várias abordagens distintas dentro desse formato de combate por turnos. O gênero respirava e continua respirando muito bem sem a ajuda de qualquer salvador.

Além disso, é particularmente ridículo querer vender Clair Obscur como um RPG super revolucionário por incorporar QTEs, parry e dodge no meio do combate. Ninguém mais aguenta apontar que tais conceitos já apareceram em jogos como o clássico Super Mario RPG: Legend of the Seven Stars, de 1996. Aliás, só na franquia de Mario temos mais duas séries que utilizam essas mecânicas: Paper Mario e Mario & Luigi. Virgo Versus the Zodiac, um RPG verdadeiramente indie, é outro que também faz isso.

Nem o tal dinamismo que já vi elogiarem em Clair Obscur dá para colocar como novidade. Chrono Trigger, por exemplo, já tinha mostrado isso com seu excelente ATB aprimorado. Isso não significa que o jogo não trouxe coisas interessantes para sua jogabilidade, só que não existe motivo para achar ninguém vinha experimentando essas mesmas coisas de alguma forma ao longo da história dos RPGs de turnos.

Mas o fã de Clair Obscur parece que escolhe ignorar isso. Todo santo dia tem uma opinião de revirar os olhos de qualquer um com mais de dez RPGs de turnos no seu repertório. Não é o suficiente para eles que seu joguinho favorito (e popular) seja visto como um bom RPG. Eles precisam se convencer que ele é revolucionário e que nada antes dele apresentou esse mesmo nível de qualidade. Infelizmente vai ser assim por pelo menos os próximos meses. No máximo um ano e pouquinho. Depois deve sair um novo RPG com gráficos padrão mainstream AAA e então Clair Obscur vai parar no fundo do mesmo armário que botaram Baldur’s Gate 3.


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6 comentários em “Clair Obscur e a “defesa Chiquinha” dos RPGs de turnos”

  1. Digo uma coisa, se E33 não tivesse os gráficos “realistas Unreal 5” ele não seria tão falado, FATO.
    Dito tudo isso, sou um desses que não era muito chegado nos jogos de turno, não que eu não gostasse das suas mecânicas, apenas nunca peguei para jogar muito esse tipo de jogo (Chrono Trigger foi um dos primeiros que joguei, amei). Após ter jogado E33, abri mais a mente para jogos de turno e pretendo continuar a explorar esse gênero “morto”, segundo certas pessoas. Bom texto Belmonteiro

    1. Também não tenho dúvidas. Tanto é que teve aquele tweet lá atrás do cara destacando como o jogo tinha “visuais de alto padrão”. Mas o importante é ter essa mentalidade aí mesmo. Encarar E33 como uma porta de entrada para um universo de jogos e não a grande experiência definitiva de combate por turnos

  2. Eu SABIA que teria um post seu sobre essa atrocidade que aconteceu no “Jota Quest / Coldplay” do evento de games apresentado pelo Luciano Huck. Kkkkkk

  3. A comunidade gamer, dentre todas consegue sempre se manter como uma das mais ignorantes (e olhe que a competição é acirrada). Sempre que algum jogo novo fura a bolha, parece que automaticamente ele inválida tudo o que foi feito anteriormente. Parece até que esvaziam a parte artística/criativa por trás de cada obra para que a análise seja puramente técnica/mecânica. Toda experiência anterior passa a ser anulada pois o software novo superou o antigo e não existe mais necessidade de retornar ao antigo. (ora ora, se não é o capitalismo novamente).

    Faz parecer que toda uma história que já beira quase seus 60 anos não existiu (inclusive, vou deixar um artigo meu sobre a criação de Dragon Quest* aqui, se não for muito incômodo). Todo mundo alavanca um novo jogo como revolucionário, sendo que vários outros foram colocando as pedras no caminho. Se chegamos até aqui é porquê muita gente experimentou, pôs em prática, e entregou experiências muito boas que não podem ser simplesmente deixadas para trás somente pois algumas mecânicas ficaram ultrapassadas.

    * https://inextrospectum.com.br/dragon-quest-a-historia-de-desenvolvimento-de-uma-lenda

    1. Incômodo algum, pode sempre deixar artigos aqui que eu leio quando tiver tempo. Aliás, muito bacana o seu blog. É sempre satisfatório ver um pessoal mais novo mostrando interesse pelos jogos retrô pra quebrar a narrativa que esses títulos não se conectam às gerações mais novas.

      E mais uma vez obrigado pelo comentário!

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