A falta de interesse no jornalismo gamer vem de cima

Meme do "Who killed Hannibal" tirado de The Eric Andre Show. A imagem foi editada mostrando a logo do canal Loading, que tentou fazer jornalismo gamer, no rosto do Eric e a logo da Kalunga, que era dona do canal, no rosto do apresentador Eric
Quem matou o jornalismo gamer?

Já faz alguns meses que rolou aquela notícia sobre fim do NerdBunker. Tudo que eu tinha para comentar sobre o caso está naquele artigo, mas eu queria fazer uma sequência. Não é exatamente sobre o NerdBunker e sim sobre uma discussão que surgiu a partir dele. Naqueles dias, muito se falou* sobre o futuro jornalismo da cultura pop. É uma área que dá para dividir em vários segmentos, mas quero me centrar no famigerado (e por vezes infame) jornalismo gamer.

*estou sendo um tanto generoso com esse muito.

Se eu dissesse que a relação entre jornalistas e gamers é conturbada eu estaria usando um eufemismo. É uma briga de cão e gato histórica que se intensifica há mais de décadas e eu diria de maneira muito unilateral. O gamer odeia o jornalista muito mais do que o jornalista odeia o gamer (e olha que eles tem muito mais motivos). Daria para explorar o porquê de toda essa raiva, mas não é hoje que vou falar de anti-intelectualismo e despolitização na comunidade gamer aqui no blog. Portanto, se tiver algum psicanalista de plantão por aqui, sinta-se à vontade para explorar esses (des)afetos.

Apesar de eu falar brincando, fato é que o jornalismo gamer não é benquisto por muitos gamers. Embora alguns vão tentar te convencer que tem bons motivos, esse repúdio se sustenta por meio de muitos espantalhos, generalizações e má-fé. Porque é só um jornalista em algum lugar do mundo fazer uma matéria ruim que pronto: ele passa a ser o representante de tudo que há de ruim no jornalismo gamer. Infelizmente existem muitas pérolas e jornalistas pelo mundo. Mais do que o suficiente para inflamar esse lado histérico da comunidade gamer. Vocês sabem muito bem de QUEM eu tô falando.

Como eu tenho uma memória muito boa para tretas, separei alguns exemplos de casos passados:

O primeiro é um clássico: a folclórica gameplay de Cuphead do Dean Takahashi. Ela talvez seja o maior símbolo da ideia de que jornalistas são péssimos em vídeo games. Outra ocorrência que gosto de citar é sobre a vez que a Kotaku UK publicou um artigo em cima de uma ideia maluca que a letra de uma música da DLC de Super Smash Bros. Ultimate usava a palavra “retardado”. Só de descrever a situação eu já me pego questionando por que o editor permitiu que isso fosse publicado? Para falar de algo mais recente, teve aquela crítica de Wukong da Screen Rant que gerou controvérsia porque colocaram como um dos pontos negativos a falta de representatividade no jogo. Uma tempestade em copo d’água que colabora para a ideia que jornalistas tentam empurrar alguma agenda para cima de você.

Por fim trouxe a minha anedota favorita. Essa foi quando a Nintendo botou a Kotaku na sua lista negra depois que o site publicou artigos sobre vazamentos de jogos ainda não lançados. Um dos jornalistas que trabalhavam no site, Luke Plunkett, achou que seria de bom tom publicar isso no seu perfil:

Infame tweet do jornalista Luke Plunkett quando a Nintendo colocou a Kotaku na sua lista negra depois que o veículo publicou artigos sobre vazamentos de jogos não lançados. No tweet, Luke postou uma foto de um piloto japonês da Segunda Guerra Mundial com a legenda "For the record, this is how I feel about publisher blacklists"

Selecionei esses exemplos específicos porque cada um deles tem um grau diferente na validade das críticas que receberam. A matéria da Kotaku UK é sem dúvidas a que mais mereceu o rechaço do público. Foi uma demonstração clara de péssimo jornalismo, sem uma apuração mínima dos fatos apenas para conseguir cliques com uma polêmica fabricada. Tanto é que hoje você só vai encontrar o artigo por meio do Wayback Machine já que a Kotaku tirou do ar.

Já o caso da gameplay de Cuphead do Dean Takahashi a coisa fica um pouco nebulosa. Consigo entender umas reações, porém ao mesmo tempo acho que tem muita implicância com o caso. Realmente o Takahashi realmente não é um “manjão games” e tem mais de uma gafe no seu histórico, como o fatídico episódio em que ele fala besteira de Mass Effect porque não percebeu que dava para evoluir os personagens. Além disso, ver a gameplay dá nos nervos porque parece que ele nem mesmo leu o texto destacado no próprio plano de fundo do tutorial. Contudo temos que lembrar que o Takahashi não é um crítico de vídeo games. A especialidade dele é na parte mais empresarial da indústria. Provavelmente o que aconteceu é que passaram para ele a responsabilidade de fazer as reviews desses jogos na época e deu no que deu.

Aí temos o lance da crítica de Wukong da Screen Rant que é pura histeria de gamer reaça que brinca mais com guerra cultural do que vídeo game. No texto existem vários outros pontos que mostram o que influenciou a nota da jornalista e que nem mesmo era uma nota baixa. Porém focaram na parte da representatividade porque é a que mais convém para a histeria reacionária. Por último temos o tweet do Luke Plunkett que é uma falta de profissionalismo e bom senso indefensável. Entretanto a responsabilidade pela postagem é inteiramente dele, apenas um maluco querendo causar. Existe validade em criticar a atitude dele, não a classe jornalística.

Por esses motivos que eu sempre fico com um pé atrás quando vejo alguém tacando pedra no jornalismo gamer. Tem críticas e tem “críticas”. A área está aí exposta ao escrutínio público, só precisamos avaliar em qual dos grupos o tom da fala se encaixa. Se tratando de jornalismo gamer as críticas legítimas existem aos montes. Por exemplo, tem vezes que esses veículos mais parecem ser um departamento paralelo de Relações Públicas & Publicidade para os grandes estúdios. Existe uma produção de manchetes caça-cliques, matérias sem apuração lançadas às pressas para ser o primeiro a reportar algo e artigos escritos apenas para fins de desempenho de SEO do site. Mas não é nada que um trabalho editorial competente não possa resolver. Além disso, os próprios profissionais da área levantam algumas críticas.

Uns dois anos atrás, o Rique Sampaio fez uma “thread desabafo” comentando alguns pontos precários que ele enxerga na área. Essencialmente não existe muita perspectiva para a carreira de jornalista gamer a longo prazo, a não ser que vá para as Relações Públicas ou cubra o cenário de e-sports. Empresas sucateiam os profissionais, contratando os mais jovens que aceitam trabalhar por salários baixíssimos. Nessas idas e vindas nas redes sociais já esbarrei com muitos relatos de como o jornalista gamer vive em rotatividade. Passa um ou dois anos e já tem que procurar outra vaga porque o veículo que ele estava ou cortou equipe ou fechou as portas. Muitos acabam se arriscando na criação de uma marca própria e independente, como é o caso do X do Controle, Overloadr e Jogabilidade.

Acho interessante como esses podcasts que eu destaquei se mantêm vivos graças ao financiamento coletivo. Porque é um fato que vai contra a noção de que não existe interesse em jornalismo gamer. Até que tem uma parte birrenta da comunidade que não quer saber de jornalismo mesmo. Isso é um sintoma da epidemia de Orgulho de Ser Burro™ que é forte entre gamers. Entretanto, eu cansei de ver postagens discutindo tópicos que surgiram através da mídia, tanto gringa quanto nacional. Portanto, se temos vários projetos com uma pegada jornalística que sobrevivem financiamento coletivo, acho que é minimamente justo considerar que existem sim pessoas querendo jornalismo gamer no Brasil. Então por que ele não engrena?

Foto de Jason Schreier, um dos profissionais mais reconhecidos do jornalismo gamer

Para responder esse questionamento, acho que o melhor caminho é olhar para onde, ou melhor para quem, deu muito certo: Jason Schreier. Autor de Sangue, Suor e Pixels, Press Reset e Play Nice, o Jason é de longe a voz mais conhecida e reconhecida do jornalismo gamer. E por que ele é uma grande referência? Exatamente por ser A referência!

O Jason começou pelo mesmo ponto que muitos outros jornalistas começam que é com trabalho freelancer. Ele contribuiu com várias revistas e sites como Wired, Eurogamer e Paste até que conseguiu uma vaga de repórter na Kotaku, onde ele teve uma grande ascensão.

Enquanto esteve na Kotaku o Jason escreveu centenas de matérias. Muitas delas seguiam o padrão de notícias que estamos acostumados. Porém aquelas que o fizeram se destacar envolviam histórias de desenvolvedores que mostram os problemas dos processos internos da indústria como o crunch.

Em 2020, o Jason saiu da Kotaku por conta das suas desavenças com a mudança de gestão que a empresa sofreu. De lá ele foi para a Bloomberg News na qual ele continua cobrindo os mesmos tópicos que solidificaram sua carreira como jornalista. As matérias que ele produz servem de base para dezenas de artigos de outros veículos, inclusive os brasileiros. Querem um experimento rápido? Busquem por “jason schreier gta 6” na aba de notícias do Google.

É inegável o quanto o trabalho do Jason contribui para o meio e como ele consegue pautar muitos debates internet a fora. Acho que é aí que reside o problema do jornalismo gamer no Brasil. Não precisamos ter o Jason Schreier brasileiro, já temos jornalistas competentes por aqui. O que precisamos é dar mais espaço para que o jornalismo saia desse giro de notícias e também consiga abrir discussões. Caso contrário, vai parecer que só temos os mesmos sites requentando as postagens uns dos outros.

Se você abrisse a aba de vídeo games do NerdBunker duvido que você veria muita diferença de um The Enemy (que também já fechou as portas), Adrenaline e outros sites menores ou independentes. Sabe aquele ditado popular “mãe é tudo igual, só muda de endereço”? De certa forma dá para falar o mesmo do jornalismo gamer brasileiro. Existem exceções, evidentemente. Essa é a palavra-chave, são exceções.

Um bom exemplo recente é a matéria da Voxel sobres condições de trabalho que desenvolvedores e funcionários passaram na Gamescom Latam. Foi um artigo que repercutiu até numa rede social fantasma como o Bluesky. Ele tocava num tópico pertinente que se distanciava de todo o outro conteúdo com uma veia mais publicitária que a gente encontrava naquele período sobre o evento. A essência do jornalismo, não só o jornalismo gamer, está aí. Não é apenas noticiar fatos que as próprias empresas divulgam. Jornalista não apenas reporta, ele investiga, ele apura, ele analisa. Mais ainda quando é algo que não seria do interesse de pessoas ou grupos em posição de poder.

Por que isso não é feito? Bom, aí vai outra opinião pessoal minha. Acredito que é sim devido a uma falta de interesse, porém não do público e sim do alto escalão que controla esses veículos de mídia. E nesse cenário não existe um exemplo mais emblemático do que tudo que aconteceu nos primeiros dias da já extinta Loading. A Loading surgiu ali no final de 2020 com a proposta de ser um canal de televisão focado na cultura pop, cobrindo tudo sobre filmes, séries, animações, vídeo games, etc. Ela pertencia à Loading Entertainment Media que por sua vez era uma startup do grupo varejista Kalunga. O canal ficou menos de um ano no ar e mesmo assim sua história ficou cheia de controvérsias.

A que mais interessa para este texto é o caso do Metagaming. Esse programa tinha o potencial de ser um dos carros-chefes do canal, pois focaria na cena de e-sports. Era uma equipe competente, capitaneada por dois profissionais experientes dos e-sports, a Barbara Gutierrez e o Chandy Teixeira. Porém o Metagaming acabou ficando mais conhecido pelo seu fim do que pelas suas matérias. Até porque só tiveram duas*.

*para ser sincero, eu não lembro se o programa voltou depois.
Caso tenha voltado, me corrijam aí nos comentários.

A equipe de jornalismo chegou com os dois pés na porta com uma reportagem investigativa sobre um possível esquema de fraude numa campanha de arrecadação de fundos de um jogador famoso da Twitch, o caso Sparda. Entretanto teve alguém que não gostou dessa matéria: a direção da Loading. Ela queria que o programa focasse em notícias mais positivas porque o objetivo do canal era ser um lugar alegre e livre de polêmicas. Alegria, e-sports e livre de polêmicas são três coisas que combinam muito, né?

Aliás, isso foi algo que Leonardo Kitsune falou recentemente num episódio do Don Podcast. Ele foi chamado para compor o editorial de animês e mangás e conta que no primeiro dia de trabalho a direção já veio empurrando a ideia que não queria um conteúdo que fosse muito político e sim mais “alto astral”. Algo mais chapa branca, vamos chamar assim. Porém a equipe do Metagaming estava lá para fazer jornalismo então no dia seguinte ela dobrou a aposta.

A equipe entregou outra matéria espinhosa falando sobre a equipe da Vivo Keyd ter ficado de fora do Campeonato Brasileiro de League of Legends. Tanto o fato quanto a notícia gerou uma repercussão negativa para a Riot Games e mais uma vez desagradou a direção da Loading. Só essa segunda “infração” não terminou com uma mera advertência, o editor-chefe do programa, Vicenzzo Mandetta, foi demitido e proibiram que quaisquer assuntos polêmicos fossem noticiados. Não concordando com essas exigências, todos os jornalistas do Metagaming concordaram em pedir demissão. Algo que nem chegou a ser necessário pois a Loading simplesmente acabou mandando todo mundo embora logo após a saída do editor-chefe.

Quem quiser mais detalhes, a página da Wikipédia é bem clara sobre toda a sequência de eventos que culminaram no fim do Metagaming.

Um dos motivos de eu gostar desse case desastroso da Loading é porque tem muito cínico de internet que adora repetir aquela frase de como “jornalismo de qualidade exige recursos”. Só que uma coisa que essa frase não diz é que esses recursos não estão sob o controle dos jornalistas. Às vezes não estão nem no controle dos jornais porque muitos deles são subsidiários de grandes empresas. A Bloomberg News, na qual o Jason Schreier trabalha por exemplo, é da Bloomberg L.P e precisa se alinhar com os interesses dela.

Vamos fazer um exercício de imaginação aqui. Digamos que a Bloomberg decida entrar no mercado de desenvolvimento de jogos, criar um estúdio e anunciar seu primeiro título com um investimento pesado. Um belo dia o Jason Schreier recebe de fontes internas que a equipe do estúdio está sendo submetida a um crunch severo. Logo, como ele fez em outras ocasiões, o Jason escreve uma matéria e envia para o editor da Bloomberg News. Agora eu pergunto a vocês, quem aqui acredita que esse artigo seria publicado?

Mas para não ficar no campo hipotético, vamos aqui a mais um exemplo do mundo real. Porém dessa vez eu vou sair um pouquinho dos vídeo games. The Washington Post é um dos três maiores jornais do Estados Unidos e em 2013 foi comprado pela Nash Holding. De quem é essa empresa? De ninguém menos que o bilionaríssimo Jeff Bezos. Esse ano ele lançou uma série de restrições sobre as colunas de opinião que fizeram o chefe da página pedir demissão. Viram como a questão do interesse não é algo que vem só de baixo? Você pode ter recursos e público, mas você ainda está sujeito ao grande capital.

O pior é que até mesmo a mídia independente acaba ficando à mercê desses grupos de um jeito ou de outro. Em 2023, eu escrevi no BO da Semana o artigo XboxBR e a mídia gamer dependente. O que acontecia naquela época era que o Xbox Series S, console que chamava atenção pelo seu custo-benefício comparado a concorrência, sofreria um aumento de preço. Em valores arredondados, o Xbox ia sair de R$ 2.650,00 para uns R$ 3.600,00 e claro que isso desagradou a comunidade. A mídia brasileira não ficou calada e vários sites replicaram a notícia sobre o aumento.

Daí surgiram uns relatos que a Xbox Brasil exigiu que várias redações retornassem os consoles que foram cedidos para as suas equipes. O Ariel do Combo Infinito foi um dos que confirmou os boatos. Segundo ele, o contrato com a Xbox falava um de “empréstimo indeterminado” e para bom entendedor meia palavra basta, né? Não era de interesse para a Xbox Brasil que sites ficassem chamando atenção pelo encarecimento do console, entretanto como ela não controlava nenhum desses veículos. Então a Xbox exerceu pressão de outra forma. Vídeo game nunca foi um negócio barato no Brasil, então essas concessões de consoles e chaves de jogos acabam sendo fundamentais para sites que já não possuem recursos para fazer jornalismo e dependem muito de cobrir lançamentos.

O fim do NerdBunker acaba fazendo um infeliz eco com o fim do Metagaming. Chega a ser curioso que ambos eram controlados por empresas do ramo de varejo. O The Enemy de certa forma dá para fazer um paralelo também já que foi absorvido pelo Omelete. Que, vejam só, é propriedade da Omelete&Co que é co-organizadora da Gamescom Latam. Agora eu pergunto, vocês acham que teve alguma matéria no site deles a respeito daqueles problemas que os desenvolvedores brasileiros relataram nas redes sociais? Tá fácil essa!

Pode criticar o jornalismo gamer a vontade com a devida honestidade intelectual. Só nãos vamos ser inocentes de achar que o problema é falta de interesse do público. Não quando mais de uma vez a gente vê como o “andar de cima” não deixa seus jornalistas irem além das pautas inofensivas para garantir que seus interesses e os dos seus possíveis anunciantes e parceiros estejam em segurança.


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