
Não dá para falar da cultura nerd no Brasil sem falar do Jovem Nerd, uma iniciativa do Alexandre Ottoni, o homônimo Jovem Nerd, e do seu amigo e sócio Deive Pazos, o Azaghâl. Os dois pavimentaram o conteúdo nerd na internet brasileira, bem como foram peças-chave na gênese da nossa podsfera. O que começou como um humilde blog, logo se tornou a principal referência de cultura pop no país e a “cara” do nerd brasileiro. Em 2021, Alexandre e Deive venderam o site para a Magazine Luiza, mas garantindo que os conteúdos da marca – tais como o Nerdcast, o principal podcast do site e o NerdBunker, seu portal de notícias – continuariam sendo produzidos com liberdade criativa.
Só que havia um asterisco nessa história!
Anteontem, parte do público nerd que ainda acompanhava religiosamente o Jovem Nerd foi pega de surpresa quando a Jessica Pinheiro avisou no seu perfil que o NerdBunker acabou. Bom, não literalmente. O portal continua ativo no site, porém demitiram toda a equipe com exceção de um redator. Segundo uma nota enviada ao Drop de Jogos, continuará “cobrindo o universo da cultura pop com entusiasmo e criatividade”. Em outra nota, no perfil oficial do Instagram, também reforçam que o NerdBunker “continua vivo e ativo”. Cinco demissões além de todos os freelancers que contribuiam com o site, mas parece que o ChatGPT já garantiu o contrato, hein?
Talvez para muitos a notícia não venha como uma surpresa, dirão que é até um milagre que o NerdBunker tenha durado tanto tempo com sua equipe. Por isso que o sentimento não chega ser exatamente o de fim de uma era, mas sim que é tudo parte de um processo de longa data na cobertura de cultura pop. De tal forma, o fim do NerdBunker é apenas mais uma das trombetas do Apocalipse do conteúdo escrito na internet.
Assim que a postagem da Jessica passou na minha linha do tempo eu fui olhar os comentários no Bluesky, no subreddit do Jovem Nerd e em outro que frequento. Encontrei bastante gente se solidarizando com a equipe, afinal são cinco pessoas que ficaram sem emprego numa terça-feira qualquer. Também encontrei algumas pessoas dando o atestado de ignorância disfarçado de deboche ao dizer que nem sabia o que era o NerdBunker. Não uso ignorância aqui como insulto, ok? Talvez não totalmente. Só acho meio bobão a atitude de dizer que não conhece um portal como se isso falasse mais dele e não de você. Enfim, continuando!
Também encontrei uma galera já conformada com a notícia. Porque, para algumas pessoas, a linha editorial do NerdBunker já tinha perdido qualquer traço de identidade própria, se tornando a mesma reprodução de notícias frias, quase robóticas, que todo site e cultura pop. Eu até cheguei a dar uma conferida e, salvo as eventuais críticas de filmes, séries e jogos, não parecia haver mais nada muito autoral no Jovem Nerd na parte de redação. As colunas de opinião já haviam parado desde o ano passado e assim o NerdBunker não parecia mais ser qualquer coisa além de um apanhado de notícias amorfo mesmo.
Outra coisa que chamou minha atenção foi uma postagem no Bluesky. Na verdade, um print de uma postagem no Bluesky. O usuário falava como a situação do NerdBunker não é um caso isolado, pois o jornalismo hoje só se mantém financeiramente em dois modelos. De um lado você tem os veículos gigantes como aqueles do Grupo Globo ou Grupo Folha. Do outro, você tem os veículos independentes que operam com equipes reduzidas e financiamento coletivo. Aqui podemos citar o caso do Jogabilidade que vem se mantendo há uns 15 anos com a ajuda do seu público.
Mas para mim ainda é um pouco estranho pensar nisso acontecendo até no Jovem Nerd. Sei que o site já não gozava da mesma popularidade entre o público nerd dos seus tempos áureos, mas em termos de manter uma fanbase fiel e engajada ele nunca teve esse problema. Ainda mais considerando que é um público com alto poder aquisitivo. Basta lembrar que o Jovem Nerd teve três campanhas de financiamento coletivo de grande sucesso em tempos recordes:
- Nerdcast RPG – Coleção Cthulhu: meta inicial de R$ 300.000,00 e arrecadamento total de R$ 8.519.412,00;
- Tesouros de Ghanor: meta inicial de R$ 500.000,00 e arrecadamento total de R$ 8.643.687,00;
- Ozob – A Cyberpunk Board Game: R$ 800.000,00 e arrecadamento total de R$ 5.328.492,00.
Só para destacar um exemplo, nessa última campanha tiveram 517 apoios no valor de R$ 2.890,00. Então, se o Sr. Alexandre e o Sr. Deive quiserem mobilizar seu público para financiar um projeto, eles conseguem. Mesmo que não sejam mais os donos do site, o Jovem Nerd e o Azaghâl ainda são a voz e o rosto da marca. Aliás, deixa eu fazer uma pequeno comentário aqui. Curioso como mesmo depois de 48 horas o Sr. Alexandre e o Sr. Deive andam bem quietinhos sobre a demissão, né? Talvez nem tanto para quem tem memórias do Pink Vader. Será que o fato de ambos terem uma posição na diretoria da Magazine Luiza – mesmo que possa ser um cargo simbólico – tem haver com alguma coisa? Questionamentos…
EDIT 30/05/2025: Para ser justo com o Sr. Alexandre e o Sr. Deive, falaram da demissão no NerdCast 982. Porém ainda não levo tanta fé assim nesse papo de que IA não será utilizada…
Dá para argumentar que o público não teria tanto interesse em financiar um portal de notícias como dos projetos criativos. Mas duvido que não o bastante para conseguir sustentar uma equipe de seis pessoas. Até porque essa mesma equipe iria colaborar em outras áreas do Jovem Nerd. Redator não escreve apenas artigos. Tanto é que isso já vinha acontecendo, como o exemplo do Gabriel Avila e da Camila Souza que comandavam o podcast do Lá do Bunker. Podcast este que foi encerrado com a demissão de ambos os apresentadores.
A questão é que hoje o Jovem Nerd já não funciona segundo os interesses do Sr. Alexandre e do Sr. Deive e sim da Sra. Magalu. Assim não existe mais a lógica de manter um portal para trazer tráfego orgânico para o site e suas outras áreas, bem como entregar mais uma forma de conteúdo para sua audiência e ter uma equipe talentosa que mantenha o nível de qualidade associado a sua marca. A lógica agora é a corporativa onde se uma área da empresa não está dando lucro, ela é cortada sem piedade. Ainda mais quando a empresa em questão está se desvalorizando no mercado.
Portanto, para gestores que não enxergam nada além de números e gráficos numa planilha, para que manter uma equipe de redação? Ainda mais quando dá para você supostamente fazer o mesmo trabalho deles com apenas um redator precarizado e uma conta plus do ChatGPT? Acho que ninguém aqui carrega qualquer dúvida que a tal “adaptação às novas tendências” que a gestão pretende fazer é automatizar a redação de artigos com inteligência artificial generativa. Jovem Nerd não seria o primeiro a fazer isso e também não será o último.
O fim do NerdBunker nos coloca mais próximo do apocalíptico fim do conteúdo escrito na internet. Em parte eu falo isso para fazer um título chamativo, porém também tem um pouco do meu pessimismo embutido na afirmação. Notem que eu não me refiro exclusivamente ao jornalismo, que tem toda sua gama de problemas próprios, falo do conteúdo escrito como um todo. Artigos de opinião, críticas, ensaios, etc; tudo isso faz parte do conteúdo escrito da internet. O formato já vinha perdendo espaço há décadas na internet, com um público optando cada vez mais pelo audiovisual, e ano após ano a situação piora um pouquinho mais. O ChatGPT veio aí trazendo os últimos pregos para o caixão.
Até porque até as grandes empresas de tecnologia parecem conspirar para a extinção do conteúdo escrito. Embora eu não duvide que a demissão da equipe do NerdBunker é consequência de uma péssima gestão da Magalu, tem outro culpado nessa história: Google. Engana-se o leitor que acha que hoje os sites disputam entre si pela sua atenção (cliques), eles disputam pela atenção do Google. Ou melhor, dos algoritmos do Google.
Boa parte da produção textual na internet não tenta atrair leitores através de conteúdo relevante de alta qualidade. Esse conteúdo é desenhado pensando em como ter o melhor desempenho possível nos mecanismos de buscas – o chamado search engine optimization (SEO) – para aparecer nos primeiros resultados. Por isso que temos artigos como “Caminhão com 800 mil moedas tomba em rodovia e cria “caça ao tesouro” de 14 horas nos EUA“ numa IGN Brasil. Não importa o conteúdo, importa chamar a atenção do robozinho e melhorar seu ranking nas buscas.
E o Google vem ajudando a matar sites de formas bem criativas, até mesmo quando supostamente deveria estar ajudando. Eu já falei algumas vezes aqui sobre o Discover, uma plataforma do Google para smartphones que recomenda textos com base no hábito de leitura do usuário. Só que o funcionamento do Discover é no mínimo questionável. Ele parece dar e cortar o alcance dos sites aleatoriamente, derrubando a audiência dos mesmos. No meu caso pessoal, os dois textos que deram mais resultado na história do blog foram os de fangames de RPG Maker dos Cavaleiros do Zodíaco. Especificamente o de As Novas Lendas e A Saga de Hades. Ambos apareceram no Discover e renderam uma quantidade de cliques que nunca tive nesses meus dois anos no blog.
E o que aconteceu em seguida? Os textos sumiram de lá e a última vez que o blog apareceu no Discover foi com o meu texto da animação Flow. Quando você soma tudo, fica evidente que o conteúdo escrito na internet não depende mais do talento dos redatores. Ele está a mercê dos interesses das empresas que controlam os veículos de mídia, que por sua vez estão sujeitos às “tendências” fomentadas pelas empresas de tecnologia. É um cenário pessimista hoje, pessimista amanhã e pessimistas sempre.
Mas talvez ainda haja esperança! Ou pelo menos eu quero acreditar que há.
Empreitadas como o Jogabilidade ou o Overloadr que já estão há mais de dez anos se sustentam com financiamento coletivo trazem um pouco de luz nesses tempos sombrios. Veículos e criadores de conteúdo independentes seguirão remando contra a tempestade para continuar falando das suas mídias sem se prenderem a uma lógica corporativista. E se tratando de conteúdo escrito, e peço desculpas previamente pelo momento narcísico, tem coisas como o Backlogger.
Ao me autocitar eu não quero me colocar como uma referência de conteúdo escrito de qualidade. Eu até acho que tenho muitos textos bons por aqui, mas o que quero dizer é sobre a dinâmica que eu tenho com meu blog. O Backlogger é um projeto pessoal que enxergo como uma extensão dos meus hobbies. Eu não tenho pretensão de ganhar dinheiro com ele. Adoraria ganhar, mas não é isso que me move. Isso tem seus reveses, contudo garante que os textos mantenham uma característica pessoal e própria. E é isso que eu acho que vai acontecer no futuro dominado por textos gerados por IA e formatados para SEO. Quero acreditar que as pessoas em algum momento vão procurar algo que não se limite a responder os o quês, quens, quandos, comos e ondes.
Já tive provas que essas pessoas existem por aí. Hoje eu sei que não tenho apenas leitores que chegaram aqui por um clique num dos resultados do Google. Tem gente que frequenta com regularidade o Backlogger e lê meus textos por achar a minha escrita de alguma forma envolvente ou por ter interesse na minha opinião naquele tópico em particular. E tem muito mais gente fazendo isso seja nos seus blogs próprios ou plataformas como o Medium e o Substack.
O fim do NerdBunker talvez só nos mostra que a perspectiva de ganhar a vida escrevendo sobre cultura pop não seja mais uma realidade alcançável. Por isso minha solidariedade a equipe que foi demitida, pois eu já sonhei em estar na posição que eles estavam até segunda-feira. O espírito de querer falar do seu joguinho, do seu filminho e da sua sériezinha é que não vai acabar. Enquanto tiver papel e caneta – e seu equivalentes digitais – a gente continua escrevendo.
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