No final década de 80, Tokuro Fujiwara andava pelos estúdios da Toho acompanhado do diretor de cinema Kiyoshi Kurosawa. Fujiwara foi responsável por alguns dos clássicos de arcade da Capcom, como Commando e Ghosts ‘n Goblins, e naquele período estava encarregado do novo projeto da empresa. Diferente de tudo que ele trabalhou antes, esse seria um jogo para consoles, especificamente o Nintendinho, que teria como base um filme produzido pela Itami Production e distribuído pela Toho: Sweet Home!
Se existe um registro da visita de Fujiwara, ele não está aberto ao público. Mas pelas datamos podemos imaginar que ocorreu em algum momento entre 1988 e 1989. O filme chegou aos cinemas em janeiro de 1989, contudo não está muito claro se o desenvolvimento do jogo ocorreu durante ou após sua produção. O lançamento oficial consta como 15 de dezembro, 11 meses após o filme.
Na história seguimos um pequeno grupo formado por Kazuo, sua filha Emi, a produtora Akiko, o cinegrafista Taguchi e a restauradora de arte Asuka. Os cinco vão para a antiga mansão do artista Ichirō Mamiya, abandonada desde a sua morte. Lá eles pretendem restaurar alguns dos seus afrescos deixados para trás que pretendem incluir num documentário sobre a vida de Mamiya. Porém, logo o grupo descobre que o espírito da esposa de Ichirō, Lady Mamiya, assombra a mansão e decide jogar sua ira sobre eles.
Esse foi um filme de terror que seguiu os passos de alguns títulos do “subgênero” de casa mal-assombrada como Desafio do Além (The Haunting, 1963) e o clássico Poltergeist – O Fenômeno (Poltergeist, 1982). Kiyoshi Kurosawa é possivelmente um dos melhores e mais versáteis diretores em atividade no Japão, contudo Sweet Home não é um dos seus melhores trabalhos. Bom, pelo menos a versão que foi parar nas salas de cinema. Há uma controvérsia sobre como produtor agiu pelas costas de Kurosawa e regravou várias cenas para deixar o filme mais convencional.
Apesar de bons efeitos visuais – eu pessoalmente adoro o design da Lady Mamiya – Sweet Home não tem a mesma pungência de outros filmes que o Kiyoshi dirigiria no futuro, como A Cura (Cure, 1997) e Pulse (Kairo, 2001). Mas também não chega a ser um filme ruim, ok? Recomendo assisti-lo com a ressalva de que não há nada particularmente memorável nele.
Em termos brasileiros, Sweet Home é um filme de terror “feijão com arroz” e não surpreende que pouco tempo depois do seu lançamento ele sumiu do imaginário popular. Por isso sou muito curioso para saber de onde surgiu a ideia d adaptar esse filme em particular para os vídeo games. Outros jogos licenciados da Capcom, como os da Disney, fazem todo sentido. Sweet Home por sua vez é muito aleatório. Infelizmente existem poucas informações confiáveis da sua produção na internet, pelo menos fora do Japão. Boa parte das afirmações que eu fiz aqui são tiradas de uma tradução não-oficial de uma entrevista do Fujiwara. Nessa entrevista ele menciona que houve “conversas sobre fazer um jogo baseado num filme”, porém sem entrar em detalhes. Então só nos resta especular sobre aquilo que há de concreto no desenvolvimento.
O projeto foi um desafio para o Fujiwara que até então só havia trabalhado em jogos arcade. Além disso, ele também tinha que lidar com um hardware que trazia uma série de novas limitações das quais ele não estava acostumado. Apesar de todos esses reveses, Fujiwara acabou por criar um dos títulos mais importantes na história dos jogos de terror. Entretanto, a importância não foi reconhecida de imediato. Houve elogios e tudo mais, só que Sweet Home não chegou a ser o $uce$$o que se esperava. Soma-se também o fato dele ser mais outros dos jogos não tiveram um lançamento oficial no ocidente. Tudo isso contribuiu por um apagamento temporário também da adaptação . Foram necessários mais sete anos para que a justiça fosse feita em seu nome através de um outro título.
Agora estamos em 1993. Fujiwara continua trabalhando na Capcom, porém passava a atuar mais como produtor do que diretor. Naquele período ele tinha sob sua tutela um talento em ascensão na empresa, um jovem game designer chamado Shinji Mikami. Até então Mikami tinha trabalhado em alguns jogos licenciados como Goof Troop e Aladdin, para o portfólio de Super Nintendo da Capcom. Em dado momento daquele ano, Fujiwara se aproxima do seu pupilo para lhe confiar um projeto que ele acabara de propor a empresa: um remake do seu jogo de 89. Nas suas palavras (e numa tradução livre minha):
Com o lançamento do PlayStation, houve uma conversa sobre lançar uma franquia original. A ideia era que eu poderia fazer as coisas que não pude incluir em Sweet Home. Principalmente na parte gráfica que meu gerou muita frustração. Eu também estava confiante de que os jogos de horror poderiam se tornar um gênero por si mesmos
Esse remake de Sweet Home se tornaria nada menos que Resident Evil, a maior franquia multimídia de jogos de terror da atualidade que mudou a indústria ao definir o que chamamos hoje de survival horror. Não vamos ser modestos com elogios aqui. Houve jogos de terror antes da franquia, mas a história do terror nos vídeo games tem um antes e um depois de Resident Evil. Ele quem moldou o cenário para o horror nessa mídia da segunda metade dos anos 90 até boa parte dos anos 2000. Caso Resident Evil não existisse, provavelmente não existiria o survival horror também. Ou pelo menos não no modo que o conhecemos hoje.
Mas ao mesmo tempo não podemos esquecer que se não existisse Sweet Home também não existiria Resident Evil. Então, se estamos falando dos créditos para a gênese do survival horror como gênero, parte desse crédito tem que ser redistribuída. Com isso eu não excluo a contribuição de Alone in the Dark, um jogo de terror de 1992, que o Shinji Mikami cita como uma importante referência para o desenvolvimento de Resident Evil.
Sweet Home é, então, outro capítulo importantíssimo da história dos jogos de terror. Mas eu não acho correto reservar seu legado apenas ao fato dele ser a principal inspiração para Resident Evil. Acredito que ele consegue conquistar seu espaço pelo seu mérito próprio. Sweet Home é um dos melhores jogos de terror já feitos e não apenas um “era bom pra época”.
Notem que eu constantemente me refiro a ele como jogo de terror e não survival horror. Faço isso de caso pensado, porque eu discordo da classificação retroativa que fazem com Sweet Home hoje em dia. Pensando no jogo pelo contexto da sua época, o terror ainda não era um gênero dentro da mídia dos vídeo games e mais um tema. Portanto, em relação a jogabilidade, o jeito mais correto para classificar Sweet Home, ao meu ver, é de um RPG com mecânicas de aventura. Assim dá para imaginar que ele toma muitas – e muitas mesmos – liberdades em relação ao original. Essa foi uma orientação do próprio Kiyoshi ao Fujiwara, dizendo que ele não deveria se preocupar em seguir o roteiro do filme de acordo.
Tanto o filme quanto o jogo dividem a mesma premissa, porém a adaptação toma oportunidade para expandir em escopo e narrativa. No filme do Kiyoshi a mansão abandonada não foge ao que você esperaria de um típico cenário de casa mal-assombrada. Por outro lado, no jogo do Fujiwara, nós temos um local que mais parece um castelo medieval. Dessa forma a sensação é que você está de fato explorando uma dungeon aos moldes dos RPGs da época, com um mapa bem extenso e repleto de perigos.
Tão logo iniciamos a exploração da mansão-castelo, percebemos algumas particularidades que tornam Sweet Home um jogo tão fascinante para sua época. Eu vou deixar pra falar da jogabilidade mais a frente, por enquanto quero me concentrar na narrativa e nos gráficos pois eles dividem uma adversidade. O jogo pega uma das grandes limitações tecnológicas da sua época e numa das suas principais características. Característica essa que se espalhou para jogos até de outros gêneros.
Do Atari até o PlayStation a capacidade de armazenamento foi uma pedra no sapato para a indústria. É o motivo de jogos como Final Fantasy VII e Parasite Eve serem lançados num conjunto de, respectivamente, 3 e 2 CDs e também da história de Vagrant Story ter sido cortada pela metade. E olha que estamos falando de mídias que possuíam 660 megabytes de armazenamento. Pense agora num cartucho de NES que estava na casa dos kilobytes? Portanto os primeiros RPGs tinham que ser moderados na quantidade de conteúdo que botavam nos seus jogos, principalmente em texto.
Para contornar essa limitação, Sweet Home decide contar sua história através de pequenas notas e outras mensagens espalhadas pela mansão-castelo. É uma solução prática, sem dúvidas, mas nesse contexto ela casa perfeitamente com a proposta do jogo. O filme recorre a solução mais fácil de ter um personagem soltando todos os detalhes da história num diálogo. Por sua vez, com suas notas, o jogo consegue manter uma aura de mistério pela gameplay que o jogador revela pouco a pouco de acordo com a sua progressão. Assim história se torna um puzzle paralelo em que o jogador participa ativamente na sua resolução, sem esperar que um terceiro venha lhe dizer tudo que precisa saber.
Então narrativamente falando, as limitações impostas pelo hardware do Nintendinho não afetaram Sweet Home. Nos gráficos a história é outra e sabemos que um dos motivos do Fujiwara querer tanto um remake do seu jogo. Porém aqui eu gostaria de me dar o direito de discordar dele. É uma crença pessoal minha que não tenha limitação gráfica que não seja superada com uma boa direção artística. Mega Man 2 segue como um dos jogos mais lindos que eu tive o prazer de jogar e ele foi feito no mesmo console de Sweet Home.
Dentro do que dava para conseguir no Nintendinho, os designers fizeram um excelente trabalho. Claro que os personagens não fogem do que se via num Final Fantasy e Dragon Quest. Mas nos monstros, o jogo se sobressai bastante. São visuais maravilhosos grotescos que trazem uma atmosfera desconcertante para Sweet Home. Dá até para notar pequenos toques criativos da equipe como um dos monstros tem o corpo coberto por pústulas e algumas delas tem animações sutis que faz parecer que estão pulsando. Sem contar o esforço para criar uma curta “cutscene” para recriar uma das cenas mais memoráveis da filme.
Num mundo hoje que jogos buscam cada vez mais um hiper-realismo gráfico até em contextos nada realistas, é fácil olhar torto para Sweet Home e desconsiderar os esforços artísticos da sua equipe. Por isso que eu detesto a fala de “gráficos datados”. Ela desvaloriza os artistas que conseguiram trazer resultados incríveis apesar da menor capacidade tecnológica da sua época. Isso também se aplica a jogabilidade. Se eu me deparo na internet com pessoas torcendo o nariz para Baldur’s Gate 3 só porque é um RPG moderno baseado em turnos, imagina o que farão ao ver o combate de Sweet Home? O que é uma pena porque ele tem uma ótima jogabilidade e eu não digo no sentido “boa para época”.
Uma das principais mecânicas é como você pode organizar seus personagens em grupos de até três e alternar entre eles a qualquer momento. Com isso Sweet Home cria oportunidades únicas em que você precisa usar um segundo grupo para resgatar um personagem que caiu numa das armadilhas da mansão, como quando uma das pranchas que você usa para passar por cima de um buraco quebra ou então quando alguém cai na área movediça. Além disso, como existem monstros espalhados por todos os mapas – inclusive alguns cujo propósito e abduzir um dos seus companheiros – você precisa manter os grupos em distâncias seguras para qualquer emergência. E também porque para a resolução dos puzzles você vai ter que fazer muito gerenciamento de inventário.
Era comum que RPGs contassem com inventários mais limitados. Não exatamente por uma escolha de game design e sim pela capacidade de armazenamento dos consoles. Mas, novamente Sweet, Home consegue transformar isso numa característica importante da sua gameplay. Cada um dos cinco personagens possui um inventário próprio que pode carregar apenas dois itens, uma única arma e um item especial.
Com isso a limitação do inventário se torna uma mecânica para aumentar a dificuldade do jogo, colocando o jogador num cenário em que ele precisa estar sempre lembrando onde deixou seus itens. Também serve como incentivo para manter os personagens mais próximos para poder trocar itens com facilidade.
Os itens especiais também tem seu objetivo pragmático, usados tanto nos puzzles quando nas batalhas já que alguns monstros podem ser afetados por eles. Por exemplo, dá para usar a câmera do Taro pode ser usada contra os morcegos e alguns fantasmas e o isqueiro causa dano em minhocas e crânios. Mas esses itens também produzem um efeito na conexão entre o jogador e os personagens através da importância deles para gameplay. Ao contrário do filme, os personagens não recebem qualquer desenvolvimento então é fácil interpretá-los como meros avatares.
Sweet Home usa então a “especialidade” de cada personagem como uma forma de fazer o jogador se simpatizar com eles e dar personalidades com base na gameplay. Akiko é quem carrega um kit médico que cura qualquer status negativo então ela vira meio que a “mãe” do grupo, estando sempre próxima para ajudar. Como a Asuka leva o aspirador de pó usado para limpar os afrescos, você coloca ela sempre em companhia do Taro cuja câmera revela as mensagens escondidas nos quadros. Então você acaba interpretando ambos os personagens como tendo uma afeição maior entre si do que os demais pro estarem sempre juntos. Emi leva uma chave que abre várias das portas, então ela se torna a personagem que todos querem proteger. É uma leitura que talvez o próprio Fujiwara não antecipou, porém acaba surgindo organicamente através de como o jogador enxergar cada personagem.
Os personagens também são como Sweet Home consegue criar a sua atmosfera. De fato o jogo não é “assustador” no sentido comum, contudo ele consegue criar uma tensão efetiva na gameplay pelo fato que a morte dos personagens é permanente. A cada morte o jogo se torna mais difícil porque não só seu grupo fica em desvantagem numérica como também você será obrigado a sacrificar um espaço do seu inventário para levar um item que substitui o especial do personagem que você perdeu. Os itens de cura são limitados e há várias armadilhas espalhadas pelo mapa. Interessante destacar que algumas acionam uma espécie de proto-quick time event onde o jogador precisa escolher a melhor opção para conseguir desviar.
Há um preocupação constante em manter todo seu grupo vivo porque caso contrário as suas chances terminar o jogo diminuem consideravelmente. Inclusive é impossível derrotar o único chefão do jogo, a Lady Mamiya caso você chegue na luta com um único personagem pois você precisa estar carregando vários itens específicos para vencer o fantasma. Portanto existe de certa forma um “medo” no jogador associado a quão mais difícil o jogo pode se tornar se você não tomar o devido cuidado com seu grupo.
Quando você faz uma lista de tudo que Sweet Home fez em 1989 você percebe o quão surpreendente ele é: capacidade de agrupar personagens e alternar entre eles a qualquer momento, um complexo gerenciamento de inventário, quick time events, permadeath, etc. Isso tudo em meio a todos os todos os obstáculos e limitações que a tecnologia do seu tempo impunham aos desenvolvedores.
Sweet Home consegue criar uma atmosfera sombria e de certa forma desconcertante mesmo sendo “apenas um jogo do NES” como gamers o subestimaria. Não é uma surpresa que o jogo tenha sido tão importante para o futuro dos jogos de terror, porque ele não apenas ajudou a criar apenas as bases para o surgimento do survival horror. Ele foi um dos grandes passos para mostrar que dava para trazer esse gênero para os vídeo games em narrativa, estética e jogabilidade. Por esse motivo que seu legado merece o devido reconhecimento e lembrado sempre que possível. Não apenas por ser o “precursor de Resident Evil”.
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