Trek to Yomi pode pecar na sua gameplay com um combate monótono e repetitivo. Mas a direção visual e trilha sonora é de se tirar o chapéu
Damare, Chiquinha-chan!

A primeira imagem que vi de Trek to Yomi me fez ter certeza que eu iria adorar o jogo. Não sei se já comentei antes, mas os filmes de samurai do Akira Kurosawa estão entre os meus clássicos favoritos. Os Sete Samurai, Rashomon, Trono Manchado de Sangue, Yojimbo, Ran, A Fortaleza Escondida, assistidos e recomendados. Além disso, eu tenho um fascínio especial pela estética dos filmes em preto e branco, logo as óbvias inspirações cinematográficas garantiram um lugar imediato para Trek to Yomi na minha lista de desejos. Eu não olhei gameplays, não li críticas, para falar a verdade eu nem mesmo assisti o trailer do jogo. Aquela direção artística era tudo que eu precisava saber!

Na história nós controlamos o habilidoso samurai Hiroki. Quando criança seu mestre, Sanjuro, morreu defendendo a vila de um ataque de bandidos liderados por um homem chamado Kaguro. Antes de morrer, Sanjuro faz Hiroki prometer que irá proteger o povo e sua filha, Aiko, por toda a sua vida e além dela. Anos depois um misterioso e sanguinário comandante surge como uma ameaça a região. Hiroki parte com alguns homens para investigar um ataque numa aldeia próxima que acaba se revelando uma armadilha para afastá-lo da vila enquanto o comandante a ataca. Muitos morrem, incluindo Aiko que havia se tornado a amada de Hiroki. Com sua honra manchada e o coração carregado de culpa, ele precisará atravessar o Yomi, a terra dos mortos do xintoísmo, em busca de uma segunda chance. Um caminho que pode levá-lo tanto para uma redenção quanto para sua perdição.

Hiroki encontrando o espírito do seu mestre Sanjuro na terra dos mortos
Samurai + Espíritos vingativos = tudo que eu preciso!

Numa dessa últimas promoções da Steam eu finalmente consegui comprar e jogar Trek to Yomi, tendo a exata a experiência cinematográfica que eu esperava ter. E cinematográfica é a palavra correta para se usar nesse contexto. Não há margem para qualquer dúvida sobre como o jogo se propõe ser uma espécie de filme do Kurosawa jogável. Utilizando câmeras fixas, Trek to Yomi faz uma alternância entre planos bem dinâmica como se estivéssemos vendo de fato uma sequência inteira de um longa-metragem. Tem até alguns momentos que você consegue visualizar um dolly track presente ali quando a câmera caminha segundo a movimentação do jogador.

Durante os momentos de luta esse dinamismo não tem como existir por questões práticas, afinal estamos falando de um jogo de ação side-scroller. Porém ainda rola algumas passagens criativas quando o jogo decide criar uns planos gerais para o cenário aparecer mais nas lutas. Um dos meus momentos favoritos é quando colocam os shoji. aqueles painéis de papel translúcido, de forma que você vê apenas a sombra do seu personagem e do oponente. Algo que hoje, depois de ver muitos swashbucklers, eu sei que era uma cena muito comum de fazerem para os duelos mais dramáticos.

Hiroki enfrentando um inimigo por trás de um shoji

Aliás, falando em sombra, esse é o motivo da escolha de fazer Trek to Yomi em preto e branco ser uma das suas melhores qualidades e não apenas uma gimmick estética. Acho que não tem uma pessoa em plenas faculdades mentais que não concorde que os visuais desse jogo são primorosos. Os designers souberam trabalhar com a iluminação e a exposição para criar tanto sombras e pontos de grande luminosidade que servem para dar mais dramaticidade a uma sequência ou orientar o olhar do jogador para onde ele deve ir.

Então de um ponto de vista apenas cinematográfico, eu não teria o que criticar em Trek to Yoki. Só que estamos falando de um jogo, certo? Eu saí da primeira fase deslumbrado com os visuais, a mudança dinâmica de ângulos, a beleza dos “sets”. Mas também eu saí com uma vozinha preocupada no fundo da minha mente que repetia: olha… talvez a jogabilidade não vai ser tão boa! Nas fases seguintes eu fui percebendo que a preocupação daquela voz era legítima. Não chegaria a ponto de dizer que a jogabilidade é de todo ruim, mas tem alguns pontos que acho que valem umas ressalvas. Porque a cada estágio eu me enchia mais certeza que Trek to Yomi é um jogo com crise de identidade.

Eu zerei duas vezes, uma na dificuldade média e outra na difícil jogando com mais calma. Na minha segunda jogatina algo que ficou mais evidente era o quanto Trek to Yomi quer que o jogador contemple seus mapas. Não me refiro ao genérico “olha que gráficos lindos”, mas sim na forma como Trek to Yomi enquadra seus diferentes cenários. Há um forte uso de planos abertos para mostrar toda a magnitude e exuberância das suas paisagens e das suas construções para fazer com que o jogador se sinta absorvido por esse universo.

Alguns dos incríveis cenários de Trek to Yomi
Cada mapa é uma quadro

Toda fase tem pelo menos uma instância onde que você fica com vontade de parar e gastar uns minutos admirando a vista. Geralmente isso não configura um problema, entretanto devemos ter em mente que Trek to Yomi se trata de um jogo de ação side-scroller onde o ritmo da gameplay é um elemento fundamental da experiência.

Dado a premissa é fácil imaginar que haverá muitos e muitos duelos de katanas em Trek to Yomi. Esses combates acontecem numa perspectiva lateral de corredor único que remete a um período clássico dos jogos de ação, um paralelo com a sua estética que remete aos clássicos do cinema. Então frequentemente você se encontra cercado com um ou mais inimigos a sua direita e outros a sua esquerda. Ao derrotar um, se houver um segundo atrás dele, este assumirá o lugar na batalha. Com isso o combate acaba não tendo a mesma fluidez que esperaríamos de uma luta contra grupos de oponentes. Não há meios de fazer crow control já que tanto o personagem quanto seus inimigos se movem no mesmo corredor. Essas lutas se tornam quase uma batalha por turnos onde os demais oponentes aguardam chegar a vez deles.

Aliás, gostaria de pontuar que eu tiro essa reflexão pensando nos próprios filmes que inspiraram Trek to Yomi. Vamos pegar Sanjuro, o filme de 1962 do Akira Kurosawa que agora que fui perceber que é o mesmo nome do mestre do Hiroki, de exemplo. Aqui você já nota como as cenas em que o protagonista enfrenta mais de um oponente de uma vez apresenta muita fluidez na coreografia:

Outra coisa que me ficou evidente na segunda vez que eu joguei é como o combate de Trek to Yomi é quebrado. Por mais que você consiga uma boa diversidade de combos ao longo da gameplay, em pouco tempo você percebe o quão mais eficiente é utilizar apenas aqueles que tem efeito atordoante. Isso porque eles não apenas incapacitam os oponentes, mas como permitem que você execute um golpe finalizador. Já no início da segunda fase você ganha um desses combos, ataque normal + ataque normal + ataque forte, e eu não tenho como enfatizar mais o quão insanamente overpowered ele é.

Os oponentes não conseguem se defender do ataque forte, a não ser que tenham o timing de cancelá-lo com um ataque rápido, então é um acerto praticamente garantido. Salvo dois inimigos – e um deles só aparece na última fase – e os chefões, todos os personagens desse jogo são vulneráveis ao efeito de atordoamento. Para piorar, nas fases seguintes você aprende combos ainda mais eficientes para incapacitar seus oponentes. O trás + ataque forte + ataque normal, por exemplo, você não precisa nem se preocupar em executá-lo pro completo. Somente com o primeiro ataque o inimigo já fica atordoado e você pode ir direto para a finalização. Isso quebra o propósito de inimigos com armadura que deveriam dar algum trabalho ao jogador já que você pode incapacitá-los logo de cara.

Inimigos com armadura em Trek to Yomi que você consegue facilmente derrotar com um golpe atordoante
Um combo bem aplicado e a luta não dura 10 segundos

Com isso o combate se torna muito repetitivo, uma vez que você está sempre se apoiando nas mesmas táticas. Eu poderia até concordar com quem argumentasse que isso acaba sendo um vício comum de gameplay de ação side-scroller. Só que no caso do Trek to Yomi o problema que eu vejo é o que já citei anteriormente que é falta de ritmo.

Eu não queria fazer comparações, porém nesse caso acho que vale a pena usar beat’em ups como um referencial. Se formos ser reducionistas, nesses jogos os inimigos também se repetem continuamente e você não tem uma grande variedade de combos. Porém raramente a gente sente essa repetição e o motivo que eu acredito para que isso não aconteça é porque bons beat’ em ups não “param”. Você está sempre em movimento para garantir que não seja encurralado e se posicionar melhor no mapa. No nível mais superficial você até nota que aquele inimigo já apareceu n-vezes, só que não dá tempo do seu cérebro registrá-las. Logo em seguida tem mais inimigos, o jogo te manda ir pra frente e assim você fica sempre engajado na gameplay.

Tem isso em mente, o tropeço de Trek to Yomi é criar muitas pausas ao longo das fases.

Uma coisa que eu esqueci de mencionar quando eu falava da qualidade contemplativa dos cenários é que também existem sequências de exploração em ambientes tridimensionais no jogo. Por exemplo, na primeira fase logo após o tutorial no dojô, você anda pelo vilarejo por uns minutos até chegar no momento que os bandidos começam a atacar o povoado. Nas fases seguintes não existe uma sequência tão longa de exploração como essa, porém ela se mantém em passagens mais curtas. Em algum momento você atravessa uma ponte, sobe ou desce por uma estrada, entra em alguma construção, etc. Em seguida vem algum corredor horizontal onde fica bem óbvio que haverá uma luta pela mudança de perspectiva.

Como o jogo “desacelera” por conta desses momentos em que você só está andando pelo mapa, você fica mais propenso a notar a repetição. A constante alternância entre um “bloco” pra luta e um “bloco” para exploração deixa a barriga da gameplay mais proeminente. O jogo até aproveita esses momentos para colocar algumas falas e reflexões do protagonista, mas a nível de jogabilidade como obstáculos ou puzzles o jogo não consegue fazer nada muito criativo.

Puzzle de Trek to Yomi onde você alcança uma plataforma subindo numa canoa e inundando o lugar
Um dos (poucos) momentos que Trek to Yomi faz algo diferente

Você empurra uma árvore aqui e acolá para fazer uma ponte. Às vezes chuta uma porta. Em dado momento você tem que girar umas pedras para encontrar a ordem certa dos símbolos e liberar a passagem. Coisas que exigem o mínimo de esforço mental. São poucas as horas que há algo mais diferente e nem chega a ser tão gratificante assim.

Por exemplo, em dada fase você precisa alcançar uma plataforma inundando um poço seco e subindo numa canoa. Porém antes disso você deve cortar a corda que segura a embarcação ou ela afunda. Numa outra parte com mais ação a ponte começa a cair e você tem que derrotar os inimigos o mais rápido possível. Ali pro final também tem uma sequência na qual você precisa fugir de um incêndio que seria até legal se o que você precisasse fazer não fosse apenas correr. São poucos exemplos e bem esparsos um do outro, de forma que o grosso da gameplay é só ir de uma luta para a próxima.

Depois de passar dois terços desse texto talvez a conclusão seja que eu não tenha gostado de Trek to Yomi, não é? Porém é aí que vocês se enganam, porque ele é um dos meus jogos favoritos dentre aqueles que joguei esse ano. “Mas como isso é possível?”, alguém poderia se questionar. “Você criticou a gameplay dele toda”, esse alguém também poderia afirmar. Simples, eu já falei aqui que eu não ligo pra jogabilidade. Ok, não ligar é um termo meio forte. O mais correto, e eu explico isso melhor no texto, é como a jogabilidade nem sempre é uma das minhas principais prioridades quando eu vou jogar algo. Em geral, ela vem em após narrativa, atmosfera & ambientação. Com Trek to Yomi não foi diferente.

Logo no início do texto eu já deixei claro que minhas expectativas estavam nas aspirações cinematográficas do jogo. Portanto, ainda que eu fosse capaz de pontuar o que não funcionava na jogabilidade pra mim, os elementos nos quais eu tinha interesse compensavam por isso. Quando eu falo “e daí? no título não é apenas uma referência a Chaves para fins cômicos, ela é sincera. Eu não nego que existam problemas em Trek to Yomi, eles só não conseguiram impactar a minha experiência porque ela foi focada nos elementos estéticos do jogo.

Óbvio que isso é A MINHA PREFERÊNCIA então eu não posso esperar que jogadores mais – eu odeio essa palavra – hardcore de jogos ação tenham a mesma perspectiva. Mas é bem possível que existem outros jogadores que assim como eu estão mais fascinados pela cinematografia de Trek to Yomi do que qualquer outra coisa. E é exatamente para esse público que eu quero falar. Daí chegamos a conclusão que eu gostaria de tirar do meu texto.

Hiroki ao escolher a rota do Dever no fim do jogo
Foi pra isso que eu joguei!

Há bastante tempo que eu acho que a mentalidade gamer em relação as críticas/resenhas sobre jogos está muito engessada. Ainda perdura aquela ideia de que você precisa falar da história, de cada mecânica, dos gráficos, da trilha sonora, do desempenho, do frame rate, etc. No fim parece que essas pessoas estão analisando mais um eletrodoméstico do que uma obra que nem vamos entrar no mérito se é de arte ou não. Tudo isso com notinhas individuais para cada categoria para no final ter uma média que nada mais é que um amontoado de números que as pessoas ainda tentam se convencer que mede a qualidade de um jogo.

E não é que eu seja necessariamente contra esse formato de resenha – na verdade eu sou apenas contra notas – só não gosto dessa cultura que ela gera onde o gamer fica mais interessado em ouvir tecnicalidades ou platitudes de “gráficos lindos, jogabilidade boa, história bem desenvolvida”. Por isso eu estou tentando cada vez mais afastar meus textos desse roteiro tradicional das críticas, focando nos pontos que me interessam sobre essa obra para mostrar que existem outros valores que podemos destacar nos jogos além das suas mecânicas.

Enfim, então o que tenho para dizer de Trek to Yomi é que é um jogo cinematograficamente maravilhoso. Se você já assistiu algum filme do Kurosawa, ou até mesmo outros diretores mais antigos, e teve vontade de poder entrar naquele universo, talvez esse seja o jogo que você precisa. O combate pode não ter a mesma fluidez dos filmes, os puzzles são meio ridículos e no final você vai usar sempre os mesmos dois ou três combos. Mas como eu disse no título: e daí?


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