O “oitento-noventismo” de Blazing Chrome

Blazing Chrome, run and gun indie desenvolvido pela JoyMasher
É como dar play num cartucho de Super Nintendo e Mega Drive

Tenho tentado dar uma atenção para alguns jogos brasileiros sempre que possível. Foi isso que me levou a conhecer a JoyMasher, estúdio indie criado pela Thais Weller e Danilo Dias em 2012. Desde então eles já lançaram quatro jogos: Oniken (2012), Odallus: The Dark Call (2015), Blazing Chrome (2019) e Vengeful Guardian: Moonrider (2023). Os dois primeiros eu cobri num texto meses explorando a “filosofia” de game design da JoyMasher. O estúdio busca trazer uma experiência retrô tanto para saudosistas quanto para um público mais novo.

Alguns meses atrás consegui comprar os outros jogos e chegou a hora de falar deles. Dessa vez escolhi fazer algo diferente, então em vez de outro Double Down eu vou separar Blazing Chrome e Vengeful Guardian: Moonrider. O motivo é que eu não estava a fim de fazer uma review sobre o primeiro. Não tinha muito significativo para discorrer por toda uma crítica a respeito dele. Mas para quem tiver curioso da minha opinião sobre o jogo:

Blazing Chrome é uma ótima homenagem aos jogos de run and gun com grandes chances de agradar aqueles que tiveram contato com esse gênero na infância, seja nos arcades ou nos consoles da geração 16-bits.

Belmonteiro, 2023

Porém achei algo interessante de se falar de Blazing Chrome na perspectiva da sua experiência não como jogo e sim como um produto cultural. Porque existe uma familiaridade instantânea já nos seus primeiros minutos de gameplay. O jogo consegue encapsular perfeitamente o espírito de uma época que eu gosto de classificar como “oitenta-noventista”.

Chefão da primeira fase de Blazing Chrome

No texto sobre Oniken e Odallus eu destaco a frase com a qual nos deparamos ao entrar no site da JoyMasher: “we know retro”. Simples, eficiente e demonstra com clareza o norte que o estúdio segue. Contudo, retrô é um campo bem amplo e que gera alguns debates. Por exemplo, já vi quem diga que os jogos do PlayStation 2 e Xbox, pelo menos do início da sua geração, já poderiam entrar nessa categoria. De qualquer forma, no caso da JoyMasher é fácil entender ao que ela se refere quando diz retrô. Com base nos seus quatro jogos até o momento, observa-se que o foco do estúdio está nos jogos da terceira e quarta geração de consoles.

Existem alguns gêneros específicos que representam com mais força a imagem que se tem dessas duas gerações. Jogos de plataforma, beat’em up e os run and gun são os primeiros a vir na minha mente. Vamos focar nesse último, não só porque o texto é sobre Blazing Chrome, mas porque foi um gênero com muita presença tanto no arcade – ou fliperama, se preferir – como também nos consoles. Dá para rastrear o começo desses jogos com os clássicos scrollers verticais, de onde podemos destacar Commando e Ikari Warriors. Mas para mim o gênero se solidificou com os jogos de perspectiva horizontais como Sunset Riders, Gunstar Heroes, e vários títulos com “alien” no nome. É geralmente com esse segundo grupo que eu costumo associar os jogos de run and gun. Quando penso nos scrollers verticais a minha mente vai para os shoot’em ups, os consagrados “jogos de navinha”.

Quando a gente fala desse gênero, principalmente na quarta geração, é impossível deixar de mencionar dois nomes: Contra e Metal Slug. Por isso não é nenhuma surpresa que ambas as franquias sãos as principais referências adotadas pela JoyMasher no desenvolvimento de Blazing Chrome. Nas palavras do próprio Danilo, o jogo pega o estilo frenético de gameplay de Contra e combina com aquelas maravilhosas monstruosidades mecânicas e de outro mundo de Metal Slug.

Durante o tempo que joguei Blazing Chrome eu fiquei pensando bastante nos dois outros jogos, imaginando que eles deveriam ser mais ou menos contemporâneos. Contra eu tinha uma vaga noção de ter surgido nos anos 80 porque eu lembrava dos ports no Nintendinho. Já Metal Slug pensei que era ali do início da década de 90, período da ressurgência dos arcades. Então concluí que não deveria ter mais do que uma Copa do Mundo entre essas franquias. Para minha surpresa na verdade existe quase dez anos de diferença separando os dois. O primeiro Contra surge nos arcades em 1987 enquanto o primeiro Metal Slug vem em 1996. Nesse período os arcades já estavam decaindo no ocidente, o que obrigou a franquia a migrar para os consoles e portáteis nos anos seguintes.

Contra III: The Alien Wars e Metal Slug, dois grandes clássicos do gênero de run and gun
Só o filé!

Pode não parecer uma grande revelação, mas essa informação me fez refletir um pouco. É porque há tempos que uma questão ecoa na minha cabeça sobre a relação das pessoas da minha geração (nascidos na década de 90) e os vídeo games naquela época. Porque assim, ser capaz de jogar algo no seu lançamento aqui no contexto brasileiro é um fenômeno mais ou menos recente. E ainda está longe de ser a realidade para boa parte do nosso público consumidor. Vale ressaltar que o Xbox 360 (2006) e o PlayStation 2 (2000) são ainda hoje o 2° e 4° consoles mais populares no Brasil. Portanto a nossa norma é de existir um grande intervalo entre o lançamento oficial do jogo e quando ele de fato alcança um público maior.

No caso dos jogos da terceira e quarta geração acredito que havia um pequeno agravante devido a também a demora que um jogo, e até o console, levava para chegar no Brasil. O Super Nintendo, por exemplo, foi chegar no Brasil em 1993, três anos depois do seu lançamento no Japão. E estou considerando apenas a data oficial, porque para ele chegar na casa do povão pode botar mais alguns anos. Quando eu ganhei o meu Super Nintendo já estávamos nos anos 2000 e meu primeiro jogo no console, Super Mario World, já tinha completado 10 anos.

Ok, mas onde eu quero chegar com essa história toda? Eu queria ilustrar como se tratando de jogos a minha experiência com os títulos da década de 80 e 90 foi, em sua maioria, retroativa. Com isso, ambas as décadas ocupam o mesmo espaço na minha cabeça de forma que eu não faço qualquer distinção entre as datas de lançamento dos jogos. E assim, eu não acho que sou o único. Tenho uma impressão cada vez mais forte que no que tange a cultura pop, os dois períodos formam uma espécie de amálgama cultural, tanto que com frequência vejo as pessoas se referindo a ambos juntos. Principalmente quando a gente considera a transição da segunda metade da década de 80 para os primeiros anos da década de 90.

Olhando para Blazing Chrome, os designs de personagens e cenários são claramente inspirados aos jogos do Contra não do arcade, mas dos consoles que seriam Contra III: The Alien Wars (1992) e Contra: Hard Corps (1994). Só que a estética do jogo também traz muitos elementos que são associados aos anos 80, como a fonte do título e a música dos créditos finais que eu tenho certeza que já escutei em alguma Sessão da Tarde.

É um jogo que definitivamente tem um pézinho em cada década e para mim isso é uma consequência de como as franquias acabam se desenvolvendo ao longo do tempo. Pegando as referências de Blazing Chrome, Contra surge com dois jogos ali em 1987, porém se desenvolve de fato na década seguinte com as sequências que já mencionei. Mesma coisa com Metal Slug. Suas sequências seguem vão da reta final da década de 90 até praticamente o fim dos anos 2000 quando é lançado o Metal Slug 7 para o Nintendo DS em 2008. Assim, os elementos que compunham cada série na sua época de origem, são trazidos para os períodos seguintes adaptando-se a novos temas ao contexto contemporâneo. O “oitento-noventismo” nasce então como essa ideia de que parte do imaginário dos anos 80 e dos anos 90 possuem uma interseção na qual ambos coexistem.

A gente pode observar esse conceito melhor ainda em outro gênero: beat’em up. Ele também nasce e se desenvolve nesse período de transição entre as décadas. Os dois nomes mais associados a gênese desses jogos são Renegade (Nekketsu Kōha Kunio-kun, 1986) e Double Dragon (1987). Ambos então criam uma tendência que ira se estender do final da década de 80 até o início dos 90. Aí podemos trazer vários outros títulos como Final Fight (1989), Streets of Rage (1991), Undercover Cops (1992), Cadillacs and Dinosaurs (1993), Alien vs Predator (1994) e grande elenco. Cada um tem suas particularidades, contribuindo ao seu modo para o gênero, ao mesmo tempo que trazem o sentimento de estar todos vindo da mesma fonte.

Dá para fazer esse mesmo paralelo no cinema que sempre representou uma importante inspiração para os temas de vários jogos. No caso dos beat’em ups dá para destacar as influências de dois tipos de filmes de ação que eram os policiais e os de artes marciais. Coincidentemente, ambos tiveram um pico durante as décadas dos anos 80 e 90.

Queria me centrar dos filmes policiais – até porque se eu começar a falar do cinema de ação de Hong Kong aqui o texto não termina – porque tem duas franquias que acho boas para destacar: Máquina Mortífera e Duro de Matar. Novamente, ambas surgem naquele período de transição entre décadas, 1987 e 1988 respectivamente, e se estendem até mais do que meados dos anos 90. Duro de Matar tem seu terceiro, e até então último filme antes da sequência em 2007, ali em 1995 enquanto Máquina Mortífera vai um pouquinho além com o quarto filme saindo em 1998.

Pros jogos de run and gun também dá para traçar facilmente esse paralelo. Poderia falar por exemplo da óbvia influência de Rambo em Ikari Warriors, mas como eu prefiro os scrollers horizontais eu destacaria os filmes de ficção científica e ação. Mais uma vez, é um estilo de filmes que estiveram em alta nessa zona do “oitento-noventismo” ao qual me refiro tanto. Muitos deles tem sua origem na década de 80 e com suas sequências vão se embrenhando mais e mais nos anos 90. Dos principais podemos citar: Aliens (1986), O Predador (1987), RoboCop (1987) e O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991).

Conscientemente eu sei a data desses filmes, assim como muitos dos jogos de Super Nintendo e Mega Drive que fui conhecer de trás para frente. Porém inconscientemente, é como não se houvesse uma divisão clara. 1991 é tão anos 80 para mim quanto 1989 é anos 90. 1988 e 1992 também. E por aí vai. Óbvio que quando nos aproximamos dos extremos, essas coisas se tornam mais aparentes por conta da diferença gráfica. Front Line é evidentemente um jogo oitentista (1982) e Shock Troopers é um jogo noventista (1997). Mas a experiência dos dois ainda caí para mim nessa zona gradiente entre ambas as décadas. Talvez seja por isso que o Blazing Chrome é o jogo que eu mais curti da JoyMasher até o momento.

Um dos mid bosses de Blazing Chrome

Porque se eu ignoro que ele foi lançado em 2019 eu consigo encaixa-lo perfeitamente ali em qualquer posição desde o primeiro Contra até o primeiro Metal Slug. Enquanto eu o jogava no meu PC, eu conseguia me visualizar sentado no chão do meu quarto olhando pra uma TV de tubo conectada ao meu Super Nintendo ao mesmo tempo que me via em pé vidrado na tela do fliperama de um barzinho aqui das redondezas.

Não é necessariamente uma experiência nostálgica, embora é claro que isso está injetada em toda a gameplay de Blazing Chrome. Me parece mais como pisar numa cápsula do tempo, porém que não fica presa num ano em específico. Ela fica alternando entre períodos distintos até que você deixa de enxergar as fronteiras e eles passam a ser a mesma coisa. Portanto, se existe de fato um “oitento-noventismo” e não apenas fruto das vozes na minha cabeça, Blazing Chrome é com certeza uma das melhores expressões desse conceito!


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2 comentários em “O “oitento-noventismo” de Blazing Chrome”

  1. Como sempre… mais um excelente artigo! Com quase 44 anos sempre adorei os jogos dos gêneros:
    Shoot ‘m Up (shmup para encurtar), beat’em up e claros os run and gun. O gênero Luta(Fighting games) voltou com tudo, mas sinto falta dos demais que eram muito maneiro lá na saudosa época de ouro dos arcades como o famigerado luta de rua (beat’em up). Mas falando em run and gun você está acompanhando o trabalho do Studio Kohaichi?
    A Kohaichi Studio anunciou Black Finger JET, revelado como o sucessor espiritual de Metal Slug. A desenvolvedora é composta por diversos ex-devs da SNK, como é o caso de Kuichin (que participou dos capítulos 2, 3 e X da franquia) e Shinichi Hamada (programador que trabalhou no título original). Enfim, excelente trabalho!

    1. Obrigado como sempre, Bento! Não tô acompanhando porque assim como beat’em up eu meio que desliguei desse gênero de run and gun focando mais em RPG e ação aventura. Beat’em up comecei a olhar de novo de uns tempos para cá, porém no caso do run and gun só tive contato com o Blazing Chrome mesmo e um tempo atrás rejogando Metal Slug (depois de sofrer horrores tentando emular o MAME que eu simplesmente não nasci pra saber usar direito) .Então mais uma vez obrigado pela recomendação que vou checar esse Black Finger JET!

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