Revi Digimon e gostei ou “porque Regra dos 15 Anos é coisa de adulto besta”

Cena de Digimon Adventure mostrando todas as crianças escolhidas com seus Digimons na suas formas evoluídas

Agora já deve ter mais de um mês desde que assisti Digimon Adventure, o curta-metragem que apresentou Digimon nas salas (japonesas) de cinema. Fazia mais de uma década que eu não via esse filme, creio que a última vez numa Sessão da Tarde qualquer. Não lembro se naquele texto eu cheguei a contar o motivo que me trouxe de volta para o curta. Foi assim: alguém postou umas imagens dele lá no Bluesky e eu resolvi revê-lo sob perspectiva de um filme de kaiju.

O quê? Vocês acharam que ia ter uma grande história por trás da minha decisão de ver um filme de Digimon?! Enfim…

Um tempo depois, enquanto eu escrevia minhas novas impressões, eu me peguei pensando na primeira temporada de Digimon. No Japão, ela que deu sequência ao Digimon Adventure, porém para nós aqui no Brasil foi a porta de entrada para o Digimundo. Como toda criança que cresceu nessa transição dos anos 90 para os 2000, parte da minha infância é marcada com os jogos e os desenhos de Digimon e seu primo muito mais bem-sucedido Pokémon. Aquela era uma época em que estávamos à mercê dos horários da TV Globinho, perder um episódio significava que provavelmente demoraria muito tempo até você ter outra oportunidade de assisti-lo. Por isso as minhas memórias de vários desenhos são repletas de lacunas. O primeiro e último episódio de Digimon, por exemplo, eu nunca tinha visto.

Portanto tomei esse pequeno contato com Digimon como uma oportunidade para preencher esses espaços da minha infância. Encontrei o desenho para baixar num desses blogs que flutuam pela internet brasileira e fiquei aquele mesmo mês maratonando a série. Durante esse período eu pensei se deveria ou não fazer um segundo texto. Até que queria, porém não via motivo para fazer uma crítica já que eu não tinha nenhuma perspectiva com a qual abordá-la. Foi então que, ao reler meu texto do curta, me veio uma epifania. Dava para aproveitar o desenho para discutir um assunto pessoal. Pessoal no sentido de “algo que me incomoda para um caralho”*.

*ficarei desnecessariamente agressivo daqui para frente!

Acontece que ao falar de Digimon Adventure eu mencionei brevemente a famigerada Regra dos 15 Anos que é sussurrada vez ou outra em bolhas nerds. Ela não é uma regra per se, está mais para um senso comum que ainda sobrevive nesses grupos. Como quase todo senso comum, a Regra dos 15 Anos é uma tremenda de uma bobagem. A “regra” dita que você deve evitar, ou então se aproximar com cuidado, revisitar algumas obras (filmes, séries, jogos, etc) que você teve contato até o seus 15 anos. Por quê? Pois supostamente você tem altas chances de se decepcionar por essas obras não serem tão boas quanto você se lembrava.

Existem alguns problemas com a Regra dos 15 Anos. Uns eu diria que são universais, outros são problemas pessoais que eu especialmente tenho com ela.

O principal, eu diria, é que ela pega uma determinada possibilidade no nosso consumo de mídias ao longo da vida e faz uma generalização tosca em cima dela. Sim, é mais do que provável que ao longo da sua infância e adolescência você viu, jogou e leu muita coisa ruim e não se deu conta. Você era uma pessoa com gostos e senso crítico ainda em desenvolvimento, estava apenas acumulando referências diversas sem fazer muito juízo de valor. A soma de um repertório limitado com a inocência da juventude – ambos que funcionam para bem e para mal – te levam a ter um deslumbre que não tem a mesma chance de acontecer ao se ficar mais velho. Logo, ao rever algumas dessas obras em algum momento você irá se desapontar.

Agora o MEU problema com a Regra dos 15 Anos é que parece que o pessoal só pensa nela numa única direção. Se fala tanto da possibilidade de decepção, mas quase nunca se fala que você tem chance de se surpreender. O jovem pode aceitar qualquer merda pela sua ignorância, porém ele também pode rejeitar muita obra-prima pelo mesmo motivo. Eu tenho certeza que se eu tivesse assistido o que hoje é um dos meus filmes favoritos da vida, Os Sete Samurais, quando eu era adolescente iria odiá-lo. Até consigo visualizar algumas coisas que eu falaria sobre o filme. “Ain esse filme tá em preto e branco”, “ain esse filme é muito longo”, “ain esse filme é muito lento”, “ain não sei o que lá não sei o que lá”. Só crítica FODA, meu parceiro!

Os Sete Samurais, filme de Akira Kurosawa. A foto mostra todos os personagens olhando para o vilarejo ao longe

Mas não preciso me ater apenas a cenários hipotéticos. Felizmente tenho alguns precedentes que inclusive eu registrei no blog: Paprika e Contos do Dia das Bruxas. Assisti esses dois filmes por volta dos meus 15 anos e não gostei de nenhum. Foi somente depois de muito tempo ao revê-los como um adulto que eu pude apreciar a qualidade que meu eu jovem (e idiota) não soube reconhecer. São por conta desses casos que eu criei o hábito de voltar a algumas coisas que marcaram minha infância. É um exercício para ver como as minhas impressões mudaram ao longo da vida. Encorajo outras pessoas a fazerem o mesmo. Uma vez ou outra você vai se decepcionar com algo? Claro! Mas é só um filme, uma série, um jogo. Você não vai perder nada demais.

Mas vejam bem, não é por esse medo de se desapontar que eu considero a Regra dos 15 Anos um papo de adulto besta. A própria existência dessa “regra” só é parte de um monte de besteira que acumulamos sobre as mídias. Por entender que éramos mais ignorantes na juventude, passamos a supervalorizar a nossa inteligência quando ficamos mais velhos. Acabamos por nos convencer que somos mais críticos em relação aos nossos gostos e passamos a acreditar que existem certas coisas que TEMOS que consumir e que existem outras coisas que NÃO DEVEMOS consumir, seja pelo período em que vivemos ou por não sermos mais público-alvo.

É aí que Digimon entra. Eu tenho certeza que muita gente da minha geração vai olhar para o desenho hoje com aquela condescendência de que é “coisa de criança”. De fato Digimon foi produzido tendo como público-alvo as crianças, porém não essa ideia que a expressão quer transmitir. “Coisa de criança” é um eufemismo que certas pessoas usam para dizer que aquilo é uma mídia inferior pois elas são incapazes de imaginar um desenho infantil que tenha qualidades que transpassam as gerações. E ainda terão aqueles que para limitar a essas mesmas qualidades como fruto de nostalgia. No final das contas a gente está girando em torno de um mal que assola todas as discussões sobre filmes, desenhos e o que mais for na internet: péssimas críticas sobre mídias.

Quando Game of Thrones ainda gozava da boa vontade do público, eu lembro que havia uma mania de achar que personagens com moralidade cinza eram sinônimo de um roteiro bom. Da mesma forma que quando a febre de Attack on Titan iniciou eu vi alguns comentários que pareciam tirados de um fã de Game of Thrones porque uma das qualidades que apontavam da série é “ter coragem de matar seus personagens”. Esse último é particularmente engraçado para mim porque se a gente olhar pra Digimon, percebemos que morre personagem para cacete. Pumpkinmon, Gotsumon, Wizardmon, Sukamon, Chuumon, Piximon, Whamon e Leomon. Tecnicamente Angemon morre também no início da série, porém como ele volta num Digiovo eu escolhi ignorar.

Matar personagens não é indicativo de qualidade para nada e até uma série infantil tem essa “coragem”. O que faz diferença é como a morte desses personagens é utilizada dentro da narrativa e não apenas para chocar a audiência. A morte do Pumpkinmon e do Gotsumon é um bom exemplo disso, criando um tremendo efeito nos personagens do Matt e o TK. Esses Digimons aparecem no pequeno arco em que os Digiescolhidos voltam ao Japão para impedir Myotismon e seu exército de encontrarem a oitava criança.

Pumpkinmon e Gotsumon sendo atacados por Myotismon

Nessa parte já sabemos que o Matt e o TK apesar de irmãos não moram juntos. O primeiro vive com o pai e o segundo com a mãe. No começo do episódio os dois estão no trem com o TK dizendo que o Matt não precisa levar ele até em casa já que é mais longe de onde ele mora com o pai, porém seu irmão faz questão de ir com ele o caminho todo. Então existe um climão dos dois não conseguirem aproveitar totalmente a companhia um do outro porque sabem que ela vai acabar logo. Aí que o caminho deles se cruzam com o Pumpkinmon e o Gotsumon, ambos capangas do Myotismon que decidiram que não querem procurar a oitava criança e apenas se divertir pela cidade.

Os dois acabam criando um vínculo com o Matt e o TK e depois acabam sendo mortos pelo próprio Myotismon ao tentar proteger as crianças. O episódio termina com os irmãos tristes relembrando das travessuras dos Digimons pela cidade, mas não é apenas o sacrifício deles que causa essa dor. A camaradagem entre o Pumpkinmon e o Gotsumon simboliza a amizade que o Matt e o TK gostariam de viver, porém não conseguem por causa da separação dos pais. Isso é um tema que volta muitos episódios depois, quando o Matt tem uma crise ao ver que seu irmão mais novo está se tornando cada vez mais independente e assim teme que um dia ele vai sair da sua vida.

Esses detalhes sobre os personagens é algo que eu como criança não conseguia apreciar totalmente pois meus olhos iam para as criaturas fantásticas. Talvez até tinha alguma coisa ou outra que eu conseguia pegar. Por exemplo, aquele outro climão que tem quando os pais do Matt e TK se encontram é algo que eu me identificava por vivência já que meus pais se separaram quando eu era muito novo.

Por outro lado, o ressentimento da Sora com a sua mãe era algo que não ressonava comigo porque eu sempre tive uma relação muito boa com a minha mãe. Outro exemplo é a história do Izzy ser adotado. Quando criança eu nem parei para prestar atenção nisso. Hoje já é algo que me pega por eu conseguir entender a perspectiva dos pais que ficam com medo de como ele irá reagir quando descobrir a verdade e não vê-los mais com seus pais.

É pra isso que sempre volto as coisas do meu passado. Há dezenas de novas leituras que eu consigo produzir e valores que posso reconhecer com o amadurecimento que tive na vida. Confrontar suas próprias opiniões é um exercício intelectual que eu considero muito positivo para o nesse crescimento. O importante é não se deixar cair por uma lógica de Cinema Sins – canal covarde que se esconde por trás da desculpa conveniente do humor – de ficar caçando defeitos por achar que isso é que forma pensamento crítico.

A animação pode não ser tão fantástica quanto quando eu era criança? Dane-se! Eu entendo que uma série de 52 episódios não vai ter o tempo e orçamento necessário para produzir algo no mesmo nível do curta-metragem. A Mimi é muito subaproveitada na história? Dane-se! Eu entendo que quando você tem um elenco tão diverso alguns personagens não receberão a mesma atenção que outros. A série repete demais as sequências de digievolução? Dane-se! Eu entendo como isso serve para ligar um gatilho emocional que combinado com a trilha sonora gera um pico de excitação porque você sabe que é a virada do episódio. A narrativa é muito simples e os conflitos são resolvidos muito rápido? Dane-se! Eu entendo que estou assistindo a porra de um desenho para crianças, caralho!

Então se você realmente acredita nesse negócio de Regra dos 15 Anos e fica se privando de rever coisas que você gostava no passado porque acha que pode se decepcionar, saiba de uma coisa. O problema não são as mídias, o problema é 100% você. Foi você que cresceu para ser um adulto meio besta que não consegue mais apreciar mais a beleza de um cacto pugilista saindo no soco com uma galinha gigante.

Togemon, um cacto gigante, acertando um soco em Cockatrimon, uma galinha gigante, no desenho de Digimon
FODA!!!

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