O Scott tá meio diferente…

Em 2010 Edgar Wright lançou seu quarto longa-metragem: Scott Pilgrim Contra o Mundo. Esse foi um projeto um pouco diferente do que ele havia dirigido até então, pois se tratava de uma adaptação de uma obra existente. No caso era a graphic novel do homônimo Scott Pilgrim criada pelo cartunista Bryan Lee O’Malley.

A graphic novel se divide em seis volumes, originalmente publicados entre 2004 até 2010. Nesse período, Scott Pilgrim angariou muitas críticas positivas e fãs que teoricamente deveria aumentar com o lançamento do filme. Afinal o cinema tem essa capacidade de divulgar obras mais nichadas ou desconhecidas para uma grande massa. Infelizmente não foi o caso de Scott Pilgrim Contra o Mundo, pelo menos não no contexto de 2010, porque o filme bombou na bilheteria. Porém ele teve um destino positivo, alcançando o status de filme cult cujo público foi crescendo ao longo dos anos. Tanto que hoje ele é considerado um dos filmes mais subestimados da década passada.

Mas por que eu estou falando disso?

A minha impressão é que o filme é, no geral, bem quisto pela audiência, incluindo os fãs da graphic novel. Contudo, desde muito tempo que eu vejo um fã ou outro clamando por uma terceira adaptação – estou contando o beat’em up da Ubisoft aqui também – de Scott Pilgrim. Isso porque, como é de se imaginar, um único filme não é capaz de comprimir todas as histórias contadas em seis diferentes volumes. Contudo a premissa de ambos não diverge muito e a jornada de amadurecimento do protagonista é replicada nas duas versões.

Scott Pilgrim é um jovem de 23 anos que vive em Toronto e tem sonhos recorrentes com uma outra jovem misteriosa que anda de patins. Eventualmente ele encontra a literal garota dos seus sonhos e descobre que ela é Ramona Flowers. Apesar de Scott estar num “quase-relacionamento” com uma estudante de Ensino Médio, Knives Chau, ele e Ramona começam a sair. Os conflitos surgem quando Scott descobre que existe uma liga do mal formada por 7 ex-namorados de Ramona e, para ficar com a garota, ele precisará derrotar cada um dos seus rivais.

A sequência de eventos do filme também é bem similar ao do original, porém existem linhas narrativas relacionadas a outros personagens satélites que acabam sendo eliminadas. O confronto com o Nega Scott, por exemplo, que é um momento pivotal no arco do protagonista, acaba sendo deixado de lado e vira uma passagem cômica ao final do filme. Também foca-se tanto na ideia da liga dos ex-namorados de Ramona que os relacionamentos passados do Scott não recebem a devida atenção. Por essa ser essencialmente uma história de coming of agejá falei sobre esse tipo de história aqui – na perspectiva de um jovem que se resiste a amadurecer, esses momentos colaboram em muito para a jornada dele como personagem.

Portanto é mais do que natural pensar que muitos fãs gostariam de ver uma adaptação na qual essas passagens fossem incluídas. E logicamente o formato de uma série é o que se mostraria mais ideal para garantir que cobrissem a graphic novel por completo. Depois de uma década, a Netflix resolveu enfim atender esses pedidos. Em animação ainda por cima!

Ano passado já havia rumores que o Bryan Lee O’Malley estaria envolvido numa nova adaptação da sua grpahic novel com ele como showrunner. O projeto foi ganhando forma nos meses seguintes contando com pessoas que se envolveram nas adaptações anteriores. Edgar Wright seria produtor executivo, a maior parte do elenco do filme reprisaria seus papéis na dublagem e até a banda que compôs a trilha do jogo, Anamanaguchi, também contribuiria para série. Assim foi surgindo Scott Pilgrim Takes Off e o trailer selou o negócio. Os fãs estavam animados com a ideia que essa seria a tão sonhada adaptação que muitos deles desejavam.

A série foi ao ar alguns dias atrás e… não foi bem o que o pessoal estava imaginando, né?

Dependendo de qual bolha vocês se encontram no Twitter, vocês podem estar ouvindo coisas maravilhosas sobre Scott Pilgrim Takes Off. Ao mesmo tempo, há chances de esbarrarem com uma galera ensandecida pelo caminho que resolveram adotar nesse adaptação. Caso você não tenha visto, vai lá assistir pelo menos o primeiro episódio porque vou ter que falar da principal surpresa da série:

O primeiro episódio é praticamente uma versão animada quadro-a-quadro do primeiro volume da graphic novel. Claro que tem umas leves mudanças, porém no geral ele se mostrava como a tal adaptação que muitos fãs clamavam por na internet. Contudo, quando chegamos no momento em que o Scott vai enfrentar o primeiro ex-namorado de Ramona, Matthew Patel, as coisas mudam por completo. Para a surpresa da audiência, o Patel vence a luta e Scott é dado como morto.

Scott Pilgrim Takes Off, nova série da Netflix que faz uma leitura da graphic novel de Bryan Lee O'Malley focando na personagem da Ramona Flowers e seus ex-namorados
A Mônica já tinha nos alertado que aqui vinha o plot twist

Não vou entrar em mais detalhes da série, porque não é exatamente dela que eu vim falar aqui. Pelo que eu pude ver, a maior parte do público achou interessante o novo caminho que escolherem para Scott Pilgrim Takes Off. Porém volta e meia tropeço com alguém reclamando. Com algumas dessas pessoas eu consigo até demonstrar um pouco de compreensão, porque os trailers oficiais davam a entender que a série seguiria a história do original. Contudo com aqueles que automaticamente assumem que isso é ruim por ser diferente, aí eu só tenho risos a oferecer. Bate até um pequeno déjà vu afinal passamos por isso alguns anos atrás quando Mestres do Universo: Salvando Eternia decidiu dar o protagonismo da série para a Teela.

Para minha surpresa, porque não sou dado a otimismo, parece que deu uma diminuída nessa galera incomodada com mudanças. Ao mesmo tempo sei que estamos longe de perder essa obsessão pela tão idealizada “adaptação fiel”. Meses atrás tivemos isso com Castlevania: Nocturne, onde alguns fãs de Castlevania já se mostravam insatisfeitos porque pelo trailer já estava óbvio que essa não seria a mesma história de Rondo of Blood. E é aqui a gente precisa traçar uma linha.

Não existe um problema em dizer que uma determinada mudança foi ruim. O que eu acho digno de crítica é o repúdio genérico a mera existência dessa mudança. Ainda existe aqueles que acreditam que fidelidade automaticamente implica em qualidade. Por exemplo, eu passei uma década ouvindo gente achando que o problema dos filmes de Resident Evil (2002-2016) era porque eles se afastaram demais dos jogos. Não! O problema desses filmes é porque estiveram nas mãos de pessoas incompetentes como o Paul W. S. Anderson cuja única coisa boa que fez na vida foi casar com a Milla Jovovich. Quando tivemos aquela abominação chamada Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City, que está muito mais alinhada aos dois primeiros jogos, tivemos um aumento de qualidade? Não! É outro filme horrível.

Só que vejam bem, esses exemplos não servem para provar nem refutar nenhum dos dois lados da discussão. Fidelidade não é inerentemente positiva, tal como mudanças não serão necessariamente para pior. Existem casos e mais casos nessa história. Fullmetal Alchemist: Brotherhood é uma adaptação bem fiel ao mangá original da Hiromu Arakawa e é um dos animês mais aclamados do final dos anos 2000. Devilman: Crybaby, do Masaaki Yuasa, toma várias liberdades em relação ao clássico de Go Nagai e mesmo assim foi muito elogiado.

Se a gente quiser dá para ficar caçando exemplos que apoiem as narrativas de quaisquer lados dessa discussão. Por isso que não vale a pena gastar energia em torno da ideia de fidelidade ao original. Precisamos julgar adaptações, remakes, releituras, etc; segundo seus próprios méritos e segundo a sua visão sobre aquela história.

No caso de Scott Pilgrim Takes Off não precisa ser um gênio para entender o porquê de fazerem essa mudança. Um ponto que muitas pessoas já levantaram desde os tempos da graphic novel é como o Scott e a Ramona não são modelos a serem seguidos. Pelo menos não durante o curso da história, porque ambos demonstram várias falhas nas formas que lidaram com seus relacionamentos passados. É sobre como os dois juntos tentam se tornar versões melhores de si mesmos com a ajuda um do outro que deveria servir de inspiração. Esse arco de amadurecimento fica muito claro para o personagem do Scott, tanto no original quanto no filme. Portanto, na série decidiram jogar uma luz sobre a Ramona, para enfatizar como ela também precisa passar pelo mesmo arco, mas ao seu modo.

Então é nesse aspecto que se deve julgar essa adaptação. A série conseguiu criar, desenvolver e concluir uma história de amadurecimento satisfatória para a personagem? Me diz aí vocês, porque não sou eu que vou discutir esse ponto aqui. Porém se querem saber minha opinião, é que conseguiu sim!

Eu tenho minhas críticas em relação a série. Acho que embora ela tenha excelentes passagens na qual a Ramona precisa confrontar seus erros nos seus antigos relacionamentos – o episódio da Roxie para mim é o melhor exemplo – noutras acaba deixando por desejar. A animação é maravilhosa, principalmente nas cenas de ação, contudo tem algumas lutas que carecem de um propósito mais significativo. Algumas sequências, como quando a Ramona enfrenta os dublês do Wallace, passam uma energia de que estão ali para encher linguiça. Mas essas são críticas pontuais que tenho em cima daquilo que a série apresenta e não uma mera desaprovação porque “no original não é assim”.

Além disso, eu argumentaria que essa falta de fidelidade se encontra só na superfície dos eventos que desencadeiam essa história. Outras características da graphic novel estão presentes ao longo de toda a série. O senso de humor continua ali, a metalinguagem e, o que eu acho mais importante, os temas sobre amadurecimento que compunham a força motriz do original também. Estão todos presentes, só que numa história focada na Ramona Flowers e não no Scott Pilgrim.

Não ser uma “adaptação fiel” não configura qualquer demérito para Scott Pilgrim Takes Off. Você tem seu direito de ficar bravo pelo bait dos trailers, eu reitero que até certo ponto isso é compreensível. Contudo se negar a ter uma experiência nova apenas por esse preciosismo tolo com o material original é limitar em muito as discussões que uma obra pode fomentar. Já vimos o Scott derrotar o Gideon três vezes em três diferentes tipos de mídia, você realmente precisa mesmo de uma quarta?


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