As memórias do meu começo com o RPG Maker tem umas zonas nebulosas. Eu sei mais ou menos quais foram os primeiros jogos que eu conheci, embora alguns eu não lembre o nome, e tenho dúvidas acerca da ordem exata que eu os joguei. Uma das poucas certezas que tenho é que nesse grupo estava Ahriman’s Prophecy que eu encontrei no, surpreendentemente ainda existente, Baixaki. Eu cheguei nesse site antes mesmo do falecido Casa dos Jogos, lugar onde eu de fato descobri o que era esse tal de RPG Maker.

Tela de título de Ahriman's Prophecy, RPG de ação feito no RPG Maker 2k3

À primeira vista, Ahriman’s Prophecy pareceu para mim apenas mais um jogo como qualquer outro. Como eu era criança e tinha pouquíssimas referências no gênero de RPG, as particularidades que hoje tornam óbvias que era um jogo de RPG Maker passaram direto sobre a minha cabeça. Existem alguns padrões dessa engine que são fáceis reconhecer. Até mesmo em jogos com uma estética muito estilizada, como Space Funeral, você identifica quase que instantaneamente de onde eles saíram. Ainda mais se tratando das versões antigas, tipo o RPG Maker 2k3 onde desenvolveram o Ahriman’s Prophecy.

Nesses casos bastava abrir o menu. Embora tivesse como trocar o fundo, a disposição de elementos da interface não mudava, então com uma olhada bem por cima já dava para saber. Só que para especificamente Ahriman’s Prophecy esse exemplo não funciona pois, como citei no texto de Abraxas, ele tinha um menu totalmente personalizado:

Comparativo do menu personalizado de Ahriman's Prophecy com o menu padrão do RPG Maker 2k3
Só de pensar na trabalheira que foi criar esse menu…

Eu joguei novamente meses atrás e ainda me impressiona a qualidade e nível de detalhes desse menu. Porque, ao contrário do que se imagina, ele não foi codificado no jogo. O que tem aqui é um uso muito criativo e complexo de imagens, switches, variáveis, eventos e até mapas para criar toda essa interface. Se alguém for atrás do jogo, eu recomendo olhar a pasta de Pictures e de Charsets para ter uma noção da quantidade de recursos que utilizaram para criar esse menu. O cursor, por exemplo, nada mais é que o o próprio avatar do jogador com um charset diferente.

Quem já flertou com o desenvolvimentos de jogos nas versões mais antigas do RPG Maker sabe o trabalho que é fazer isso sem o uso de um script. Dava para fazer um texto todo exaltando Ahriman’s Prophecy só por causa desse menu, mas ainda tem outras coisas que o fazem ser um projeto de RPG Maker curioso. Em vez do tradicional combate por turnos que vinha imbutido na ferramente, o jogo decide ir por uma linha de RPG de ação. Esse gênero era mais do que comum nos consoles, mas que no “universo maker” ainda era uma moderada novidade.

Contudo o combate em tempo real de Ahriman’s Prophecy estava longe de ser perfeito, até mesmo na sua época. Hoje acredito que o melhor adjetivo que dariam a ele é “funcional”. Mesmo assim eu continuo adorando Ahriman’s Prophecy pelo que se propôs a fazer, ainda que não seja a experiência mais sofisticada de um RPG de ação. Tudo isso tem a ver com o fator de experimentação que é algo que tem me movido a revisitar alguns dos títulos mais antigos de RPG Maker. Mas antes disso vamos a…

UMA BREVE REVISÃO DE AHRIMAN’S PROPHECY

Ahriman's Prophecy foi um RPG de ação feito no RPG Maker 2k3

Hoje Ahriman’s Prophecy é algo um pouquinho diferente do que era em 2004. Quando Amanda “Fae” Fitch idealizou seu projeto, ele era uma história independente com um final que deixava espaço para uma sequência. Anos depois Fae criou a Amaranth Productions – que viraria Aveyond Studios mais a frente – e lançou seu primeiro jogo comercial, Aveyond 1: Rhen’s Quest, feito no RPG Maker XP. Desse jogo nasceu a série Aveyond na qual Ahriman’s Prophecy virou uma prequela dos eventos do primeiro jogo. Até hoje ele é o único feito numa versão diferente (2k3), e também o único que tem mecânicas de RPG de ação.

Em Ahriman’s Prophecy você controla Talia, uma simples garota do interior. Segundo a tradição da sua vila, ao completar 13 anos todas as jovens precisam ir até o oráculo para serem “nomeadas“, ou seja, receber o título da profissão que devem seguir na vida. Durante o seu ritual, ela tem uma visão de um príncipe tentando ressuscitar o espírito de um poderoso feiticeiro maligno chamado Ahriman. Acompanhada de seu amigo de infância, Devin, Talia vai para a escola de magia da cidade de Thais. Lá ela passa por um treinamento de três anos para se transformar numa feiticeira enquanto Devin vira um cavaleiro real. Depois de concluírem seu treinamento, os dois partem numa segunda jornada para interromper o renascimento de Ahriman.

Com essa rápida sinopse, já dá para entender que essa é uma história de fantasia. Porém Ahriman’s Prophecy tem menos relação com a fantasia medieval épica de muitos jogos de RPG e mais com uma fantasia pré-tolkiniana com muita inspiração nas histórias de contos de fada. O jogo faz várias alusões ao longo da gameplay como uma quest inspirada na história da Cinderela e um NPC que alude ao personagem do Galinho Chicken Little.

Uma das quests de Ahriman's Prophecy envolvendo a lenda de uma princesa aprisionada num caixão de vidro

O universo de Ahriman’s Prophecy é relativamente vasto. Mas não me refiro ao tamanho, falo de lore. Dá para notar que a Fae queria criar um mundo próprio para seu jogo e não apenas emular os RPGs dos consoles que cresceu jogando. Arriscaria até a dizer que ela já pensava em usar esse universo futuramente, pois a sequência de Ahriman’s Prophecy veio dois anos depois do seu lançamento. Óbvio que o jogo ainda tira muitos elementos de RPGs clássicos como os jogos da franquia de Dragon Quest. Mas para ser honesto, essas são referências mandatórias para qualquer um compreender os fundamentos do gênero.

A lore que ela criou também se faz evidente nas “escolas” de magia do jogo. Talia pode escolher uma dentre diversas classes ao encontrar os NPCs respectivos de cada classe. Além de magias específicas, a Fae também cria uma “cultura” própria para as classes mágicas que denota muita preocupação em fazer o universo de Ahriman’s Prophecy mais vivo. Seja através do lore, sound design e pequenos detalhes outros detalhes. Nas regiões pantanosas você ouve um zumbido constante de mosquitos. No mapa da neve há sempre um vento frio soprando. Nas florestas, vez vê pássaros sobrevoando as árvores de tempos em tempos. Era um cuidado com o design de mapas que muitos makers não prestavam atenção naqueles tempos.

A trama é bem fina e alguns pontos importantes são revelados em diálogos muito expositivos que carecem de impacto dramático. Um exemplo é quando revela-se a identidade da mãe de Talia, um momento simplesmente jogado num pequeno diálogo e que não parece surtir qualquer efeito para a personagem. Não tem grandes reviravoltas e o desenvolvimento de personagem é praticamente superficial. Contudo, no geral, Ahriman’s Prophecy é uma boa aventura recheada de fantasia.

O jogo tem um universo gostosinho de explorar e com uma boa dose de side quests. Embora a maior parte delas se resolva falando com um personagem, ou indo até o ponto A pegar um item e levá-lo ao ponto B. Também tem uns bugzinhos aqui e ali, mas no geral nada que vá quebrar seu jogo. Há bastante diversidade de locais e o jogo tem uma duração significativa considerando que é um projeto “simples” de RPG Maker.

Estou esquecendo de mencionar de falar de alguma coisa mais? Ah sim…

O COMBATE DE AHRIMAN’S PROPHECY

RPG Maker 2k3 usava o ATB como sistema de batalha

O apelo do RPG Maker é facilitar a criação de RPGs para usuários que entendam muito pouco ou nada de programação. A simplificação por um lado é muito boa para introduzir mais pessoas ao game design. Por outro, o usuário fica limitado as funções disponibilizadas pela engine. Contudo isso nunca impediu de vários makers explorarem os limites do que se poderia fazer no RPG Maker. No exemplo que dei lá em cima, Abraxas, o mogezilla criou um sistema de alternar entre personagens similar ao de Sweet Home.

Dentre as várias facilidades que o RPG Maker disponibilizar, a principal é de ter um sistema de batalha embutido. Nas suas primeiras versões, até as anteriores ao RPG Maker 2k, ele vinha com combate por turnos tradicional como o Dragon Quest. Já no 2k3 mudaram para o famoso Active Time Battle dos Final Fantasy mais antigos. Você ainda tinha que criar as magias, monstros, balancear atributos, etc; mas já reduzia imensamente o trabalho. O único revés é que você não podia ir muito além das funcionalidades criadas para esses sistema. Não que isso impedisse os makers de testar esses limites, né?

RPGs de ação no período que eu frequentei as minhas primeiras comunidades não eram tão comuns. Ou então foi eu que conheci pouco, de cabeça mesmo só consigo puxar no momento O Artefato. Também tenho vagas memórias de um jogo com vários personagens selecionáveis, feito no RPG Maker 2k3, que o nome não me recordo. O Artefato era bem simples, o monstro se aproximava e você apertava o botão de ação para atacar até o bicho morrer. Já aquele cujo o nome não lembro era mais complexo. Além dos ataques normais você também tinha três tipos diferentes de poderes: um projétil, um em área e outro que pegava o mapa inteiro.

Ahriman’s Prophecy também tem sua complexidade particular. É o mesmo esquema de se aproximar do monstro e apertar o botão de ataque, porém aqui o jogo alterna entre os personagens que estão no seu time. Cada personagem tem sua barra de HP e atributos próprios, além de diferentes animações de ataque. Tanto o dano causado nos monstros quanto a EXP que você recebe aparecem por cima dos personagens. Há também um sistema de magia simples, com um menu que dá para acessar apenas quando em combate, além de alguns itens especiais. Por fim, monstros podem infligir e também receber status negativos como envenenamento além de alguns terem magias também.

Eu diria que é bem impressionante o que a Amanda Fitch conseguiu fazer no seu jogo dado todos os limites impostos pelo RPG Maker. É um sistema bem funcional e se deram o trabalho de criar um HUD que emulava mais a gameplay de RPG de ação. Porém isso não significa que mesmo com toda sua criatividade não existam alguns probleminhas com o combate de Ahriman’s Prophecy.

Por exemplo, os inimigos não tem aquele recuo ou “trava” quando você os ataca. No máximo eles andam em algum momento, o que faz você errar um ataque, então o combate é essencialmente um toma lá, dá cá com smash button. As magias não tem uso imediato. O que acontece quando você seleciona uma no menu o personagem a “equipa” e ela só vai ser acionada no seu próximo ataque. Os monstros tem um intervalo fixo para seus ataques ocorrerem, portanto é bem comum você passar perto de um e de repente sofrer o dano quando você já está há muitos passos de distância.

Talia soltando uma das suas magias em Ahriman's Prophecy
Vale mais a pena só descer a porrada nos monstros

O desbalanceamento de Ahriman’s Prophecy também é notável. Vários inimigos são esponjas de dano e você se vê gastando vários itens de cura, principalmente com os personagens com defesas menores, nas zonas da segunda metade do jogo. As habilidades do Devin não se mostram muito efetivas, então você quase nunca as utiliza. Nem mesmo as de Talia valem tanto a pena assim, porque o tempo que você leva selecionando uma magia ou item, acaba dando espaço para receber um ataque assim que sai do menu.

E por fim tem os chefões que tornam mais ridículo o button smash do jogo. O personagem fica travado, então suas únicas ações são de atacar ou selecionar uma magia. Ainda que você pudesse se mover não faria diferença, afinal todos os ataques e magias são acionados por contato. Então as lutas são mais determinadas por seus personagens terem HP o suficiente em vez de qualquer habilidade do jogador. A curva de aprendizagem nesse jogo é inexistente.

Por mais que é louvável a capacidade de Ahriman’s Prophecy de usar os discursos disponíveis no RPG Maker para criar um combate em tempo real, também não dá para negar que o resultado final da jogabilidade carece de qualquer sofisticação. Só que há um porém aqui. Eu acredito que nenhum jogo de RPG Maker que se preze busca, e nem deveria buscar, isso. Porque o valor desses jogos não está em criar uma experiência sofisticada e sim na sua qualidade “experimental”.

A EXPERIMETAÇÃO NO RPG MAKER

Recentemente eu fiz um texto sobre Vila do Nevoeiro, um ambicioso survival horror brasileiro feito no RPG Maker XP quinze anos atrás. O que chamou atenção nesse projeto foram seus gráficos pré-renderziados que tentavam passar a ideia de jogo aos moldes de Resident Evil e, mais do que óbvio, Silent Hill. Foi um jogo bem peculiar para as comunidades da época, porém, tal como Ahriman’s Prophecy, ele estava longe de ter uma jogabilidade sofisticada. Isso porque o RPG Maker não dava capacidade real para se fazer um jogo 3D então Vila do Nevoeiro é um 2D disfarçado.

O Monstro-Parafuso, um dos inimigos comuns de Vila do Nevoeiro

Só que isso não importa. As limitações de Vila do Nevoeiro não afetam verdadeiramente a experiência do jogo porque o que vale a pena ver nele é esse fator da experimentação. Nas minhas palavras:

Buscar jogos de RPG Maker hoje para mim é muito menos sobre entretenimento ou para encontrar algo que me dê uma experiência ótima e otimizada. O que eu procuro é tentar entender o que se passava na cabeça do maker quando ele decidiu produzir aquele jogo. Quais eram suas inspirações? Que conceito ele queria testar? Que história ele queria contar? Por que justamente aquele jogo, daquele jeito, naquela ferramenta?

No cinema nós temos os chamados filmes experimentais, um estilo de cinema que desafia as convenções contemporâneas como uma forma de explorar novas técnicas e tecnologias que se afastam dos métodos narrativos tradicionais. Embora fiquem muito limitados a um nicho de cineastas, acadêmicos e espectadores, os filmes experimentais são responsáveis por trazer novas ideias que podem eventualmente serem incorporados no cinema mainstream/comercial.

Eu não vou dizer que o RPG Maker é o “cinema experimental do desenvolvimento”. Contudo também não acho que seria um exagero dizer que é um ambiente que incentiva a experimentação. Até mesmo nos projetos que estão obviamente emulando jogos populares, eu ainda diria que tem uma qualidade experimental ali. Só que é num sentido mais íntimo, meio que numa jornada de autodescoberta. Fazer um jogo no RPG Maker não é uma exatamente uma forma de confrontar aquilo que está estabelecido na mentalidade de game design contemporâneo. Nem mesmo dentro do cenário indie. É na verdade um caminho para descobrir, desenvolver e demonstrar suas visões.

Acredito que poucas pessoas começam um projeto de RPG Maker com essa mentalidade de se tornar um desenvolvedor de jogos profissional. Algumas podem até se tornar um, porém naquele momento inicial os makers estão mais é se divertindo com a ferramenta sem o peso de ter que entregar um jogo de fato. Tanto é que 90% – e olha que estou sendo otimista nesse chute – dos projetos de RPG Maker nunca são finalizados. Você pode olhar qualquer fórum ativo, como a Condado Braveheart por exemplo, que a sessão de jogos em desenvolvimento é sempre bem maior do que a de jogos completos. Isso sem levar em conta que alguns dos completos são jogos estrangeiros, traduzidos ou não, ou algum clássico perdido que alguém decide repostar.

Por isso eu acho errado quando tentando analisar qualquer jogo do RPG Maker segundo os padrões de jogos mais comerciais. Não digo que se tem que “pegar leve” com esses jogos, mas sim evitar de exigir um grau de sofisticação que jogos profissionais exibem. RPG Maker não é sobre criar uma experiência perfeita, é para dar vazão a uma ideia e brincar com alguns conceitos que estão cozinhando na sua cabeça, sem muita pretensão de criar um jogo que vá ser sucesso de vendas ou impactar agentes da indústria de jogos em algum grau.

Último chefão, o homônimo Ahriman

Sofisticação é uma palavra que não cabe e nem deveria caber no RPG Maker. Ahriman’s Prophecy poderia ser feito num Game Maker, Unity, Unreal, o que fosse que provavelmente a jogabilidade ficaria mil vezes melhor. Ou então se seguisse com o ATB do RPG Maker 2k3 para o sistema de lutas teria uma gameplay mais “adequada”. Mas não é sobre isso! Se Ahriman’s Prophecy fosse mais convencional, ele seria apenas mais um RPG em meio aos outros. Porém ao tentar fazer algo diferente, mesmo que cheio de pequenos problemas, isso deu a chance do jogo ser especial por si só.

Claro que os makers prezam por algum nível de qualidade em seus jogos, porém não com essa obsessão por refinamento que só tende a levá-los para mais próximo de abandonar o projeto. Dentro das suas limitações, existem ideias fantásticas que foram, são e continuarão sendo desenvolvidas no RPG Maker sem qualquer sofisticação. Podem não ser jogos populares, e infelizmente muitos deles serão esquecidas, mas está tudo bem. O característica mais atrativa de usar o RPG Maker não é para criar um vencedor do GOTY, é te dar uma chance em experimentar as sensações de fazer aquele jogo que está preso na sua cabeça. Fique ele completo e otimizado ou não!


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