
Ontem, ao acordar, umas das primeiras coisas que vi ao abrir o Bluesky foram comentários sobre a Itch.io que havia removido vários jogos marcados como Not Safe For Work (NSFW) da sua plataforma. Naquele momento eu não tive qualquer reação. Em parte porque eu ainda estava letárgico por acordar cedo, mas também porque acredito que inconscientemente já esperávamos por esse desfecho. A mesma coisa aconteceu na Steam na semana passada, onde mais jogos com “conteúdo adulto” também foram removidos.
Tecnicamente, no caso da Itch.io, os jogos ainda não foram removidos. Primeiro a plataforma os desindexou, ou seja, eles não aparecem mais na busca. Você precisa vir por meio de um link ou, se eu não estiver enganado, através do Google. Nas próximas semanas a Itch.io conduzirá uma revisão de todos os jogos considerados impróprios para determinar quais podem ser restaurados e quais serão de fato tirados do site.
Embora os complementos de “+18”, “para maiores” e NSFW deveriam abranger diversos temas, como violência gráfica e profanidade, na prática eles são utilizados para descrever conteúdo erótico. Da nudez mais leve até o sexo explícito. Nuance pra quê, né? Portanto vocês sabem muito bem quais jogos que a Steam e a Itch.io chutaram e irão chutar das suas lojas. Essa é uma ação que por si só iria gerar rebuliço entre os desenvolvedores e os jogadores desse nicho. Entretanto o buraco é mais embaixo, pois a remoção do dito “conteúdo NSFW” não foi uma decisão vinda do alto escalão dessas empresas. A decisão veio de fora, uma exigência das empresas que processam os pagamentos das compras de jogos. Na Steam, se não estou enganado, as principais são a Mastercard e a Visa enquanto na Itch.io é a PayPal.
Mas por que isso aconteceu? Bom, uma organização sem fins lucrativos chamada Collective Shout tomou os créditos pela decisão da Steam. Na teoria, segundo o seu site, o grupo tem como missão organizar campanhas contra a objetificação de mulheres e sexualização de garotas. Na prática, é só mais um coletivo conservador incapaz de lidar com arte que consideram imoral e nociva para a sociedade.
Pois bem, duas semanas atrás, a Collective Shout compartilhou uma carta aberta direcionada a algumas dessas empresas de pagamento alegando que elas lucravam com jogos que continham estupro, incesto e abuso infantil na Steam. Numa nota publicada ontem, a Itch.io cita a campanha orquestrada pelo grupo como o principal motivo para a remoção dos jogos considerados NSFW.
Eu não acho que esse foi o motivo. Ou pelo menos não o único motivo. Tais organizações que eu gosto de chamar de “Organizações Mãe do Kyle” – quem não entendeu vá ver South Park – existem aos montes e estão sempre criando estardalhaço por filmes, séries, jogos, etc; que consideram problemáticos. Principalmente quando dá para usar crianças como escudo para atingirem seus objetivos. A campanha da Collective Shout é só uma mais dentre as várias que acontecem anualmente. Nem me surpreende que essa é uma organização australiana, um dos países com leis muito restritivas sobre representação de violência, sexualidade e outros temas em vídeo games.
Cultura é uma arma muito útil para qualquer grupo político, pois é algo que nos conecta universalmente e muito fácil de moralizar quando toca em tópicos sensíveis. Eu vou focar na Itch.io daqui para frente, mas o tom do artigo se aplica a Steam também. Se você contestar a remoção desses jogos qualquer um pode se contrapor dizendo que você está defendendo abuso infantil, estupro, etc. Não a representação desse tema, mas o crime em si. É muito difícil ter uma discussão racional a partir daí, até porque muitas pessoas vão considerar que não existe diferença. A mera reprodução desses elementos problemáticos vira uma apologia.
Muita gente carrega uma visão (limitada) de que a arte precisa ser pura do ponto de vista moral e não pode tocar em aspectos mais sombrios da natureza humana. Não pode mergulhar em temas desagradáveis, não pode gerar desconforto, não pode ser transgressiva. A arte deve somente edificar e provocar reflexões dentro de escopos seguros para toda a família.
Você não querer consumir esse tipo de conteúdo é algo que acho perfeitamente compreensível. É uma escolha individual como qualquer outra que tomamos na vida. Eu, por exemplo, não tenho interesse em jogos eróticos ou transgressivos. Uma ou outra coisa pode chamar a atenção se eu ver que tem temas interessantes sendo discutidos ali, mas não é um conteúdo que eu vou atrás. Só que eu não tenho problema que tais jogos existam, contanto que não exista nada ilegal na sua produção.
A questão é que essas, “Mães do Kyle” – e só pra deixar claro, o termo não se restringe ao gênero – não se contentam apenas em não consumir e não deixar que seus filhos consumam esse tipo de conteúdo. Classificação indicativa, avisos sobre violência gráfica, trigger warnings, tags, todas as formas de controle e alerta sobre a natureza de determinadas obras também não importam. Esse conteúdo não pode existir! Não existe nuance, não existe análise crítica, não existe sequer uma análise! É conteúdo adulto, ou melhor, “conteúdo adulto”? REMOVA IMEDIATAMENTE!!!
Ok, mas até agora eu falei da perspectiva dos indivíduos. Um coletivo, mas ainda sim indivíduos. A Itch.io é uma empresa e assim a sua situação fica um pouco diferente. A arte não se baseia apenas naqueles que produzem e aqueles que consomem. Há também aqueles que vendem e aqueles que processam essa venda. Nessa grande máquina da produção cultural, não existe uma engrenagem que pode ser descartada sem pensar duas vezes que não seja o conteúdo NSFW. Empresas estão plenamente dispostas em comercializá-lo em suas plataformas enquanto for conveniente. É uma receita muito bem-vinda e a Itch.io sempre deixou isso claro. Vide algumas publicações das redes sociais dela que o pessoal conseguiu resgatar:

Só que essas empresas também estão plenamente dispostas a chutar esse mesmo conteúdo quando ele se mostrar um pouquinho inconveniente. Então, ainda que o sentimento de traição esteja ali, acredito que muitos artistas já esperavam que em algum momento o golpe viria. É a “síndrome do Yoshi” que eu brinco lá no título. No momento que surgir alguma turbulência, o conteúdo NSFW será o primeiro a ser largado para que a plataforma consiga se resguardar. “Para comprar mais tempo”, alguns tentarão defender, achando que uma vez que você abre a caixa de Pandora você pode simplesmente colocar as coisas de volta lá dentro.
Para os artistas é uma posição muito ingrata, afinal não tem muitos lugares para que eles possam correr. Não existe uma alternativa viável. Pelo menos não como costumava ser na Itch.io onde lhe ofereciam liberdade artística, infraestrutura e possibilidade de monetizar o seu trabalho com facilidade. Acho que é até por isso que o pessoal se incomodou mais com o caso dela do que com a Steam, uma empresa muito mais consolidada no mainstream. Era só questão de tempo até eles removerem o conteúdo “indesejado”.
Essa situação já seria ruim por si só, afinal representa a perda de mais um espaço para esses artistas e seus públicos. Mas a forma que a Itch.io lidou com isso foi da pior forma possível. Jogos foram desindexados sem qualquer aviso prévio, com a nota saindo no meio da madrugada. Artistas estão com dificuldades de receber pelas cópias que já haviam sido compradas e alguns usuários relataram que tiveram os jogos removidos dos seus perfis também*. No subreddit da Itch.io é um clima de Deus nos acuda, com algumas pessoas recomendando que os outros baixem o máximo de jogos possíveis para garantir sua preservação.
*EDIT 28/07/2025: Segundo o adendo da Itch.io publicado na mesma nota anterior, a empresa afirmou que as ações tomadas até esse momento não impactaram as bibliotecas de produtos já pagados dos usuários. Eles recomendam entrar em contato com o suporte para saberem se foi algum erro no sistema.
Também o caso levanta preocupações que vão além da Steam ou da Itch.io. A ideia que empresas financeiras podem ditar o tipo de conteúdo que as pessoas devem consumir pressionando as plataformas a aderir às suas exigências. Até mostra como a necessidade de mais canais de pagamentos é importante. Mas mais do que isso, eu acho que o pensamento que mais assombra agora o público é do, como diz a música, “quem será a próxima vítima agora?”.
Não é nem uma falácia de declive escorregadio, porque (in)felizmente podemos ver isso em curso neste exato momento. Não foi apenas o tal do NSFW foi desindexado da Itch.io, mas também jogos com temáticas queer que nem mesmo tem algum conteúdo explícito. Tudo que tinham eram tags como “transgender” ou “LGBTQIA” e vocês sabem que qual é a principal conotação que pessoas queet recebem por aí, né? Quando você deixa as definições de conteúdo adulto bem flexíveis, você consegue generalizar muita coisa se estereotipar direitinho.
Também temos que reconhecer que a defesa desses jogos é também uma posição muito ingrata de se manter. Não adianta tentar explicar que nem todo tema que causa incômodo é inerentemente perigoso. Também não adianta dizer que muitos grupos marginalizados buscam em conteúdo NSFW uma forma de expressar sua sexualidade ou discutir seus medos, traumas e experiências de vida através da arte. Nem mesmo adianta explicar o que é arte transgressiva ou que tem muito conteúdo normal sendo pego no fogo-cruzado por conta estereótipos associados a certas comunidades.
E sabe por que não adianta? Porque em qualquer momento uma “Mãe do Kyle” pode puxar um jogo como No Mercy, cujo slogan era algo como “torne-se o pior pesadelo de qualquer mulher”, e dizer que é com esse tipo de coisa que as plataformas estão expondo aos seus filhos e ganhando dinheiro com isso. Daí é só generalizar para outros tipos de jogos, fazer muito pânico moral para que não tenhamos uma visão com nuances do tópico e assim lá se vai outro Yoshi pelo precipício.
EDIT 30/07/2025: fiz um segundo artigo complementando esse em que falo sobre as críticas que a Itch.io vem recebendo e se ela tem alguma culpa nessa situação.
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