Gostaria de abrir o texto já dizendo que o título foi intencionalmente hiperbólico com o único objetivo de atrair cliques. Entretanto ele não foge completamente da minha opinião. A forma mais correta seria dizer que hoje eu acho que o termo “survival horror” tem mais atrapalhado do que ajudado o gênero de terror. Isso porque ele limita as visões que o público tem a cerca do que é possível de se explorar em jogos de terror.
Eu explico!
Por conta do evento de Silent Hill de ontem eu acabei me envolvendo num diálogo com um rapaz aleatório na internet onde ele me fez o seguinte questionamento:
E desde quando Silent Hill é surival horror? Ele é TERROR PSICOLÓGICO!
Rapaz aleatório da internet, 2022
A minha primeira reação foi a de suspirar e pensar “aff, mais um desses…” e pedir a Deus por mais paciência. Felizmente as minhas preces foram atendidas e depois algumas mensagens depois o diálogo se tornou um momento de aprendizado. Acontece que o rapaz estava errado e certo ao mesmo tempo. Errado ao achar que Silent Hill nunca foi survival horror e certo por achar que Silent Hill é terror psicológico. O problema aqui é que ele, e algumas outras pessoas que já vi repetindo esse discurso, pensou que esses termos eram mutualmente exclusivos. Mas, na verdade, eles descrevem duas coisas completamente diferentes.
Como não estamos acostumados com o lado mais teórico das mídias, a gente deixa de perceber algumas particularidades. Um delas é que quando falamos sobre gêneros eles mudam de acordo com o tipo de mídia. O gênero em jogos é bem diferente do gênero em filmes. Que por sua vez é diferente do genêro em literatura. Pondo em termos simples, que é o que eu entendo, o gênero dos filmes é influenciado por elementos narrativos e estéticos. Enquanto isso, nos jogos, o gênero vem da forma que se joga.
Por isso que gosto de dizer que na classificação de jogos a gente precisa considerar dois tipos de gêneros: gameplay e ficção. O primeiro se baseia na jogabilidade e o segundo que depende da ambientação / tom. Citando um exemplo bem simples, The Elder Scrolls e Fallout são duas franquias de RPG (gameplay). Porém um é RPG de fantasia (ficção) e o outro é um RPG de ficção científica pós-apocalíptica. E se quiser jogar outro título na roda, podemos citar Chrono Trigger. É mais um RPG só que mistura tanto os gêneros de fantasia com ficção científica.
Com isso em mente já dá pra ver qual o problema com o comentário do rapaz, né? Ele confunde a gameplay de Silent Hill, que é de fato a de uma associada aos survival horrors, com o terror psicológico que seria, nos meus parâmetros, o seu gênero de ficção. Dentro dessa linha de pensamento, podemos citar mais uns exemplos. Resident Evil é um survival horror com temática de terror sci-fi. Já Fatal Frame possui elementos de terror rural. E por aí vai. Eu até sei que hoje empurra-se a ideia de terror psicológico com um gênero de gameplay, porém eu discordo da sua aplicação. A vejo mais como uma tentativa forçada de dizer que é um estilo novo para fins de marketing.
Mas esse não é o ponto do texto. Voltando ao parágrafo inicial, por que eu acho que o survival horror hoje está mais atrapalhando do que ajudando?
Desde que o termo foi criado com o lançamento do primeiro Resident Evil, dada a popularidade da franquia que se mantém até hoje, ele virou a “cara” do survival horror. Sinto que isso vem limitando muito a percepção do público sobre o que seriam jogos de terror. Dessa forma muitos jogos que tem propostas diferentes de gameplay acabam sendo jogadas no mesmo saco de survival horror.
O jogo que foi a principal inspiração para Resident Evil, Sweet Home, hoje é retroativamente classificado como um survival horror. Contudo é bem claro que ele é um jogo de RPG. Que também possui elementos de jogos de aventura pelo uso de coleta de itens para resolver puzzles e liberar novas áreas. Isso faz a gente tropeçar em outro ponto que é como em jogos a gente pode ter uma amálgama de diferentes jogabilidades que torna o processo de classificação mais confuso. De qualquer forma, Sweet Home poderia simplesmente ser classificado como um RPG de terror, mas precisa receber o rótulo popular. E ele não está sozinho nessa. Clock Tower, lançado em 1995 para o Super Nintendo, é outro jogo pré-Resident Evil que hoje recebe a alcunha de survival horror quando claramente é um jogo de aventura point-and-click inspirado nos filmes giallo do Dario Argento.
Eu já me preocupo com a possibilidade de um dia alguém numa análise retroativa se referir a Splatterhouse como uma franquia de survival horror beat’em up.
Eu não consigo entender porque essa dificuldade em encarar jogos simplesmente como terror sem precisar usar um rótulo específico. Ou então entender que o terror é um conceito aplicado a jogabilidade sem necessariamente alterar a natureza dela. Por exemplo, dois dos meus jogos favoritos da vida ambos tem elementos de terror: Little Nightmares e Hellblade: Senua’s Sacrifice. Dá para colocar o rótulo de jogo de terror nos dois, em Senua então cabe perfeitamente também os de fantasia sombria pela ambientação e terror psicológico pelos temas de psicose representados através da protagonista. Mas isso está atrelado ao campo do gênero da ficção desses jogos, pois se tratando de gameplay um é um jogo de plataforma e puzzles enquanto o outro vai por uma linha de ação-aventura.
Vejo que chegamos num ponto que é mais do que necessário de parar de se apoiar um pouco nesse termo de survival horror como se ele fosse a única forma de se expressar o terror nos jogos. Não acho que precisa acabar com o rótulo de uma vez por todas, afinal ele é ideal para descrever vários títulos. Porém em muitos casos o termo “jogo de terror” já deveria bastar, no máximo precisando de um complemento, como no caso de Little Nightmares e Sweet Home, para se entender um pouco mais da sua jogabilidade.
Tenho pensado nisso não apenas por conta do meu diálogo com o rapaz aleatório da internet, que foi bem compreensível e educado quando nos entendemos, mas por conta das reações recentes que vi sobre Scorn: um jogo que tem uma proposta bem afastada de um Resident Evil da vida indo mais pro lado da aventura enfatizando mais puzzles e exploração, que as percepções erradas sobre o gênero estão fazendo pesar nas opiniões sobre ele.
Temos que tornar o público mais mente aberta a outras propostas de gameplay para evitar esse tipo de situação que acredito ser um tanto injusta com muitas obras desse gênero que estão tentando trabalhar com experiências diferentes.
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