Cirilo, personagem de Carrossel, soltando a clássica "Você já encheu minha paciência, Maria Joaquina"

Era uma tarde de um domingo tranquilo quando eu cometi o erro de casualmente abrir o Twitter. Um erro que infelizmente eu costumo cometer todos os dias. Enquanto eu scrollava pela minha linha do tempo o algoritmo fez questão de me mostrar a um dos meus velhos inimigos de internet: a hot take!

Estamos acostumados a ver opiniões falsas ou simplesmente burras pela internet 24 horas por dia. Contudo, dependendo do caso, elas ainda conseguem surtir efeitos na gente. Falando de mim, por exemplo, existem dois gatilhos que sempre conseguem me tirar do sério. Os dois são ver pessoas falando alguma besteira sobre obras de terror ou então sobre jogos antigos. Portanto, a fala do colega aí em que ele afirma em que não há jogos bons de Game Boy me pegou. Até porque nos últimos anos eu passei a ter um grande respeito pela biblioteca do portátil. Olhando retroativamente é fantástico ver como os desenvolvedores naquela época souberam trabalhar dentro das limitações tecnológicas e construir gameplays que se sustentam até hoje. É só não ser um babaquinha hipercrítico que você acha coisas muito boas por lá.

O que mais me incomodou naquela fala, como eu disse no meu Twitter de forma um tanto agresssiva, que esse é o tipo de take burra que eu espero do zezinhogamer12, um pivete que foi desmamado a Digital Foundry e quase vomita se ver um gráfico pixelizado. Porém o dono do tweet não é um zezinhogamer12 da vida. Ele é o editor-chefe de um dos mais conhecidos veículos de mídia especializados em vídeo games que é o VG247, ativo desde 2008. E ver alguém nessa posição recorrer a essa forma estúpida de engajamento é no mínimo decepcionante. Ainda mais considerando o quão marginalizado o jornalismo gamer continua sendo.

Mas estou me adiantando. Antes de ir mais a fundo nessa questão, precisamos entender o que diabos é uma hot take.

Procurando uma definição para o termo hot take eu cheguei no artigo, “A History of the Hot Take”, da jornalista Elspeth Reeve. Um dos trechos que capturou a minha atenção foi quando a jornalista traz a fala de um outro escritor, Simon Maloy. Ele define hot take como: um comentário deliberadamente provocativo baseado quase inteiramente numa moralização barata. Eu gostei bastante dessa definição por conta dos termos “deliberadamente provocativo” e “moralização barata” . Tais termos, para mim, vão na raiz do problema que eu tenho com essa cultura de hot take das mídias sociais.

Precisamos entender que provocações são sim necessárias para o discurso público pois elas podem instigar debates em questões pouco discutidas até pela mídia especializada. Provocações também podem trazer novas visões e raciocínios que, se bem fundamentadas, vão mudar nossa percepção sobre conceitos e cenários contemporâneos. Mas notem, eu disse SE BEM FUNDAMENTADAS. Mas como o texto da Elspeth Reeve aponta, a hot take “raiz” por vezes são escritas a pressa e nesse tom vexatório. Isso porque não existe uma motivação jornalística e nem argumentativa por trás delas. Por isso, no geral, essas hot takes não se sustentam por muito tempo e são facilmente derrubadas. A real intenção seria apenas a de causar uma reação e capitalizar em cima dela.

É mais do que sabido hoje que, nas redes sociais, o conteúdo negativo ganha muito mais visibilidade e engajamento do que o positivo. Sites como o Twitter e o Facebook são alimentados pelo ódio. Não é a toa que temos esse meme de “vilão do dia“, onde sempre tem algum tweet viralizando porque a pessoa falou alguma merda. Na política então nem se fala, porque o que mais ganha atenção são as postagens que atacam e debocham dos seus opositores ideológicos. Se formos para o YouTube, o que mais tem é criador de conteúdo estabelecendo carreira falando mal das coisas.

Na comunidade gamer não é muito diferente. Toda semana tem uma dessa correntes estimulando as pessoas a darem suas opiniões polêmicas a respeito de um jogo ou de uma franquia. Isso quando não perdemos tempo em discussões sem fim que vão e voltam o tempo todo. Como aquelas sobre modo fácil em Dark Souls, se jogos são arte, dissonância ludonarrativa, ou qualquer outra bobeira gamer. Até que poderíamos ter um bom espaço para provocações que promovam e melhorem do discurso médio sobre jogos. Que está altamente necessitado! Só que em meio a essas opiniões ditas controversas, o que a gente encontra são apenas opiniões burras quando não completamente erradas. E aí a gente volta para o tweet acima.

Dizer que não havia jogos bons no Game Boy é burrice e eu tenho certeza que o editor-chefe da VG247 sabe disso. Não quero acreditar que alguém chega a um cargo de liderança assim acreditando nesse tipo de asneira. E eu digo isso porque no artigo, que foi oportunamente linkado na sequência de tweets que ele fez logo após a hot take, ele omite vários dos clássicos consagrados do portátil como The Legend of Zelda: Link’s Awakening, Pokémon Red & Blue, Super Mario Land 2 – 6 Golden Coins, Castlevania II: Belmont’s Revenge e por aí vai. Esses são só alguns dos que eu conheço, inclusive o Super Mario Land 2 foi uma das minhas recomendações da minha Jogospectiva do ano passado.

O que o cara faz é jogar essa responsabilidade para o público. Porque ele sabe que a afirmação de que não há jogos bons de fato no Game Boy motivaria várias pessoas a engajar com a publicação citando vários títulos. E funcionou! O tweet já conta com quase 200 mil visualizações e cá estou eu escrevendo um texto por causa dele. Conseguiu mais visualizações do que ele conseguiria se apenas pedisse que o pessoal desse bons jogos do Game Boy para ele testar.

E há uma autocrítica a se fazer aqui por nós insistirmos em interagir com esse tipo de conteúdo que quer ganhar audiência pelo fator treta. Porém isso também não muda o fato de como o editor-chefe da VG247 está empobrecendo o discurso sobre jogos com a sua atitude. Dada a posição que ele ocupa tem a responsabilidade de elevar o debate, não o contrário. O gamer emocionado que não pensa criticamente sobre as coisas que consome a gente já espera o comportamento, então é dever dos demais não agir da mesma forma. A gente já vive num cenário que os os “jornagamers” são desprezados até mesmo pelo lado mais sensato da comunidade. Eu até brinco que o jornalistas de jogos não escrevem para gamers e sim para outros jornalistas. Isso vira uma câmara de eco que só serve para alimentar discórdia com quem está fora do grupinho.

Eu odeio hot take exatamente por isso. Ela de fato provoca, porém não intelectualmente. Se o editor-chefe da VG247 queria abrir um debate honesto a cerca da biblioteca do Game Boy, nostalgia e como a nossa percepção sobre a suposta qualidade de algumas obras muda com o tempo, ele não poderia escolher uma forma pior. Tudo que ele conseguiu foi um moralismo bobo de “Game Boy ruim, Game Boy Advance bom”. Isso só fomenta uma briguinha inútil que dá continuidade a esse ciclo vicioso de ódio das redes sociais. No final, esse tipo de postagem ajuda a piorar a comunidade para todos os envolvidos e imbeciliza mais ainda qualquer debate proveitoso que poderiamos tirar dali.

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