Ver umas takes ruins sobe qualquer mídia é parte do dia-a-dia da internet, principalmente se você frequenta esses hospícios digitais chamados de mídias sociais. Aqui no blog minha prioridade são jogos, porém de vez em quando rola uns papos sobre outras coisas que eu curto. Uma delas é cinema. De uns tempos para cá, eu venho notando um aumento de frequência e intensidade das piores leituras possíveis sobre alguns tipos de histórias. Isso tem me levado a crer que as pessoas criaram o hábito de assistir filmes de olhos fechados.
Oppenheimer, Assassinos da Lua das Flores e Pobres Criaturas são títulos recentes que geraram algumas das takes mais horrorosas de 2024. Até o momento! Claro que falar besteira sobre filme, a nível prático, é algo que pouco afeta as nossas vidas. Porém eu me importo com cultura, então essas falas pessoalmente me incomodam bastante. Para mim, elas revelam um grave problema de literacia de mídias no público terminalmente online.
Os comentários dos filmes que citei até que não me incomodaram tanto assim porque ainda não os assisti. Até tenho informação suficiente para entender quais os problemas das takes que fizeram sobre eles. Contudo, eu ainda não tenho conhecimento pleno para poder defendê-los propriamente. Só que ontem – na verdade anteontem – aconteceu algo diferente. Resolveram mexer em um filme que não apenas eu assisti como também é um dos meus favoritos. O “twitteiro médio” resolveu falar de A Caça.
A Caça é um filme dinamarquês de 2012 que retrata a história de Lucas, interpretado pelo gostosão Mads Mikkelsen, que é injustamente acusado de ter abusado de uma das suas alunas. Na história, o personagem vive numa pequena comunidade rural trabalhando como professor de jardim de infância. Uma série de eventos leva Klara, uma das alunas de Lucas e filha do seu amigo Theo, soltar umas falas sem contexto próxima da diretora da escola que a fazem acreditar que Lucas se expôs para a menina. A diretora, que considera que criança nenhuma mentiria sobre algo desse tipo, abre uma investigação sobre o ocorrido que acaba resultando na demissão de Lucas e colocando a cidade toda contra ele.
A Caça comenta os efeitos que uma histeria coletiva podem acarretar na vida de uma pessoa inocente, mais ainda quando está relacionada a questões tão sensíveis como o abuso infantil. Mas aí chega o twitteiro médio…
Quando aquele tweet cruzou a minha linha do tempo a primeira coisa que eu fui conferir foi a proporção entre QRTs e curtidas, o famigerado ratio. Essa é o principal sintoma para identificar que alguém está falando bobeiras, bobeirinhas ou bobeironas na internet. Não é uma ciência exata, porém é um bom indicador na maioria das vezes. Para minha total surpresa, o tweet que falava que A Caça promovia a ideia de duvidar de crianças quando elas relatam casos de abuso tinha mais de 13 mil curtidas. As QRTs ainda não chegaram em 2 mil. Embora virtualmente todos citando o tweet estão em tom de crítica a autora, a quantidade de curtidas me faz crer que muito mais pessoas concordam com o que ela disse do que o contrário.
Aqui eu quero apontar algo. Não é um fato, é apenas uma suspeita minha. Tenho uma forte impressão que as pessoas que curtiram o comentário nem chegaram a assistir A Caça para ter qualquer reação sobre ele. Pois, vejam bem, estamos falando de um filme dinamarquês. Por mais excelente que seja, o cinema europeu, com exceção de algumas obras britânicas, não é consumido massivamente no Brasil fora dessa bolha mais cinéfila. Pelo amor de Deus, até quando a gente vai falar de cinema nacional o público médio só sabe repetir os mesmos quatro exemplos. Então, se me permitem um chute, eu diria que a metade de quem curtiu o tweet o fez apenas por conta do tópico sensível que ele aborda.
Violência, seja física, psicológica ou sexual, contra crianças é algo que mexe muito com as pessoas. A ponto que precisa ter muito autocontrole para não reagir de forma muito emocional logo de cara. Ao que nos leva aos dois principais problemas que esse tweet levanta.
O primeiro é como as pessoas curtem e compartilham as coisas na internet sem o mínimo de avaliação crítica. Não que você tenha que checar as fontes de tudo que você encontra. Mas está evidente como esses casos servem mais como uma oportunidade para as pessoas mostrarem como são virtuosíssimas. Ora, afinal, se tem um filme supostamente tentando fazer que as pessoas desacreditarem crianças vítimas de abuso a gente TEM que repudiar isso de imediato. A qUeM iNtErEsSa EsSa NaRrAtIvA, hEiN?!
A segunda é como filmes que lidam com tópicos que provocam gatilhos emocionais fortes fazem com que as pessoas tenham visões distorcidas de uma obra. Todo mundo tem seu viés ideológico pelo qual ele enxerga o mundo. Eu tenho, tu tens, ele tem, nós, vós, eles têm. Contudo se é para acusar um filme, ou qualquer outra mídia que seja, precisamos tomar cuidado para não fazer isso de forma tão leviana. E deturpada!
Achar que A Caça é irresponsável porque leva as pessoas “duvidar de crianças quando elas relatam abuso” é dar um atestado que você assistiu sem prestar atenção. O filme apenas ressalta como nessas situações é necessário ter um tremendo cuidado na investigação, pois qualquer erro pode levar a consequências desastrosas para a vida de uma pessoa inocente.
Tem uma cena emblemática quando um personagem vem pegar o relato de Klara sobre o que “aconteceu” e ele começa a induzir a garota a dar as respostas que ele e a diretora querem obter sobre o suposto abuso. Eles não fazem isso com malícia, na verdade ambos tem boas intenções. Mas, como diz a sabedoria popular, “de boas intenções o inferno está cheio”. No medo de acabar deixando um caso de abuso sair impune, os personagens acabam se precipitando e fazendo uma péssima condução do devido processo investigativo.
Sabe aquela história de “inocente até que se prove o contrário”? Só serve para ficção! Na realidade as pessoas condenam primeiro e depois investigam para ter certeza da condenação. Tanto que Lucas acaba sendo inocentado porque os relatos de outras crianças, que também foram induzidas ao erro por não ter qualquer noção do que está acontecendo, acabam gerando várias inconsistências como descrever um porão que não existe na casa do acusado. Isso tudo depois que ele já tinha perdido o emprego, sendo ostracizado da sua comunidade, acabar com seu relacionamento atual, entre outras consequências.
As piores takes que vi nesses últimos tempos são de gente repudiando a arte por abordar um tema que elas não querem ver ou ouvir falar sobre. Que para mim é exatamente o que aconteceu naquele tweet. Por não querer lidar com uma história que toca num assunto que lhes deixam tão desconcertadas, as pessoas imputam no filme a culpa por aquilo que elas mais desprezam como se ele fosse um agente ativo e não apenas um retrato da nossa realidade que quer discutir um tópico em particular.
A arte está aí para contestar e ser contestada. Filme algum, por mais excelente que seja, está passível de discordâncias. Você não precisa aceitar o que ele te apresenta. Porém, se você for criticá-lo, repudiá-lo e acusá-lo, pelo menos…
NÃO
ASSISTA
DE OLHOS
FECHADOS!
Jesus amado! Não quero nem imaginar o que vai acontecer quando essa galera descobrir Laranja Mecânica…
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