Em Memória à Satoshi Kon é uma minissérie de (agora) seis textos sobre a obra de um dos grandes diretores de animação que já existiu. Satoshi Kon iniciou sua carreira em 1984 e esteve em atividade até sua morte em 2010 por conta de um câncer pancreático. Durante esse período ele foi responsável por algumas das melhores animações japonesas: Paranoia Agent, Perfect Blue, Millennium Actress e Tokyo Godfathers e Paprika. Para fechar a minissérie resolvi falar de mais três outra obras que são de autoria do Kon ou tiveram algum envolvimento dele.
Depois de finalizar meu último texto desta minissérie eu já estava pronto para encerrar minha jornada com a obra do Satoshi Kon. Foi uma excelente experiência com 100% de aproveitamento. Até com Paprika, que eu tinha lembranças de não gostar muito, eu passei a gostar mais numa segunda visita. Então era hora de me despedir e partir para novos projetos pessoais…
… porém coisas acontecem!
Um belo dia estava eu lá alternando de uma aba para outra quando aparece uma notificação no meu Twitter. Um colega havia me marcado no que parecia ser um filme de terror japonês dos anos 90 que eu sempre tenho tempo reservado para conferir. Olhei o nome, World Apartment Horror, não conhecia o título. Entretanto tinha um um nome na legenda que reconheci: story by Satoshi Kon. Como incluíram um link para baixá-lo e decidi aproveitar a oportunidade para assisti-lo sem muito compromisso.
Quando eu terminei acendeu uma luzinha na minha cabeça: por que não dar uma olhada na história do Satoshi Kon antes dele se tornar, bom, o Satoshi Kon? E foi exatamente isso que eu fiz!
Eu já havia dado uma olhada rápida na filmografia dele em outros carnavais e decidi fazê-la de novo com mais calma. Dali saíram três obras que eu julguei interessantes de se conhecer do período pré-Perfect Blue do Satoshi Kon. Escolhi Toriko, que foi seu mangá de estreia, o já citado World Apartment Horror e Magnetic Rose.
Como eu não queria estender a série por mais capítulos três capítulos eu resolvi trazer de volta um quadro que eu não publico um texto desde, deixa eu conferir aqui, ANO PASSADO!!! Meu Deus… Pois bem, então eu vou juntar meus comentários sobre essas três obras num único texto e assim não perdemos muito tempo. Não tenho tanto assim para falar de cada uma delas, porém eu preciso falar de cada uma delas. Tratarei em ordem cronológica porque é conveniente e faz mais sentido com a proposta do texto.
1. TORIKO (1984): OS PRIMEIROS PASSOS DE SATOSHI KON
Se vocês decidirem ir atrás desse mangá, recomendo se aproximar de Toriko com uma expectativa moderada. Todo mundo tem que começar de algum lugar, mas essa não é nem a questão aqui. É porque a primeira história (auto)publicada do Satoshi Kon não tem nada de grandioso. Tanto em escopo quanto em tamanho mesmo. São apenas dois capítulos que ele fez para participar de um concurso. Mesmo assim acho que ela ainda serve como um registro da carreira dele e também da época em que o Satoshi se encontrava.
Se eu não estou enganado, a década de 80 marca a ascensão da figura do delinquente juvenil na cultura pop japonesa. Temos alguns exemplos notáveis como a franquia de jogos de Kunio-kun e o mangá Be-Bop High School. Os delinquentes representavam esse sentimento sentimento de revolta e rebeldia dos jovens japoneses daquela época, fosse com o governo ou com a sociedade em geral. E é também aí que surge uma obra fundamental para ilustrar o espírito dos anos 80: Akira, o grande mangá de Katsuhiro Otomo que se iniciou em 1982.
Akira se tornaria um pilar da ficção científica japonesa e uma das principais referências para o subgênero cyberpunk. Assim o Otomo foi de grande influência para muitos artistas que começaram a dar seus primeiros passos naquele período. Entre eles estava um jovem colegial chamado Satoshi Kon.
Em 1984, o Satoshi submete uma história de dois capítulos para o concurso da revista Young Magazine do qual ele saiu vitorioso. É bem evidente que Akira era uma das suas maiores referências porque você bate o olho no protagonista e visualiza o Kaneda sem moto. De tal modo, a história de Toriko também se passa num futuro distópico com claros sinais que o Japão vive sob um regime autoritário. Contudo não existe nenhum aprofundamento nas estruturas dessa sociedade porque não tem tempo para isso. O que tem são alguns detalhes que colaboram para termos uma ideia de como é a vida naquele universo.
Nas primeiras páginas temos um grupo de jovens tentando roubar uma máquina de cigarros e acabam pegos pela polícia. Os dois são enviados para uma espécie de centro educacional e daí já pulamos para o nosso protagonista que é outro aluno da escola que aqueles rapazes pertenciam. O garoto decide fingir estar passando mal para voltar para casa e recebe um passe que a enfermeira avisa que só vai durar 24 horas. No meio da rua ele é parado por um policial-robô que diz que nesse horário nenhuma criança deveria estar fora da escola, porém ao ver o passe deixa o protagonista ir.
O resto do capítulo vemos o sentimento de rebeldia do garoto crescer, algo que preocupa seus pais, e culmina nele dando uma fugida de casa, tentando comprar bebida num bar, testemunhar uma operação de polícia contra um grupo considerado criminoso e levando para casa uma arma que ele conseguiu furtar dos policiais quando não estavam prestando atenção. Eu acho que dá para vocês imaginarem o que acontece no capítulo seguinte.
Algo que senti lendo Toriko é que, apesar de um aparente gosto pela ficção científica, o Satoshi Kon não tinha tanto interesse assim pelos aspectos futuristas. Se formos para Paprika, seu filme que mais se encaixa nesse gênero, percebemos que tirando a tecnologia de entrar nos sonhos das pessoas não existe nada muito mais avançado naquela sociedade. Isso me faz crer que desde o começo o Satoshi era um cara que estava mais atento ao que acontecia nas mídias e na sociedade japonesa do que focar nas convenções de um gênero específico. E eu vou voltar nisso no próximo tópico!
Vou sempre reforçar que precisamos lembrar que esse é um mangá feito para participar de um concurso, logo não podemos projetar muitas pretensões nele. O que dá para tirar de mais interessante de Toriko é essa noção que o Satoshi já estava muito atento às tendências e movimentos dos quais ele era contemporâneo e conseguia integrar esses elementos nas suas próprias histórias.
Claro que ele ainda era bem cru nesse momento. Ainda faltavam uns 13 anos para chegarmos em Perfect Blue, mas nesse intervalo existem duas paradas essenciais para compreender como nasceu o artista que hoje conhecemos.
2. WORLD APARTMENT HORROR (1991): ENTRANDO PARA O CINEMA
Além de ser sua primeira obra conhecida, há um outro motivo para eu incluir Toriko nessa lista. A conexão com Akira não é apenas numa relação de influência, porque depois de se formar o Satoshi Kon foi trabalhar para o Otomo. Não posso afirmar exatamente quando, acho que o Satoshi passou a ser assistente ali mais pro final do mangá. Mas isso não importa, porque a parceria entre os dois se manteria por mais alguns anos em outros projetos tocados pelo Otomo.
Além de mangaká, o Otomo roteirizou e dirigiu alguns filmes. O Satoshi Kon o acompanhou inicialmente trabalhando como animador em Roujin Z. Naquele mesmo ano os dois também colaborariam num terror live action cujo nome vocês já sabem. A extensão da participação do Satoshi nesse projeto é um tanto nebulosa para mim. A direção é de Otomo e o roteiro é creditado a Keiko Nobumoto. Porém a história é do Satoshi Kon e inclusive também foi responsável pela versão em mangá.
Se eu for chutar, provavelmente o que aconteceu é que ele deu o argumento, cenários e personagens de World Apartment Horror. Porém ele não deveria ter muita experiência em como escrever a história na forma de um roteiro para cinema e por isso o Otomo trouxe a Keiko para auxiliar nessa parte. De qualquer forma, praticamente todas as ideias do Satoshi foram traduzidas para o live action. As diferenças com o mangá são bem poucas e possivelmente foi por questões orçamentárias. Recomendo procurar as duas versões se tiverem a chance, mas eu vou focar apenas no filme.
O protagonista de World Apartment Horror é um membro da yakuza chamado Ita. Porém antes mesmo de sermos apresentados ao personagem, a primeira coisa que vemos é uma sequência de cenas das ruas de Tóquio. Entre os transeuntes, artistas de rua e trabalhadores, um elemento se destaca. A maior parte das pessoas que vemos não são japonesas e sim imigrantes de dezenas de países diferentes. Voltando para Ita, seus chefes ordenam que ele dê um jeito de expulsar os moradores de um prédio cheio de estrangeiros que o grupo precisa demolir. Um amigo de Ita foi encarregado anteriormente dessa tarefa, mas por algum estranho motivo ele enlouqueceu enquanto estava no prédio.
Mais tarde a gente descobre que o motivo é um espírito que assombra o local, só que isso não é tão importante assim e por isso estou me dando o luxo do spoiler. Lembra que eu falei no tópico anterior como o Satoshi mostrava uma tendência a falar sobre a sociedade japonesa acima do gênero que ele está trabalhando na sua obra? Isso se repete em World Apartment Horror.
Pelo nome vocês já imaginam que essa é uma história de terror. De fato tem alguns desses elementos, sobretudo para a segunda metade do filme. Ao mesmo tempo, temos várias partes que o tom fica cômico. Então World Apartment Horror é um filme de terror, de comédia ou comédia de terror? Tanto faz, porque o mais importante aqui é o comentário a respeito da sociedade japonesa. Mais especificamente em como os japoneses se enxergam na Ásia.
Aqui o Satoshi usa o Ita para representar uma visão quase aristocrática que o Japão tem em relação aos países vizinhos. Não é exatamente um sentimento de superioridade ou de serem “os verdadeiros asiáticos”. É como se eles se vissem com uma cultura totalmente separada do continente.
Tem um momento, tanto no filme quanto no mangá, que o protagonista está discutindo com os moradores em que ele é questionado do porquê estar querendo expulsá-los dali já que todos eles, incluindo o Ita, são asiáticos. Ao que Ita responde enfaticamente que japoneses não são asiáticos e sim “brancos”.
Não é à toa que o Ita é o único que não consegue se comunicar direito ali naquele prédio. Por mais que todos os moradores pertençam a culturas distintas, eles conseguem interagir entre si e criar um senso comunitário por entenderem que todos ali estão sob a mesma condição de imigrantes. Mas o interessante é que mesmo que o Ita se mostre numa posição antagonista, o grupo ainda o recebe de braços abertos e tenta estabelecer um vínculo com ele.
Por exemplo, um dos primeiros planos do Ita para tentar expulsá-los é ligar o rádio no volume máximo, conectar um microfone e cantar para fazer mais barulho ainda. Ele pensa que isso incomoda tanto os estrangeiros que eles irão se mudar para outro lugar, contudo o efeito é o oposto. O que acontece é que eles embarcam na onda do Ita e começam a cantar juntos e logo aquilo vira uma festa. Depois daquele momento o protagonista começa a se ver cada vez mais conectado ao grupo a ponto que dele nem perceber que está participando de algumas atividades juntos.
Contudo a ideia do Satoshi Kon não é apenas apontar o dedo e dizer que o Japão é um país xenofóbico. Ele não é tão leviano assim. O que ele tenta mostrar na sua história é que em face a um mundo se tornando cada vez mais globalizado a sociedade japonesa precisa abrir os braços para os estrangeiros que vêm buscar oportunidades no seu país, principalmente daquelas culturas que são suas vizinhas.
No mangá – e por isso eu reforço para vocês procurarem as duas versões – é mostrado que o Ita está se relacionando com uma garota de programa que, se não me engano, é indiana. É o Satoshi trazendo a ideia do multiculturalismo até nas relações interpessoais. Em World Apartment Horror ele mais uma vez se mostra atento a questões contemporâneas e também que suas habilidades como um contador de histórias vinha crescendo exponencialmente. Ao que nos leva ao último tópico!
3. MAGNETIC ROSE (1995): A FORMAÇÃO DO SATOSHI KON AUTOR
Ali por volta de 1995 o Otomo decidiu produzir uma antologia animada reunindo três histórias num filme. O projeto trouxe reuniu vários artistas para escrever e dirigir cada um dos segmentos e entre eles estava, obviamente, o Satoshi Kon. Ele foi o responsável pelo roteiro da primeira sequência do filme, Magnetic Rose, baseada num one-shot do Otomo. Eu não sei se esse é o nome original, porém eu encontrei essa histórica publicada como Memories em 1992 caso alguém tenha curiosidade de ler.
Cronologicamente esse tópico teria que ficar por último mesmo, mas fico feliz que também tem um caráter simbólico na proposta desse texto. Porque para mim é exatamente com Magnetic Rose em que vemos surgir o Satoshi Kon que dentro de três anos dirigiria Perfect Blue. E já que citei esse filme, vamos lembrar que uma das condições que o Satoshi estabeleceu para dirigi-lo foi a de poder reescrever o roteiro original. Algo que de certa forma ele faz em Magnetic Rose, pois ele adiciona vários novos elementos para a história do Otomo que, ao meu ver, tornam essa adaptação muito superior ao original.
Na sinopse temos uma tripulação espacial que capta o sinal de um pedido de socorro. Ao averiguar a origem do sinal, eles chegam a uma gigantesca estação espacial rodeada por destroços de outras naves. Dois tripulantes descem até a estação para investigar e se surpreendem ao ver que o interior dela parece uma mansão europeia.
Por se tratar de um mangá one-shot de menos de 35 páginas, a história original tem uma narrativa muito direta ao ponto. Os personagens não passam por nenhuma grande caracterização, você basicamente tem “homem do espaço #1” e “homem do espaço #2”. A trama se move a passos bem largos, não dando muito tempo para capturar o leitor numa atmosfera de mistério. Por fim, o plot twist causa uma reação que eu só consigo definir assim: em vez de um “Oh!” ele te causa um “Ah tá!”. Talvez até tenha um apelo maior para fãs de ficção científica, porém para mim o one-shot é no máximo ok.
Por outro lado, eu adorei a versão animada. Tanto pelo fato de ser uma animação fenomenal em questões técnicas, quanto pelo roteiro de um Satoshi Kon já mais experiente. Aqui ele faz um ótimo trabalho em desenvolver e tornar os personagens principais – Heintz e Miguel – mais simpáticos e identificáveis, além de adicionar temas novos que não se encontravam no original. Inclusive podemos até dizer que foi aqui que começou a surgir a tendência do Satoshi em abordar os limites entre a ficção e a realidade, utilizando os conceitos de holograma e memória dentro de Magnetic Rose. Por isso que eu digo que esse segmento é a formação dele como autor em vários sentidos.
Eu nem quero entrar em mais detalhes da história porque pra esse caso eu acho que o plot twist fica mais satisfatório. Não é um filme muito arrastado, até porque ele cobre 40 minutos da antologia, mas também não chega a ser corrido como o mangá. Dá para se envolver melhor com os personagens e o mistério relacionada a aquela estranha estação espacial, bem como é um ótimo exercício para se compreender um pouco mais desse artista que era o Satoshi Kon.
Eu recomendo todas as obras que citei aqui nesse texto, mas Magnetic Rose é uma que eu preciso enfatizar que vocês assistam. Não é o Satoshi no seu auge, porém é onde temos o vislumbre do que ele se tornaria.
Bom, agora de fato cheguei ao fim da minha minissérie em homenagem ao legado do Satoshi Kon. O trabalho dele foi e continua sendo muito importante pelo meu gosto pela arte da animação e como eu sempre repito é uma enorme tristeza que ele tenha ido tão cedo. Que fiquem aqui as memórias de um grande artista e os agradecimentos e um dos seus grandes fãs tardios.
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