O mal sempre à espreita de Halloween

Cena de Halloween - A Noite do Terror, clássico de 1978 de John Carpenter. Laurie Strode (interpretada por Jamie Lee Curtis) está encostada com medo na parede enquanto o vilão Michael Myers a observa nas sombras

Eu evito criar tradições aqui no blog porque eu não sou diligente com a minha agenda. O homem planeja e Deus ri, como diz o ditado. Porém tem uma tradição que eu me esforço para manter que é a do Dia das Bruxas. Gosto muito de terror e sempre que posso tento recomendar coisas para o pessoal conhecer o gênero. Ano passado eu fiz um textão sobre Contos do Dia das Bruxas que é o meu filme favorito da época e para 2024 eu decidi ir até o clássico dos clássicos: Halloween.

Recentemente, eu trouxe para cá um texto antigo meu sobre Haunting Ground onde tracei alguns comentários sobre a câmera do jogo. Eu cito Halloween no artigo porque considero um dos melhores exemplos do uso da perspectiva da câmera para gerar tensão e ansiedade na audiência. Mais recentemente ainda, eu assisti o filme de novo para me preparar para essa crítica e a minha opinião se mantém.

Para os padrões atuais de um mundo pós-Terrifier, onde parte da audiência acha que gore é o que define a qualidade de um filme de terror, Halloween se mostrará um slasher bem parado. “Chato!”, dirão alguns para partir o que sobrou do meu coração. Mas cá estou eu para defender a memória do clássico de John Carpenter que segue como dos mais importantes pilares para o gênero. E afirmo categoricamente: o filme funciona muito bem até hoje graças a sua fotografia e a importância dela na construção do icônico Michael Myers.

Início de Halloween onde a câmera mostra o ponto de vista do vilão Michael Myers. Na cena vemos ele pegando uma faca enquanto cobre o rosto com uma máscara

Halloween começa na perspectiva do vilão – que por enquanto não sabemos que é o vilão – espionando uma jovem e seu namorado pela janela da casa. Essa é uma técnica muito conhecida para indicar a presença do monstro na primeira metade do filme sem precisar revelá-lo. Porém não é por esse motivo que o Carpenter opta por começar Halloween. Nos minutos seguintes, vemos o observador entrar na casa, pegar uma faca, vestir uma máscara, subir até o quarto da jovem – que o reconhece como seu irmão Michael – e, por fim, esfaqueando a menina a sangue frio. Depois ele desce, os pais chegam em casa, tiram a sua máscara e a câmera muda de perspectiva para podermos ver que o nosso assassino é apenas um menino de seis anos.

Vejam como John Carpenter aqui não tem qualquer intenção de esconder a identidade do Michael Myers. Em cinco minutos já sabemos quem ele é e o que ele fez. O motivo de começarmos a história através da sua perspectiva é para estabelecer que a câmera não é apenas uma janela pela qual assistimos o filme. Ela é também o próprio Michael ali observando aqueles personagens em silêncio.

Após a introdução, pulamos 15 anos no futuro onde o filme se divide em dois núcleos diferentes. O primeiro centra-se no Dr. Loomis, interpretado por Donald Pleasence, o médico responsável por Michael desde sua internação. Loomis também exerce a função de criar toda a “mística” que envolve o Michael Myers como a personificação do mal. Como ele mesmo o descreve:

Na imagem tem Dr. Loomis, personagem de Halloween, falando com um policial sobre a sua história com Michael Myers

Eu o conheci 15 anos atrás. Me disseram que não sobrara nada. Não havia razão, consciência nem compreensão no sentido mais rudimentar sobre vida ou morte, bem ou mal, certo ou errado. Eu conheci esse garoto de seis anos com essa face branca, pálida, sem emoção e os olhos mais escuros. Os olhos do demônio. Eu passei oito anos tentando me conectar a ele. Depois eu passei mais sete tentando mantê-lo preso, porque percebi que o que existia por trás dos olhos daquele garoto era pura e simplesmente maldade.

O que nos faz enxergar Michael como algo tão perigoso não são suas ações. Nenhuma das mortes é particularmente gráfica, dado o orçamento e até mesmo os efeitos práticos da época. O que cria esse efeito é ver a raiva que ele fica quando descobre que o rapaz escapou do hospital psiquiátrico. Raiva esta que mascara o profundo temor que o Loomis tem toda vez que lembra que Michael está livre por aí.

Assim, vamos para o segundo núcleo do filme que se desenrola ao redor da protagonista Laurie Strode – interpretada por Jamie Lee Curtis, que virou um ícone dessa era dos slashers – e suas amigas. Elas moram num típico subúrbio americano, um bairro tranquilo cuja única mancha é a antiga residência dos Myers que se tornou uma lenda local. Para o azar de Laurie, ela atrai a atenção de Michael que retornou ao seu antigo lar depois da sua fuga.

Há um espaço de mais ou menos 40 minutos desde a introdução do núcleo de Laurie até o momento que Michael Myers faz sua primeira vítima entre suas amigas. Porém é nesse intervalo que Halloween desenvolve os elementos que tornam a atmosfera do seu terço final tão inquietante. Tudo isso é graças a como o John Carpenter trabalha a perspectiva do Michael Myers através da câmera do filme. Uma coisa que fica muito evidente na primeira metade de Halloween é como muitas cenas abrem com a câmera numa distância significativa dos personagens. Mas não apenas isso, o enquadramento trava por um tempo considerável mesmo quando não há uma ação importante acontecendo.

Cena de Halloween. O vilão Michael Myers, vestindo um sobretudo azul escuro, observa a protagonista Laura Strode se afastando ao longe

Dois bons exemplos acontecem logo nesse começo. O primeiro é logo após Laurie deixar a chave da residência Myers embaixo do tapete a pedido do seu pai, um corretor de imóveis que está tentando vender a casa. A câmera continua filmando Laurie por um longo tempo enquanto ela desce a rua antes de cortar para a cena seguinte. O segundo exemplo acontece com Tommy, o garoto de quem Laurie é babá, quando ele sai do colégio. Agora a câmera se posiciona atrás das grades de onde podemos ver o garoto deixando a sala de aula ao longe.

Ambas as cenas terminam com a mesma revelação: o Michael Myers entra na frente da lente e percebemos que ele esteve o tempo todo ali observando. Isso nos remete ao início do filme, quando temos a perspectiva em primeira pessoa, de forma que agora temos a certeza que câmera vai por vezes representar o ponto de vista do vilão. Isso planta a mesma sementinha da paranoia na cabeça da audiência que também vemos germinar na mente de Laurie quando ela percebe que tem alguém a seguindo.

O que torna Michael Myers assustador em Halloween não é a sua presença. É o fato dele ser A presença. Nick Shape, o ator que deu vida ao personagem, é creditado no filme como “The Shape” porque é isso que o Michael é. Uma forma na escuridão, o bicho-papão. Ainda que seja feito de carne e osso, ainda que sinta dor quando a Laurie enfia uma arame no seu olho, Michael Myers não é um mero humano. Por isso que no final…

… ok, o filme já tá há uma copa do mundo de completar 50 anos
então eu me reservo no direito de poder spoilar o final…

… quando Loomis descarrega sua arma em Michael, fazendo-o cair da varanda, o corpo dele desaparece depois que o médico vai conferir. Não é apenas um jeito de deixar espaço para um sequência, há uma intenção mais sombria aqui. Os últimos instantes de Halloween mostram os cômodos e lado exterior da casa, com uma distinta respiração podendo ser ouvida junto com a música tema. Nesse momento o filme te instiga a pensar “Onde está o Michael Myers?”. A resposta: nas sombras, observando e aguardando.


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