Monstros gigantes vs kaiju: comparando perspectivas

Na imagem há dois monstros gigantes do cinema. Na esquerda se encontra o Rhedosaurus, um monstro pré-histórico do filme O Monstro do Mar de 1951. Na direita está Godzilla, o icônico kaiju do filme homônimo de 1954. Entre os dois está as letras de "versus" em vermelho

Em setembro passado (meu Deus já se passou um ano), fui acometido por uma vontade de assistir décadas de filmes swashbucklers. Sim, décadas. Saí de 1934 e fui até 2023. Alguns desses títulos eram quase centenários e isso renovou meu interesse por filmes antigos. Aproveitei o embalo e fui assistir outros clássicos, indo até os tempos de cinema mudo. Entre as muitas coisas que assisti naquele período estava um filme que enrolei anos para assistir: o King Kong original de 1933.

Não sei se vocês sabem, mas minha relação com as mídias que consumo é sempre uma cadeia de eventos. Logo King Kong despertou um segundo interesse em mim: ver mais filmes de monstros gigantes. Especificamente, ali da década de 50 indo para de 60. Então eu pesquisei algumas obras americanas e passei a assisti-las nos dias seguintes. Podem imaginar o que aconteceu agora, né? Isso, um terceiro interesse se manifestou! Tomei aquela oportunidade para ver também uns filmes japoneses de kaiju porque, até então, eu só assistira uns dois do Godzilla.

O resultado dessa experiência nos traz ao dia de hoje. Na verdade, uns bons meses atrás quando o pensamento me veio à cabeça pela primeira vez. Depois de ver tanto filme, eu me peguei pensando em como os americanos e os japoneses exploram o conceito de monstros gigantes de formas diferentes. Disso nasceu uma ideia de discutir minhas ponderações num texto que acabou ficando só no planejamento mesmo. Muitas coisas aconteceram e eu não consegui botar a ideia para frente. Ela ficou na minha geladeira mental. E láficaria se alguns meses depois eu não decidisse assistir vídeos do Ilha Kaijuu.

O Rafael já foi citado aqui no Backlogger quando falei sobre Black Kamen Rider porque o seu canal é uma grande ajuda para eu entender melhor as mídias japonesas. Lá eu encontrei uma playlist na qual ele fala sobre todo o universo cinematográfico do Godzilla, incluindo as versões americanas. Um dos vídeos que me chamou mais atenção foi o de Godzilla II: Rei dos Monstros.

Para quem não conhece o trabalho do Rafael, no seu canal, ele aborda diferentes mídias (quadrinhos, séries, filmes, etc) pelas lentes da história da arte. Em vez de fazer aquele formato tradicional de resenhas interneterias, que estão mais interessadas em botar um carimbo de Bom™ ou Ruim™ do que qualquer outra coisa, no Ilha Kaijuu o Rafael busca contextualizar essas obras no período que foram produzidas, mostrar as suas influências e os conceitos que elas trabalham.

A princípio pode até parecer que o vídeo de Godzilla II: Rei dos Monstros é mais para bater porque é talvez o título do Monsterverse que o Rafael mais teceu críticas. Até o Godzilla de 1998 ficou melhor na fita. Contudo o foco do vídeo é nas ideias e conceitos que o filme trabalha, para bem ou para mal. Nesse caso, mais para mal. Se vocês quiserem entender melhor, vejam o vídeo (mas só depois de ler meu texto, tá?) porque eu vou me concentrar em apenas um dos pontos discutidos sobre a bomba atômica. O Rafael apontou, ainda que exista um reconhecimento da bomba como algo ruim, que o filme coloca uma interpretação positiva sobre armas nucleares. Afinal, no terceiro ato os personagens explodem uma próximo ao Godzilla para ajudá-lo a se regenerar. Ou seja, bomba atômica salvou o dia.

Esse não é o problema. O que pega é que o filme fez isso às custas da vida do único personagem japonês, o Dr. Ishirō Serizawa, cujo pai havia testemunhado a destruição de Hiroshima. Até há uma tentativa de tratar esse momento como um sacrifício nobre pelo bem maior, porém na prática ele serve para validar existência e necessidade de armas nucleares. Pior, coloca o personagem que representa um povo que sofreu por causa dessas armas para aceitar isso. Tudo enquanto isenta os americanos de qualquer responsabilidade e divide com eles o mérito de salvar o mundo.

Por mais que seja o Godzilla quem derrota o Ghidorah no final, ele só consegue isso porque os humanos foram lá e lhe deram um empurrãozinho atômico. Esquecendo também que toda essa situação é culpa do exército americano que resolveu usar uma arma experimental para destruir o Ghidorah e sacrificando o Godzilla no processo. O plano dá errado, mas tudo bem porque essa questão não vai ser levantada mais. Olha ali o Serizawa tendo um último momento com o lagartão, olha que cena bonitinha!

Não diria que é um problema necessariamente de roteiro, mas sim de conceitos e que tem muito a haver com a forma que o cinema americano trabalhou a figura desses monstros gigantes ao longo da sua história. Isso ficou evidente durante essa maratona, porque é notável a diferença deles para os monstros do cinema japonês. Pois bem, agora que iniciei uma série de textos sobre kaiju, eu estou mais motivado a seguir com aquela minha ideia de meses atrás. Então, depois dessa longa introdução, podemos partir para o texto.

Na verdade tem umas coisinhas para esclarecer antes!

DOIS AVISOS RÁPIDOS

O Chapolin Colorado, personagem da série de Chapolin, fazendo sinal de vitória com ambas as mãos.

Eu gostaria destacar que, de forma alguma, esse texto é uma tentativa de dizer quais filmes são melhores, os americanos ou os japoneses. Admito que gosto muito mais dos kaiju, porém isso é apenas a minha preferência que pouco importa para essa discussão. Também não dou a mínima em qual dos dois lados da balança você está, então vamos evitar briguinha de torcida por aqui. O foco é totalmente nas impressões que eu tive dessas criaturas nas suas respectivas culturas.

Por exemplo, no cinema americano esses monstros são tratados apenas como uma ameaça a ser detida e por isso todos recebem alcunhas genéricas como aranhas, formigas e polvos gigantes. Já os kaiju, apesar de também representarem uma ameaça aos humanos, nos filmes são tratados como personagens de fato. A gente não tem um lagarto gigante, a gente tem o Godzilla. Não é um pássaro supersônico gigante, é o Rodan. Uma mariposa gigante? Não, é a Mothra! Gamera, Ghidorah, Hedorah, Dogora, Anguirus, Varan, Daimajin, etc.

Os nomes não são meros caprichos, são uma demonstração que essas criaturas são mais do que apenas monstros. Não é à toa que um dos monstros gigantes mais memoráveis do cinema americano não é apenas um macaco gigante, é o King Kong. Então eu faço essa distinção para reforçar como conceitualmente essas criaturas são diferentes em cada uma das suas culturas.

Por fim, é importante avisar que esse é um texto recheado de spoilers. Não vou apenas mencionar detalhes das tramas como também falarei dos finais porque são importantes para o objetivo dessa discussão. Abaixo tem uma lista com todos os filmes usados para o texto.

MONSTROS GIGANTES AMERICANOSKAIJU
O Monstro do Mar / The Beast from 20,000 Fathoms, 1953Godzilla, 1954
O Mundo em Perigo / Them!, 1954Rodan!… O Monstro do Espaço / Rodan, 1956
O Monstro do Mar Revolto / It Came from Beneath the Sea, 1955Mothra, a Deusa Selvagem / Mothra, 1961
Tarântula, 1955Ghidrah, O Monstro Tricéfalo / Ghidorah, the Three-Headed Monster, 1964
A Bolha Assassina / The Blob, 1958O Regresso de Godzilla (PT) / The Return of Godzilla, 1984

Portanto, a partir desse momento assumo que vocês ou já os assistiram ou então não se preocupam em receber spoilers.

MONSTROS GIGANTES: A SUPREMACIA DAS FORÇAS ARMADAS AMERICANAS

Cena de O Monstro do Mar. O Rhedosaurus é atraído para um parque de diversão, onde um sniper dispara um isótopo radioativo do alto da pista da montanha-russa numa ferida aberta no pescoço da criatura

Desconsiderando King Kong, O Monstro do Mar foi o primeiro filme dessa minha maratona. O escolhi a dedo porque, além de eu ouvir que foi uma inspiração para o Godzilla, ele é um dos primeiros trabalhos do Ray Harryhausen, figura muito importante na história dos efeitos especiais e da animação stop motion.

Em O Monstro do Mar, um teste de uma bomba nuclear no Ártico desperta uma criatura pré-histórica que passa a atacar a humanidade. Na sequência, assisti O Monstro do Mar Revolto – também do Ray Harryhausen – onde o teste de uma bomba de hidrogênio nas Fossas das Filipinas afeta um polvo gigante que sai do seu habitat natural e põe em risco a vida das pessoas. Segui então para O Mundo em Perigo que fala sobre uma colônia de formigas afetadas pela radiação do primeiro teste da bomba atômica no Novo México que… acho que já notaram um padrão, né?

Esses três filmes foram produzidos num intervalo de três anos em meio a intensificação da corrida armamentista pós-Segunda Guerra Mundial entre os Estados Unidos e a União Soviética. Então os testes de armas nucleares são centrais na trama, com os monstros gigantes sempre sendo uma consequência deles. Esse elemento destaca uma das preocupações dos potenciais danos que essas armas causariam na natureza, colocando a própria população do país em risco.

Só que existe um segundo elemento que marca presença nos três filmes e que eu acho muito mais importante: as Forças Armadas dos Estados Unidos. Embora elas nem sempre estejam no centro da narrativa, isso acontece mais em O Monstro do Mar Revolto, é certo que em algum momento elas vão aparecer. Seja o Exército, a Força Aérea ou a Marinha, uma delas surge para resolver o problema.

Tanto em O Monstro do Mar quanto em O Mundo em Perigo, as Forças Armadas só entram na história a partir da segunda metade. No primeiro o protagonista é um físico que é o primeiro a avistar o Rhedosaurus, no segundo o grupo principal é formado por um policial local, um agente do FBI, um doutor em Mirmecologia (campo de estudo das formigas) e sua filha. Notem que a ciência desempenha um papel fundamental no roteiro dessas histórias. Em O Monstro do Mar Revolto chegam até formar um casal com um comandante de um submarino e uma bióloga marinha. São os cientistas que identificam a ameaça e analisam seu comportamento para saberem como contra-atacar as tais criaturas. Mas não se enganem, no final do filme quem virá salvar os dias são os militares com um ataque bem planejado e executado com eficiência.

Em O Monstro do Mar, quando o Rhedosaurus sobe para a terra, o Exército aparece para abatê-lo. O primeiro assalto tecnicamente não dá certo, mas os soldados conseguem abrir uma ferida no pescoço do monstro. Logo em seguida, os militares atraem o Rhedosaurus até um parque de diversão onde um atirador de elite dispara um isótopo radioativo na ferida e a criatura é consumida de dentro para fora.

Já em O Monstro do Mar Revolto você tem uma ação mais direta

Cena do filme de monstros gigantes, O Monstro do Mar Revolto. Um polvo gigante ataca um prédio próximo ao mar

A Marinha usa seu submarino e dispara um torpedo no polvo gigante. Até rola uma pequena complicação porque o monstro consegue segurar o submarino, mas com uma bomba e um disparo direto no seu olho os protagonistas conseguem se soltar e eliminar o polvo. Por fim, O Mundo em Perigo termina com as Forças Armadas conseguindo rastrear uma segunda colônia no sistema de drenagem de Los Angeles e eliminando todas as formigas que sobraram, incluindo a rainha. Independente do cenário, o desfecho é sempre o mesmo: os militares chegam e eliminam a ameaça com sucesso.

Inclusive, O Mundo em Perigo é o meu favorito dessa leva de filmes americanos porque ele é a forma perfeita da estrutura desses roteiros. Você abre com um mistério e as autoridades locais são as primeiras a identificarem que há algo de estranho na região. Então entra um agente do FBI para conduzir uma investigação em colaboração com a força policial e o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos que manda um cientista para averiguar a situação também. O grupo encontra a ameaça das formigas gigantes e já elabora um plano de ação que é quase um sucesso. A rainha e umas formigas escapam, o que dá início a uma megaoperação de rastreamento que termina nos esgotos de Los Angeles.

Mas o melhor expoente dessa ideia da eficiência das Forças Armadas está certamente em Tarântula.

Eu separei ele dos demais exemplos porque esse filme tem algumas particularidades. Por exemplo, aqui não temos o tema das armas nucleares como motor do conflito. A ameaça surge de uma pesquisa de um cientista que visa criar um super nutriente artificial temendo que o crescimento populacional inicie uma crise na distribuição de alimentos. Para isso ele faz sua pesquisa com o uso de um composto radioativo. O nutriente tem vários efeitos colaterais e, quando é aplicado em animais, ele causa um crescimento elevado. Durante um incêndio no laboratório, uma tarântula consegue escapar e se esconde no deserto do Arizona.

É um filme mais tenso que os demais porque os personagens passam boa parte da história alheios à presença da tarântula. E nós, como audiência, não só sabemos dessa informação como vemos frequentemente ela aparecendo ao longe cada vez maior. Contudo toda essa tensão é quebrada nos últimos minutos que tem o desfecho mais abrupto dentre os filmes. Depois que os moradores não conseguem ferir a tarântula já que ela cresceu demais, a Força Aérea envia uma nave que solta uma bomba de napalm na aranha. A cidade não sofre um dano sequer e a população, sã e salva, observa a criatura pegando fogo ao longe.

A leitura dos monstros gigantes como uma representação do medo das armas nucleares é fácil de se fazer. O Mundo em Perigo é o que melhor ilustra isso, fechando o filme com um dos personagens se questionando quais horrores uma década de testes nucleares já produziram. Entretanto, olhando os quatro exemplos citados, a impressão que eu fiquei é que esse é um conceito quase que secundário. A principal mensagem é tranquilizar a população porque, independente de qualquer perigo, os militares vão dar um jeito.

Três personagens do filme O Mundo em Perigo estão num enorme formigueiro, armados com lança-chamas e cercados por cadáveres de formigas gigantes afetadas pelo teste da bomba atômica

É como se os filmes gritassem: “Nada tema, com as Forças Armadas dos Estados Unidos não há problema!”. Os monstros gigantes servem para assegurar o povo americano que o poderio militar do país é capaz de derrotar qualquer ameaça. É curioso notar como esse medo, que até certo ponto é compreensível, culmina na paranoia americana que é mundialmente conhecida.

Ao fim da década temos a A Bolha Assassina, filme que hoje é visto como uma alegoria ao medo da “ameaça vermelha” que foi promovido pelo macarthismo durante a maior parte dos anos 50. Um dos argumentos usados a favor dessa leitura é a cor da bolha que é vermelha. Pra mim isso é só semiotiquice irrelevante, porque não precisa ficar caçando signos quando o próprio roteiro já destaca esse elemento. Em certo momento o protagonista fala para seus amigos como eles tem que convencer as pessoas a acreditar numa ameaça que eles não podem ver.

Depois que a bolha ataca um cinema, o caos se espalha pela cidade e as pessoas entram em pânico. Mas então, sabendo da fraqueza do monstro, um grupo formado por policiais, bombeiros e estudantes conseguem contê-lo com extintores de incêndio e congelá-lo. No final, a Força Aérea envia uma nave para transportar a bolha para o Ártico. Novamente, os Estados Unidos ficam em segurança porque as Forças Armadas, as autoridades locais e até mesmo os cidadãos americanos podem deter qualquer inimigo.

KAIJU: A RESPONSABILIDADE HUMANA NO MUNDO PÓS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

O cientista Daisuke Serizawa, personagem central no primeiro filme do Godzilla, olha para um aquário com alguns peixes que ele utiliza na sua pesquisa de desenvolvimento do Oxygen Destroyer

Em 1954 dois nomes pavimentaram o gênero kaiju no cinema japonês. Naquele ano, o diretor Ishirō Honda e seu amigo diretor de efeitos especiais Eiji Tsuburaya apresentavam ao Japão, e então ao mundo, Godzilla, aquele que receberia a alcunha de Rei dos Monstros. Porém existe um aspecto paradoxal que eu acho fascinante no impacto cultural de Godzilla. Ao mesmo tempo que o personagem é tão conhecido, ele também é desconhecido.

Hoje em dia Godzilla é um nome que se você perguntar na rua existem boas chances de qualquer pessoa reconhecer. Godzilla Minus One fez um surpreendente sucesso no mainstream ocidental, além de termos o Monsterverse produzindo filmes sem parar. Agora, se você perguntar o que o Godzilla representa, provavelmente a resposta que receberá que ele representa a bomba atômica e o medo que ela gerou na população japonesa no fim da Segunda Guerra Mundial.

Essa é uma resposta que PODE estar certa porque ela depende qual Godzilla nós estamos falando e não me refiro exatamente as versões japonesas e americanas. A franquia já marca 70 anos de existência e tem mais de 30 filmes no seu catálogo, isso sem contar outras produções em mídias diferentes. Godzilla é um personagem que já serviu de alegoria para muita coisa e teve diversas interpretações. Pegue apenas a Era Millennium de exemplo, são seis filmes e cinco versões distintas do Godzilla. Ele já serviu para criticar as políticas ambientais do governo japonês, a indústria televisiva, o apagamento dos crimes de guerra dos militares japoneses e até mesmo para falar de bullying e paternidade.

Mas essa não é uma qualidade exclusiva do Godzilla. O gênero kaiju como um todo é plano de fundo para se discutir uma infinidade de temas. Para os fins deste texto eu vou me concentrar num único.

Ok, então vamos ser específicos e focar no primeiro Godzilla. Aquele sim falava sobre o medo da bomba atômica, certo? Bom, sim. Só que o filme não é apenas sobre isso e acho que esse discurso prevalece porque a maioria das pessoas que conhecem o personagem nunca chegaram a encostar de fato no original. Porque, ao resumir este Godzilla a apenas uma alegoria a bomba atômica, a gente acaba esquecendo de outro personagem importantíssimo do filme que é o doutor Daisuke Serizawa.

No original de 1954, o Godzilla é derrotado com uma arma que o Dr. Serizawa cria, o Oxygen Destroyer. Ele é capaz de destruir átomos de oxigênio e mata quaisquer formas de vida próximas. Então os personagens criam um plano para atrair o Godzilla até uma armadilha no mar, acionar o Oxygen Destroyer e eliminá-lo. Contudo o Dr. Serizawa decide ficar para trás e morrer junto com o kaiju. Por quê?

Como ele confidencia a sua ex-esposa, Emiko Yamane, Serizawa sabia que uma vez que o poder de destruição do Oxygen Destroyer fosse comprovado, o governo iria obrigá-lo a continuar sua produção. Por isso ele decide destruir sua pesquisa e se sacrificar, garantindo que o segredo da arma morresse com ele. Então, embora não esteja errado dizer que o Godzilla ali é uma representação da bomba atômica, através do personagem do Serizawa adiciona uma nova camada que é discutir o papel da humanidade frente a existência dessas armas. Gravem isso que será importante mais para frente.

Agora vamos pular dois anos no futuro quando é lançado Rodan!… O Monstro do Espaço (que não veio do espaço). A história se passa num pequeno vilarejo construído ao entorno de uma mina. Dentro dela, os mineradores encontram um ovo gigante que de onde choca o titular Rodan. As Forças de Autodefesa do Japão tentam destruir o pássaro gigante, porém sem sucesso. Para complicar as coisas, descobre-se que existe um segundo ser da mesma espécie. Então os militares elaboram um plano de causar uma erupção para matar as duas criaturas. O plano dá meio certo porque apenas um dos Rodans é atingido pelo vulcão. Contudo, ao ver que seu parceiro morreu, o Rodan sobrevivente se atira na lava.

Duas imagens lado a lado da cena final de Rodan!... O Monstro do Espaço. Na esquerda, Rodan sucumbe nas chamas de um vulcão que foi explodido pelas Forças de Autodefesa. Na direita o casal protagonista assiste a morte do kaiju com olhares tristes em seus rostos

Gostaria de destacar a última cena do filme comparando-a com Tarântula, porque Rodan também termina com os personagens olhando para os monstros derrotados à distância. Contudo há uma diferença. Em Tarântula existe um alívio já que a cidade foi salva, em Rodan há um sentimento mais melancólico. A derrota dos dois pássaros vem aos custos da destruição daquela região e a própria morte dessas criaturas tem uma nota mais trágica.

Cena final de Tarântula, exemplo de filmes de monstros gigantes da década de 50 nos Estados Unidos. A população de uma pequena cidade do interior observa uma aranha gigante queimando no horizonte depois de ser atingida por napalm

Isso define uma característica fundamental dos filmes de kaiju porque eles não são tratados apenas como monstros gigantes que representam uma ameaça para a humanidade. Eles também são personagens que você consegue sentir alguma empatia. Se não estou enganado, foi o Rafael num dos seus vídeos que comentou como a existência dos kaiju é uma tragédia em si, porque são seres solitários que não tem como se encaixar no nosso mundo sem causar problemas para os humanos. Ao mesmo tempo, se a humanidade tentar eliminá-los, ela só gera mais destruição à sua volta.

Rodan em particular simboliza isso muito bem, porque eu vejo que o filme nasce num medo além das armas nucleares, o medo da volta da guerra. Porque, mesmo que o país saísse vitorioso como acontece no final do filme, para trás ainda ficaria uma destruição que cobraria milhares e milhares de vidas no processo. Uma vitória agridoce. Então o que fazer num mundo em que a possibilidade de uma nova guerra aparentava ser tão iminente? Aí temos Mothra, a Deusa Selvagem!

Todos os filmes que citei surgem no contexto da Guerra Fria e dá para traçar algumas alusões neles. Mas é Mothra que vai representar esse elemento com mais força através do país fictício da República de Rolísica, representando tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética. Na trama, um homem de Rolísica sequestra as Pequenas Beldades, as sacerdotisas gêmeas da ilha que Mothra protege, para usá-las num show. Isso gera tensão entre o país e o Japão que culmina com a supracitada Mothra vindo ao resgate das suas sacerdotisas. A kaiju cria um imenso caos no Japão e as Forças de Autodefesa não são capazes de detê-la. Ela parte então para New Kirk City (eu amo esse nome), mas os personagens conseguem acalmá-la desenhando seu símbolo num aeroporto e retornando as Pequenas Beldades. Satisfeita, Mothra volta para sua ilha e deixa a humanidade em paz.

Os anos 60 foram um período delicado para o Japão, pois logo no início da década o governo assinou o Tratado de Cooperação Mútua e Segurança. Essa foi uma nova versão de um tratado já assinado na década anterior que reforçava a aliança militar entre os Estados Unidos e o Japão. Se por um lado o partido conservador estava alinhado com os interesses americanos, na população não havia esse consenso. Tanto que houve protestos contra esse tratado uma vez que ele determinava que o Japão teria que agir contra qualquer ataque que os Estados Unidos sofresse no território japonês.

Isso reforça o mesmo medo que vimos em Rodan da guerra voltar ao Japão, então a proposta conciliadora de Mothra faz muito sentido dentro do contexto da época. Basta notar que o conflito principal do filme nem é causado pelo país, já que o homem que sequestra as Pequenas Beldades é natural da República de Rolísica. E quem acaba sofrendo mais com o ataque da Mothra? Exatamente, o Japão.

A ideia como a humanidade não pode e nem deve usar “fogo contra kaiju” vai se repetir em várias outras instâncias da Era Showa, porque se torna um dos conceitos principais para aumentar a distinção entre os monstros gigantes japoneses e os monstros gigantes americanos. Mais 20 anos no futuro o elemento da Guerra Fria também continuaria presente nessas histórias. Em O Regresso de Godzilla (na versão portuguesa), mais uma vez temos os dois grandes blocos mundiais, Estados Unidos e União Soviética, representados agora sem alegorias. A tensão entre os dois países apenas piora a situação do Japão, que precisa buscar uma resolução diplomática ao mesmo tempo que lida com o ressurgimento do Godzilla.

Mas também não tem como generalizar que os filmes sempre vão buscar uma solução pacífica. Voltando ao passado novamente, em 1964 teve Ghidrah, O Monstro Tricéfalo que apresentaria um dos monstros gigantes mais icônicos e poderosos desse panteão kaiju, o dragão de três cabeças Ghidorah. Para enfrentá-lo, a Mothra pede ajuda ao Godzilla e ao Rodan e depois de algumas desavenças os três se unem para proteger a Terra. Mas é preciso destacar que existe uma diferença na construção do Ghidorah em relação aos kaiju anteriores.

Da esquerda para direita:  Godzilla, Ghidorah, Radon e Mothra (em cima de Radon). Cena de Ghidrah, O Monstro Tricéfalo onde os três kaiju unem suas forças para enfrentar Ghidorah

A destruição causada pelo Godzilla e o Rodan é colateral. São monstros gigantes que estão apenas caminhando (e voando) por aí e acabam causando danos por conta do seu tamanho. Mothra também só causa destruição em Tóquio porque além de sequestrar suas sacerdotisas, as Forças de Autodefesa a atacam. Já o Ghidorah não, ele age intencionalmente com malícia. Seus ataques são sistemáticos, porque ele tem de fato um objetivo de conquistar planetas no espaço a fora. Mothra, o Godzilla e o Rodan se juntam para derrotá-lo por entenderem que o Ghidorah representa uma ameaça a todo o ecossistema da Terra, incluindo os humanos e os outros kaiju.

Notem que eu falei “derrotá-lo” e não “destruí-lo”. Os três kaiju não acabam com o Ghidorah totalmente, eles conseguem afugentá-lo para o espaço novament. Podemos dizer que existe uma mensagem aqui que a real vitória não é a completa subjugação do seu inimigo, mas sim estabelecer uma união que serve ao coletivo e não apenas a indivíduos ou determinados grupos.

Ufa! Quantos parágrafos, né? Acho que agora temos mais do que suficiente para concluir a discussão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Novamente, gostaria de reforçar que esse longuíssimo texto não é sobre apontar qual dos cinemas tem os melhores monstros gigantes. Tal como acontece entre indivíduos, diferentes culturas terão diferentes interpretações de um mesmo tema e assim cada uma cria e trabalha seus conceitos próprios. Ainda mais um Estados Unidos e um Japão da década de 50 onde cada um esteve de um lado diferente da mesma guerra.

Sim, eu acho os kaiju bem mais interessantes que os monstros americanos. Contudo isso tem mais a ver com os temas e como o cinema japonês representa essas criaturas e não exatamente na qualidade dos filmes. Até porque todos os filmes citados aqui eu gosto bastante. Com exceção de A Bolha Assassina porque eu prefiro muito mais o remake da década de oitenta (spoiler de um texto bem no futuro).

O que tirei da minha experiência é que, naquele período, o cinema americano utilizava os seus monstros gigantes não como aviso dos perigos das armas nucleares e sim para reassegurar a sua população que estava tudo sob controle. Não vou dizer que essas obras eram uma propaganda das Forças Armadas dos Estados Unidos, só que é notável o quanto cada filme reforça a ideia dos soldados americanos imbatíveis. Ainda mais considerando que o país foi um dos vitoriosos – não o único, mas um que recebe os maiores destaques – da Segunda Guerra Mundial.

Por outro lado, com seus kaiju, o Japão mirava em temas muito maiores e diria até que universais. Já no primeiro Godzilla, embora você tenha a perspectiva japonesa sobre as armas nucleares, a discussão sobre qual é o papel da humanidade nesse novo mundo compete a todos nós. Além disso, o medo de uma nova guerra também era compartilhado por várias pessoas em lugares diferentes no mundo. Por isso que eu acho que é tão mais fácil de se conectar com esses filmes porque dá para reconhecer muitos valores em comum nas suas histórias.

De qualquer forma, sejam monstros gigantes americanos ou japoneses, essas criaturas tem muito mais a falar para além do que transparece na superfície dos seus roteiros. Eu espero que o texto motive alguém a conhecer esse gênero e tirar suas próprias leituras. E, se você chegou até aqui, muito obrigado pela paciência!


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