
Se você acompanha discussões sobre jogos na internet é possível que em algum momento você esbarre com o termo eurojank. Talvez até mesmo uma das suas variações mais específicas, o slavjank. Ambos os termos não descrevem nenhum gênero de vídeo game, até porque eurojanks abrangem diversos tipos de gameplay, como RPG, FPS, survival, ação-aventura, etc. Essa é apenas uma categoria de jogos que, como o nome indica, foram produzidos por estúdios europeus. Por sua vez, a derivação de slavjank surge porque muitos desses títulos são de estúdios sediados em países eslavos como a Ucrânia, Polônia, República Tcheca e Rússia.
Dependendo para quem você pergunta, o eurojank pode ser um termo depreciativo, algo parecido com o que aconteceu com os JRPGs. Isso porque a parte de “jank” significa, numa tradução mais livre, bugado. O que mais une tais jogos não é a questão geográfica, mas sim o fato de serem projetos com um orçamento menor que limita o polimento que os desenvolvedores podem fazer, sobretudo na apresentação geral do jogo. Portanto, com certa frequência, os eurojanks tem animações mais truncadas, pouca ou quase nenhuma dublagem, HUDs simplificados, texturas com menor definição e muitos, muitos bugs. Assim o investimento vai todo para a gameplay, apostando em mecânicas criativas e complexas que conseguem conquistar jogadores mesmo com todos os problemas de programação.
Os eurojanks já estão entre nós há bastante tempo e é muito possível que você tenha tido contato com mais de um deles sem saber. As franquias The Witcher e Metro, por exemplo. Hoje estes são nomes consolidados no mainstream gamer, mas podemos considerar que seus primeiros jogos faziam parte desse coletivo eurojank. No meu caso pessoal, durante a infância eu tive contato com The Fifth Disciple(que talvez um dia eu faça um texto sobre) e lá pelos meus vinte anos eu zerei a trilogia Risen, que é do mesmo estúdio da série Gothic. Porém, na atualidade, talvez o mais reconhecível nome do eurojank é a franquia. S.T.A.L.K.E.R.
Por motivos de “não quero ficar apertando ponto final toda hora” eu vou me referir ao jogo apenas como Stalker, ok?
Não vou dar uma de Davy Jones aqui e fingir que joguei muito Stalker na minha adolescência porque não é verdade. Eurojank é uma cultura que entrou muito recentemente – pelo menos de maneira consciente – no meu repertório. O primeiro título de Stalker, Shadow of Chernobyl, foi desenvolvido em 2007 pela GSC Game World. O jogo conseguiu fazer sucesso o bastante para garantir mais dois títulos, Clear Sky (2008), e Call of Pripyat (2009). Quinze anos depois, a franquia retornou com a sequência Heart of Chernobyl.
Dentre esses quatro jogos, eu só zerei Shadow of Chernobyl, lá em 2022, depois que alguns comentários no Twitter despertaram um interesse em conhecê-lo. No geral eu gostei muito da atmosfera opressiva da Zona, ainda que não o bastante para me motivar a conhecer o restante da franquia. Pretendo corrigir isso um dia. Contudo, naquela época eu resolvi pesquisar um pouco sobre Stalker a título de curiosidade. Foi assim que o jogo teve influência de duas obras dos tempos da União Soviética, o livro Piquenique na Estrada (1972) e sua adaptação para cinema que também se chama Stalker (1979). Guardei essa informação na cabeça, contudo não utilizei para nada naquele momento.
Daí damos um salto de três anos no futuro quando semanas atrás eu decidi ver uns filmes antigos. Um dos escolhidos foi a ficção científica Solaris que eu já tinha ouvido falar. Pesquisando o diretor eu vi que ele também foi o responsável por Stalker, o que ativou aquelas minhas memórias de Shadow of Chernobyl. Logo, aproveitei para fazer uma dobradinha com esses dois filmes e acabei me apaixonando pela história de Stalker. Tanto que no mesmo dia eu fui lá e comprei o livro original. Vejam só, não é que acabei me apaixonando também pela história do livro? Isso deu um estalo na minha cabeça. Vi ali uma possibilidade de fazer um texto – que talvez fique um pouco grandinho já que essa introdução está uns quatro parágrafos maior do que eu esperava – comparando esses títulos, cada um de uma mídia diferente.
Mas antes de passar para essas obras, me permitam explicar porque eu quero fazer isso.
Quem me acompanha há um tempo sabe que eu uso das coisas que consumo para dar vazão às minhas frustrações. Recentemente eu usei Virgo Versus the Zodiac só para falar que eu não gosto de true endings. Pois bem, nos últimos anos eu peguei um grande ranço com o que considero quase um fetiche pela fidelidade em adaptações das mais diversas obras. Acho que essa ideia vem criando uma mentalidade tosca de que se manter próximo da obra original implica, necessariamente, em mais qualidade. Eu já falei sobre isso em tempos mais remotos, porém o contato com Piquenique na Estrada e Stalker me fez querer voltar ao tema. Tanto que joguei Shadow of Chernobyl de novo no último mês.
Se eu tivesse que escolher o que mais gostei nessa experiência seria como cada uma dessas obras é bem diferente das demais. Não apenas porque estão em mídias diferentes. Se você olhar Stalker, o filme, ele mais parece ser uma história contada dentro do universo de Piquenique na Estrada do que uma adaptação de fato do livro. O jogo então nem se fala. Mesmo com muitas referências, Shadow of Chernobyl vem com um contexto bem diferente das suas inspirações. Dificilmente eu teria uma oportunidade melhor de falar de obras que partem do mesmo ponto, entretanto são tão distintas. Então, sem mais delongas, vamos começar!
PIQUENIQUE NA ESTRADA: O LIVRO

Os irmãos Arkady & Boris Strugatsky foram dois importantes autores russos cuja parceria se iniciou na década de 50 e se manteve até os anos 90 com o falecimento de Arkady. Os irmãos Strugatsky contribuíram muito para a ficção científica russa, com suas obras se mantendo populares até hoje no país e naqueles que formavam a antiga União Soviética. Contudo, fora do território russo o nome desses autores não recebeu o mesmo reconhecimento. Houve uma exceção: Piquenique na Estrada, livro publicado em 1972 e traduzido para mais de 20 países.
Não sei dizer se ou quanto essa obra tem influência na ficção científica dentro ou fora da Rússia pois eu nunca fui lá um grande entusiasta do gênero. E talvez essa é a razão que me faz gostar tanto de Piquenique na Estrada.
A história se passa treze anos após um evento que ficou conhecido como a Visitação. Nesse dia, alienígenas pousaram em seis pontos distintos da Terra, porém não chegaram a ter qualquer contato direto com a população. Eles apenas vão embora tão rápido quanto chegaram. As chamadas Zonas de Visitação então passam a ser controladas e vigiadas pelos governos ao redor do mundo, pois os aliens deixaram para trás uma série de artefatos que geram estranhas anomalias nesses locais.
A Visitação responde uma das perguntas mais importantes da ciência moderna, que é se os humanos estão ou não sozinhos nesse universo. Contudo, ao fazê-lo, o evento também afunda a humanidade em mais uma dúzia de perguntas que estão longe de serem respondidas. Quem eram esses alienígenas? De onde vieram? Por que partiram? Para onde partiram? O que queriam conosco? Ou será que queriam algo conosco? Nem mesmo as coisas que deixaram para trás nos servem de alguma resposta, porque a tecnologia alienígena é tão avançada que nem mesmo os mais renomados cientistas são capazes de entendê-la. Não apenas por sua complexidade, mas porque parece ser uma ciência que foge das leis que os humanos tomam como naturais do universo.
Um fenômeno que mencionam ali no meio do livro quando personagens discutem os impactos que a Visitação causou. As pessoas que residiam nas regiões próximas às Zonas reportam que quando os aliens chegaram houve um grande estrondo que causou cegueira em várias delas. Reparem, um estrondo e não um clarão. A ideia de que um som seja capaz de remover a capacidade de enxergar é algo que os cientistas nem mesmo conseguem formular, eles apenas podem observar os efeitos do fenômeno depois que ele ocorreu. Daí nasce uma grande frustração do livro que é o quanto pouquíssimo se sabe da tecnologia alien mesmo depois de mais de dez anos de estudos. A nossa razão humana, uma característica que é motivo de tanto orgulho para nós em relação aos outros animais da terra, não serve para nada aqui.
O prólogo de Piquenique na Estrada é fantástico porque descreve uma entrevista entre um radialista e o Dr. Pillman, que recentemente venceu o Prêmio Nobel de Física. O radialista começa o programa pedindo para o físico explicar o “radiano de Pillman” que, segundo o entrevistador, seria a primeira descoberta séria do cientista. O Dr. Pillman já quebra as expectativas logo de cara, ao dizer que aquela não é a primeira, não é uma descoberta, não é séria e nem mesmo é dele. Depois ele ainda explica que “radiano de Pillman” era apenas uma constatação que as seis Zonas de Visitação não foram escolhidas ao acaso e os pontos formavam uma curva na superfície da Terra.
O restante da entrevista é uma série de decepções para o radialista, e por extensão para nós os leitores, porque o cientista mostra que nenhum avanço foi feito desde a Visitação. Os cientistas sabem tanto sobre a Zona treze anos depois quanto sabiam no passado. Como o Dr. Pillman diz, o próprio fato da Visitação é a única descoberta real que conseguiram fazer depois de todo esse tempo. Assim, um dos principais temas de Piquenique na Estrada é a insignificância da humanidade perante o universo. Porém não numa visão niilista boba e sim um reconhecimento genuíno que o conhecimento humano ainda é limitado comparado a todos os fenômenos universais.
Por isso que é interessante que o principal ponto de vista de três quartos do livro é o do personagem Redrick “Ruivo” Schuhart, um stalker. Os stalkers são grupos de coletores que se arriscam dentro das Zonas para trazer qualquer tipo de artefato que puderem carregar e vender no mercado ilegal, já que o governo controla toda saída de tecnologia alien. Ruivo enxerga na Zona apenas um meio para um fim que é sustentar sua família. Ele não precisa entender como aqueles objetos funcionam e nem a natureza das anomalias, como um stalker ele só precisa saber quais são os perigos, como contorná-los e trazer os artefatos em segurança. A ciência por trás daquelas coisas não afeta nenhum pouco a sua vida.
Eu acabei me identificando bastante com o Ruivo porque, como eu disse, não sou lá chegado em ficção científica. Pelo menos não exatamente no lado da tecnologia. Quando eu curto algo do gênero é porque ele tem algum elemento em particular que eu acho fascinante, como por exemplo a biologia do Xenomorfo de Alien: O Oitavo Passageiro. Ou então quando existem discussões filosóficas nessas histórias que atraem minha atenção, como foi o caso de Solaris ou então Blade Runner.
Então não significa que eu esteja completamente desconectado da ficção científica, tal como o Ruivo não é totalmente neutro com a Zona. Pelo contrário, ao longo do livro nós vemos ele criar um ressentimento cada vez maior com os efeitos que a Visitação causou na humanidade. Até porque, por ser um stalker, o Ruivo está numa posição de linha de frente onde ele pode observar na prática como o limite do conhecimento humano e a sua ganância levam a consequências cada vez mais terríveis.
Ruivo vê seu amigo cientista, cujo entusiasmo e sua fé verdadeira no futuro positivo que aquelas tecnologias aliens poderiam trazer pra humanidade contagia ele próprio, morrer por um infarto fulminante por um simples toque numa estranha teia prateada dentro da Zona. Ele também vê o tempo todo pessoas pegando os artefatos apenas para descobrir formas de transformá-los em armas de destruição em massa. Ruivo tem consciência da desigualdade em que os stalkers se encontram, sendo aqueles que mais arriscam o pescoço e menos colhem os frutos do seu trabalho. Por fim, ele tem também que encarar como os efeitos da Zona no seu próprio corpo e que fazem com que a sua filha perca sua humanidade pouco a pouco.
Assim, até parece que as Zonas são uma demonstração de sadismo dessa misteriosa raça alienígena que queria prejudicar a humanidade de alguma forma. Porém não! O título de Piquenique na Estrada vem de uma analogia que o Dr. Pillman faz no terceiro capítulo, o único em que não seguimos o ponto de vista de Ruivo e sim de outro personagem, sobre como a situação que as pessoas se encontram agora em relação às Zonas é a mesma de animais vendo um grupo de humanos fazendo um piquenique no meio da estrada, deixando para trás um monte de quinquilharias que são tão estranhas para aquelas criaturas.
Uma analogia própria que eu gosto de fazer é que o livro resgata o mesmo sentimento que os primeiros homens da caverna devem ter tido ao se deparar com o fogo. Para eles aquilo também era algo muito longe da sua compreensão, eles não possuíam o menor conhecimento para entender as propriedades daquelas assustadoras labaredas. Porém eles eram capazes de entender os seus efeitos. Sabiam que se ficassem perto, teriam calor para sobreviver ao frio. Também sabiam que não poderiam chegar muito perto das chamas para não se queimar. O fogo também iluminava os seus arredores e eventualmente também seria usado para cozinhar. Até que um dia a inteligência humana evoluiu a ponto de entender e dominar o fogo.
Assim, Piquenique na Estrada nos faz nos lembrar que cosmicamente ainda somos homens da caverna olhando para um pedaço de pau pegando fogo, sem entender exatamente como aqui funciona, mas lutando desesperadamente para compreendê-lo e utilizá-lo, para o bem e, infelizmente também, para o mal.
STALKER: O FILME

Via de regra, quando ambas as versões são fáceis de se encontrar, eu recomendo ver a obra original antes da sua adaptação. Contudo, Stalker é uma das raras exceções. Para mim, a experiência do filme fica bem melhor quando você não tem qualquer conhecimento prévio do livro. Muito disso vem da escolha do diretor, Andrei Tarkovsky, em não tratar o filme como a típica adaptação que estamos tão acostumados. Tanto é que eu prefiro interpretar Stalker mais como história que ocorre dentro do universo de Piquenique na Estrada. O que o Tarkovsky faz é pegar os elementos que ele mais acha interessante do livro e trabalhá-los através de novos personagens para expandir os temas que os irmãos Strugatsky colocaram na sua obra.
Tarkovsky é mais um daqueles diretores que tem uma grande influência para outros cineastas, embora permaneçam virtualmente desconhecidos pelo público mainstream fora dos seus países de origem. O pouco que conheci do trabalho dele foi recente com os dois filmes que assisti, além de algumas coisinhas que li a respeito dele.
Um detalhe que me chamou atenção foi sobre Solaris, que também é adaptação de um livro de ficção científica, porém do autor polonês Stanisław Lem. Dentre as suas motivações para levar Solaris para as telas de cinema, Tarkovsky considerava que o gênero da ficção científica, na época, dava muita atenção aos aspectos tecnológicos e pouca ênfase nos temas e complexidade emocional das suas histórias. Eu estou longe de poder dizer o quanto essa afirmação está correta ou não, mas eu acho ela curiosa porque explica bastante a escolha do Tarkovsky em também dirigir uma adaptação de Piquenique na Estrada.
Como vimos no tópico anterior, o livro deixa a tecnologia alienígena apenas como plano de fundo para explorar outros temas da natureza humana. Tarkovsky vai um passo além, porque nem mesmo temos uma referência explícita sobre a Visitação e os aliens no seu filme. A Zona é mantida sob um véu de completo mistério e ambiguidade, deixando para audiência interpretá-la através de detalhes sutis da sua cinematografia. Os artefatos também são quase que inteiramente excluídos da adaptação, se não fosse por uma única exceção.
A trama se concentra em três personagens referenciados apenas pelos seus epítetos: o Escritor, o Professor e, claro, o homônimo Stalker. O Escritor e o Professor contratam o Stalker para que ele os guie até a Zona. Cada um tem sua motivação, mas ambos têm um objetivo em comum que é a Sala. Segundo as lendas que circundam a Zona, a Sala tem a capacidade de realizar os desejos de qualquer um que conseguir entrar nela. O Stalker é um dos poucos que conhece a sua localização e como chegar até ela em segurança. Durante a jornada, a personalidade desses três personagens vai se aflorando, trazendo os conflitos na forma de discussões sobre a natureza humana.

A Sala é baseada num artefato que aparece no último capítulo de Piquenique na Estrada, a Esfera Dourada, que os stalkers acreditam ser capaz de realizar desejos. Embora o livro nunca explicite que o artefato realmente tem esse poder, a Esfera Dourada de fato existe. Um dos personagens, o Abutre, sabe sua localização e em dado momento conta para o Ruivo. Por outro lado, em Stalker, a gente nunca chega a ver de fato a Sala e muito menos uma comprovação que ela realiza desejos. Bom, pelo menos não explicitamente.
A diferença fundamental entre Piquenique na Estrada e Stalker é que o ponto central do livro é a ignorância da humanidade em frente ao universo. A Visitação aconteceu, alienígenas existem, a tecnologia deles está ali, seus efeitos podem ser observados. O que não temos ainda é o conhecimento para compreendê-lo. Por isso que o que melhor ilustra Piquenique na Estrada é a analogia feita pelo Dr. Pullman. O filme, por outro lado, lida com a própria noção do desconhecido, do papel da fé num mundo secularizado e os mistérios sombrios do nosso subconsciente. Assim, o que melhor define Stalker é uma fala do Escritor quando ele comenta como o mundo era mais interessante na Idade Média quando “cada casa tinha um goblin e cada igreja tinha um Deus”.
A Sala, e por extensão a Zona, representa esse aspecto enigmático do universo, pois sua força se manifesta através do seu mistério. Nós nunca vemos uma anomalia igual as dos livros e mesmo quando algo de estranho acontece é sempre de maneira intencionalmente ambígua. Contudo, mesmo com nada de sobrenatural acontecendo, a gente sempre se sente desconcertado naquele lugar. Por isso que eu digo que seria mais interessante ver o filme antes do original, pois quando você já assume que a Zona é produto de uma visita alienígena a ambiguidade perde seu impacto. Ao criar dúvida, o filme te faz questionar a realidade à sua volta, tal como os próprios personagens passam a fazer no momento que chegam até a Zona.
Tem uma frase que aparece tanto no livro quanto no filme, mas que neste último acaba ganhando um novo significado. Tanto o Ruivo quanto o Stalker falam como na Zona uma linha reta nem sempre é a distância mais curta entre dois pontos. O primeiro fala isso por conta dos perigos que as anomalias apresentam, porém o segundo parece aludir a essa noção que a realidade dentro da Zona é completamente diferente do mundo exterior. É esse o sentimento que Tarkovsky consegue transmitir brilhantemente no seu filme.

É como se pudéssemos sentir de fato a atmosfera inquietante da Zona, algo que contrasta com o próprio Stalker que age com muita naturalidade lá dentro, quase como se ele fosse parte da Zona agora. Ele não desenvolve aquele ressentimento e raiva que o Ruivo tem no livro, é justamente o oposto. O Stalker do filme é muito mais otimista, um real idealista, que acredita que a Zona pode trazer mais alegria para o mundo e para as pessoas. Mas como eu disse, com o tempo as personalidades dos três personagens passam a se chocar. A partir dali, o filme mostra como desconhecemos a nós mesmos tanto quanto desconhecemos o universo.
No começo do filme ficamos sabendo da história do Porco-Espinho, o mentor do Stalker. No passado, o Porco-Espinho entrou na Sala e quando retornou para casa ele se tornou milionário. Uma semana depois ele se enforcou. Essa história volta mais próximo do fim, quando o Escritor passa a teorizar sobre a natureza da Sala. Acontece que para chegar até ela, as pessoas precisam passar por uma anomalia conhecida como o Moedor de Carne. Para desativá-la temporariamente é necessário que alguém se sacrifique. Em teoria! Sem que os outros saibam disso, o Stalker arranja para que o Escritor vá na frente, entretanto nada acontece. O Stalker diz que tinha razões para acreditar que a Zona os deixaria passar em segurança e conta como uma vez o Porco-Espinho fez isso com o irmão que acabou morrendo no Moedor de Carne.
Mais a frente, depois de uma discussão, o Escritor reflete sobre tudo que vivenciou nessa viagem pela Zona. Ele conclui que o Porco-Espinho entrou na Sala para pedir que seu irmão fosse ressuscitado. Só que a Sala não é como um gênio que ouve o seu pedido e o torna realidade. Ela consegue ler o que está escondido no subconsciente humano e foi assim que ela viu que o Porco-Espinho desejava muito mais dinheiro do que a volta do seu irmão. Quando ele ficou consciente desse fato, acabou se matando pela culpa de amar mais os bens materiais do que sua própria família. Por esse motivo que o Escrito decide não entrar na Sala, temendo o que o subconsciente dele poderia despejar no mundo.
Assim como a própria Zona, Stalker é um filme muito oblíquo e, tal como o livro, Tarkovsky nos deixa com mais perguntas do que respostas. Não é um filme que você vai dissecar enquanto o assiste e nem mesmo um tempo depois. Até hoje eu me pego pensando em algumas das suas passagens tentando fazer sentido nos seus temas. Tarkovsky não precisou de uma tecnologia alienígena tão avançada que foge de qualquer compreensão humana para nos fazer sentir insignificantes ou perdidos. Ele só precisou olhar para dentro e mostrar que nosso subconsciente é um lugar tão misterioso quanto o universo fora dele.
S.T.A.L.K.E.R – SHADOW OF CHERNOBYL: O JOGO

Mais de três décadas depois da publicação de Piquenique na Estrada, o seu universo ganhou uma nova interpretação. Dessa vez através de um jogo através S.T.A.L.K.E.R: Shadow of Chernobyl. Várias mecânicas do jogo são referências diretas ao livro, como as anomalias da Zona e os artefatos, porém em relação a história eles se afastam bastante. De tal forma, vocês já podem imaginar que a história também não tem nada a ver com o filme, até mais que o livro. Porém eu diria que a atmosfera desconcertante criada pelo Tarkovsky ajudou muito na criação das paisagens desoladas do jogo. Evidentemente, também tem um evento real que influenciou muito a franquia: o acidente nuclear de Chernobyl.
Os jogos de S.T.A.L.K.E.R se passam numa realidade alternativa em que, 20 anos depois da explosão do reator, um segundo desastre ocorre na Zona de Exclusão de Chernobyl. Agora, além da fauna e da flora que sofreram mutações pela radiação, a área é assolada por diversas anomalias que distorcem as leis da física. Apesar de ser um local perigoso, a Zona possuí diversos grupos operando no seu território. Stalkers, cientistas, militares e grupos paramilitares, bandidos, mercenários, etc. Cada grupo tem seus próprios interesses e motivações para estarem na Zona.
Para além da premissa, existem algumas diferenças fundamentais entre Shadow of Chernobyl e suas inspirações. A mais simples – e óbvia – é a presença da radiação. Foi uma surpresa para mim ao descobrir que esse conceito sequer existia dentro do livro ou do filme. Pelo contrário, Piquenique na Estrada faz questão de pontuar que embora os stalkers e seus filhos sofram mutações, nenhuma delas é causada por radiação. No filme também aludem a essas mutações, mas novamente não se fala nada sobre radiação. Esse se torna mais um dos mistérios da Zona que a humanidade não sabe explicar.
O jogo, por outro lado, não pode fugir desse elemento tanto pelo seu contexto quanto pelas aplicações práticas. Shadow of Chernobyl é um FPS que incorpora algumas mecânicas típicas de jogos de sobrevivência. Ele possui um mundo bem opressivo onde seu personagem está sujeito a algumas adversidades, como fadiga, fome e radiação. Quanto mais você se aprofunda na Zona, áreas com níveis de radiação elevados se tornam mais frequentes e você fica mais vulnerável a envenenamento por radiação.
Porém aqui eu estou falando apenas das mecânicas que evidentemente farão desta uma experiência diferente de um livro e de um filme por mera definição. Existem aspectos mais gerais da gameplay que eu acho que transformam Shadow of Chernobyl numa experiência particular, como ação e política. Se Shadow of Chernobyl quisesse ser algo verdadeiramente fiel ao material original, ele seria algo mais próximo dos walking simulators. Ao remover a noção da Zona como um lugar inóspito, Stalker traz para dentro desse universo uma ação que até anteriormente não se fazia presente.

Existem até alguns momentos de tensão, tanto no livro quanto no filme, porém nada remotamente próximo ao que o jogo faz. O que eu acho interessante é que os desenvolvedores optaram por não trazer aquela glorificação dos tiroteios do FPS médio que cria a sensação de ser um super soldado. Como eu disse, o ambiente de Shadow of Chernobyl é muito opressivo e se propõe a criar uma atmosfera em que o jogador se sinta sempre vulnerável. Não é que as sequências de tiro sejam mais “realistas” (argh, eu ODEIO esse termo) mas sim que foram construídas para nos fazer pensar duas ou três vezes antes de entrar em qualquer confronto.
Tudo no jogo é pensado para você não achar que pode sair pelo mapa correndo e atirando em tudo que se mover. O personagem eventualmente cansa, os coletes perdem a efetividade conforme você recebe dano, as armas se deterioram, você tem que administrar seu inventário para não levar muito peso ao mesmo tempo que carrega munição o bastante, não tem fast travel, etc. Tudo isso para te lembrar que a Zona não é um passeio no parque. Existem mutantes rugindo por todos os lados, anomalias que podem te eliminar num piscar de olhos, há bandidos prontos para disparar contra você à primeira vista e quando você pensa que está em segurança o símbolo de radiação aparece do lado direito da tela porque você não percebeu que se aproximou demais de um objeto contaminado.
Em qualquer FPS o seu personagem está em desvantagem numérica. Um negócio tão comum que a gente nem pára pra pensar nisso enquanto joga. Não em Shadow of Chernobyl. Toda vez que você ouve aquele apito do seu PDA que mostra quantas pessoas estão próximas de você, o coração gela. Pior ainda quando não tem como você pegar um desvio. Não existe algo que expressa melhor a experiência de Shadow of Chernobyl do que quando um inimigo surge na sua frente e ao tentar atirar você escuta o clique metálico da sua arma travando.
É uma jogabilidade brutal e que diria que se beneficia bastante da limitação do estúdio na sua época (ainda que uns bugs aqui e acolá sejam frustrantes). Recentemente eu joguei um pouco de Call of Pripyat e ali fica claro que se os desenvolvedores tinham toda a capacidade de fazer um universo mais “vivo” caso pudessem usufruir dos recursos necessários na época. Por isso que em Shadow of Chernobyl você tem vários campos abertos relativamente vazios, salvo os locais que você precisa explorar. Tem algumas construções em ruínas, alguns veículos abandonados, um pouco de vegetação rasteira. Porém é um vazio que funciona muito bem dentro desse universo, pois te transmite o sentimento de uma terra abandonada e de ninguém.
Vejam que até agora eu não entrei em nenhum grande detalhe da história de Shadow of Chernobyl porque eu realmente não acho que a saga do Sterlok é o que vende o jogo. O lore sempre vai agregar a gameplay e narrativa é importante para o nosso investimento emocional em qualquer obra. Só que o que vai te segurar no jogo é como ele estrutura seu universo, incluindo como uma camada política que se manifesta ali. Esse para mim é a real contribuição que Shadow of Chernobyl faz à Piquenique na Estrada e Stalker.

Dá para discutir que existe sim um subtexto político nessas obras, porém eu argumentaria que isso vem muito mais do contexto histórico do mundo daquele período. Por outro lado, no jogo não existe como negar os elementos políticos até porque eles são partes essenciais do lore de Shadow of Chernobyl. A premissa já deixa isso claro, pois os eventos que levam ao segundo desastre em Chernobyl só acontecem porque o governo aproveitou para fazer experimentos na região. Depois, com a queda da União Soviética, faz com que um grupo clandestino possa continuar com os experimentos sem a supervisão.
Só que isso não se limita apenas aos fatos da história, pois quando a gente tem contato com a gameplay os elementos políticos se fortalecem através daquelas facções que eu mencionei no início. Porque não é apenas um caso de Time A, Time B e Time C. Cada grupo tem seus interesses próprios na Zona e são influenciados pelas suas ideologias. De um lado você tem o exército ucraniano que além de vigiar o perímetro da Zona, tenta impedir a entrada dos stalkers e a saída dos artefatos. Do outro existem os seguidores da Freedom que acreditam que a Zona deveria ter acesso livre e vista como uma maravilha criada pela ciência. Já em oposição, existem aqueles que entram para a Duty e enxergam a Zona e tudo que nasce a partir dela como uma ameaça que deve ser eliminada do mundo.
Você como jogador tem a escolha de auxiliar alguns desses lados ou trilhar o seu próprio caminho, porém não pode escapar das repercussões que esses conflitos de interesses causam. Não é à toa que na reta final do jogo você vê vários desses grupos entrando em conflito armado direto. E olha que nem mencionei o Monolith só para guardar um pouco de mistério para aqueles que ainda não conhecem, mas tem interesse em mergulhar nessa franquia.
Ou seja, não é apenas por se tratar de um jogo que S.T.A.L.K.E.R: Shadow of Chernoby produz uma experiência diferente de Piquenique da Estrada, é porque é de fato uma experiência diferente. Você pode pinçar uns pontos de convergência, porém você sai do jogo sentindo que não viu apenas uma adaptação, o mesmo sentimento que Stalker passa. Assim eu gostaria de fechar esse círculo voltando outra vez àquilo que me fez escrever esse longuíssimo texto que eu estou até com medo de ver o tempo de leitura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Piquenique na Estrada, Stalker e Shadow of Chernobyl. Um livro, um filme e um jogo. Uma obra original, uma adaptação e uma “adaptação”. Essa foi uma oportunidade única, ou no mínimo rara, de mostrar o que penso com exemplos sobre essa relação entre obra original x adaptação x fãs. Eu entendo o ponto de vista dos fãs que querem algo mais próximo daquilo que eles vieram a adorar. Entende, porém não concordo (e nem respeito).
Eu entendo porque não me oponho a ideia de uma adaptação que busque ser mais fiel ao original. Ora, um dos meus animês favoritos é Fullmetal Alchemist: Brotherhood e ele desvia muito pouco do mangá da grandiosa Hiromu Arakawa. O Iluminado, por outro lado, toma muitas liberdades em relação ao livro do Stephen King e se tornou um clássico do terror. Enfim, o que eu quero dizer é que uma adaptação PODE ser fiel a obra original. Mas isso é apenas um caminho, não exatamente o mais correto. Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City tentou puxar um monte de coisas dos jogos e ficou tão ruim quanto as outras adaptações que se afastaram tanto da franquia.
Então vou reforçar mais uma vez: fidelidade não implica em qualidade. Dá para se usar uma obra como norte, puxar alguns elementos e temas e fazer algo bem diferente e tão bom quanto. Piquenique na Estrada é um ótimo livro, Stalker é um ótimo filme e Shadow of Chernobyl um ótimo jogo. As adaptações tem seus méritos próprios e a gente consegue isso deixando que outros artistas tomem riscos criativos. Pode não dar certo às vezes, paciência. Mas existem bons precedentes!
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