
Como toda criança que transitou entre o final dos anos 90 e início dos 2000, ver Digimon na saudosa TV Globinho era um dos meus rituais diários, mas nunca cheguei a me tornar um grande fã da franquia. Provavelmente porque eu dividia minha atenção entre Pokémon, Medabots e outros desenhos que passavam na época. Mas eu lembro que gostava muito do desenho, em especial a primeira série, tanto que tive bonecos do Patamon e do Agumon. Esses dias passou uma postagem na minha linha do tempo e, para fazer um agrado a minha criança interior, eu assisti Digimon Adventure.
Digimon Adventure foi a primeira série produzida de Digimon em 1999 e também um curta que saiu na mesma época. Enquanto o desenho foi dirigido por Hiroyuki Kakudō, o filme era um projeto comandado por Mamoru Hasoda. Só que aqui no Brasil o nosso contato foi um pouco diferente do Japão. Digimon surgiu lá primeiro em 1997 como uma linha de virtual pets chamada Digital Monster. Os brinquedos eram da Bandai que já tinha uma outra linha que conhecemos muito bem, o Tamagotchi. A diferença entre eles era que o Digital Monster permitia que as crianças colocassem os seus pets para lutar.
Com o sucesso dos brinquedos, o Hasoda foi chamado para dirigir uma animação que serviria como uma propaganda para expandir a marca de Digital Monster. Naquele mesmo período também era publicado o mangá Digimon Adventure V-Tamer 01 que, apesar da história ser bem diferente do futuro desenho, tinha como protagonista o Tai. A Bandai decidiu aproveitar a boa recepção que o personagem teve e transformá-lo também no protagonista do filme do Hasoda. Digimon Adventure então passou por uma reformulação de forma que servisse como prólogo para a série que entrou em produção um mês depois. Com pouco mais de 20 minutos de duração, o curta passou nos cinemas no dia 6 de março de 1999. Por sua vez, o desenho teve sua primeira transmissão exatamente no dia seguinte. Assim as crianças japonesas tiveram a chance de ver Digimon Adventure na ordem certa.
Com a gente essa história foi um pouco diferente porque tivemos contato com a versão que veio dos Estados Unidos. Lá, Digimon passava pela Fox que tinha interesse em replicar o mesmo sucesso que os filmes de Pokémon estavam tendo. Naquela época já existiam três filmes de Digimon no Japão: Adventure, Our War Game e Hurricane Touchdown. A Fox então produziu Digimon: O Filme, que nada mais é do que uma compilação desses três filmes editados para caber numa narrativa única. Portanto, a primeira vez que Digimon Adventure, o curta, passou aqui no Brasil nós já tínhamos a primeira e a segunda série.
Achei pertinente essa anedota, por causa das minhas memórias vendo Digimon. Os eventos do filme são mostrados no meio da série e na minha cabeça as cenas pertenciam a um episódio que eu não assisti, uma vez que eu comecei a assistir o desenho com ele já em andamento. Quando Digimon: O Filme passou numa Sessão da Tarde qualquer, eu lembro da minha surpresa em finalmente assistir o tal episódio que havia perdido. Por isso, até dias atrás, Digimon Adventure ainda era para mim apenas um dos demais episódios do desenho original. Agora, ao revê-lo, eu o interpreto como um ótimo filme de kaiju.

Existe no meio nerd a tal “regra dos 15 anos” que nos diz que é melhor não assistir novamente uma obra que você viu na sua infância ou adolescência por causa do risco de se decepcionar. Com o tempo eu percebi que isso não passa de uma bobagem. É uma conversa fiada que pessoas com uma leitura muito medíocre das mídias perpetuam por medo de reavaliar obras de quando eram mais novas. Eu, pelo contrário, gosto muito de revisitar o passado e ver quais novas interpretações consigo tirar agora que sou mais velho. Sendo sincero, eu tenho muito mais experiências positivas do que negativas revendo essas obras pelas referências que acumulei. Assim, assistir Digimon Adventure me foi tão proveitoso porque de um ano para cá eu acabei me interessando por filmes de monstros gigantes e kaiju.
O filme mostra o primeiro encontro de Tai e sua irmã Kari com os Digimons. Numa madrugada, um misterioso ovo sai da tela do computador deles e Kari passa a cuidar dele. Na manhã seguinte o ovo choca e dele sai uma criatura chamada Botamon. Ao longo daquele dia, a criatura se transforma e começa a falar, se apresentando para as duas crianças como Koromon. Tai e Kari desenvolvem uma pequena amizade com o Digimon que, ao chegar da noite, muda outra vez para um Agumon gigante e mais agressivo. Nesse momento um segundo ovo surge nos céus da cidade e choca imediatamente, liberando um pássaro gigante, Parrotmon. Vendo Parrotmon como uma ameaça, Agumon parte para enfrentá-lo enquanto Tai, Kari e outras crianças assistem o embate.
Digimon Adventure é um filme que funciona muito bem pela sua simplicidade. Uma leitura cínica pode reduzi-lo a um comercial de 20 minutos e por isso que, artisticamente, cinismo não serve para muita coisa. Porque não tem como reconhecer o talento genuíno por trás da direção, roteiro e animação desse curta. Hasoda se compromete em criar uma narrativa direta que mantém o mistério sobre a natureza daquelas criaturas, mas sem deixá-las vazias de personalidade. Você como o comportamento do Koromon muda a cada transformação e relação dele com Tai e Kari floresce com muita naturalidade. Além disso, o filme consegue capturar a aura mística que existia no mundo tecnológico, principalmente com o advento da internet, do início dos anos 2000.
São detalhes que obviamente passaram direto pela minha cabeça quando eu era criança, numa época que eu só conseguia enxergar monstrinhos lutando com outros monstrinhos. Mas agora eu tenho uma outra perspectiva, olhando para Digimon Adventure não com as lentes de Digimon, mas de uma narrativa de kaiju.
Sete anos depois de Digimon Adventure, sairia no Japão Gamera the Brave que acabou sendo o último filme do Gamera depois da sua fantástica trilogia nos anos 90. Curiosamente, o último capítulo desta trilogia, A Vingança de Íris, saiu também na mesma data de Digimon Adventure. Pois bem, em Gamera the Brave, um garoto chamado Toru encontra um ovo misterioso numa ilha. Dele nasce um pequeno Gamera que o menino adota e coloca o nome de Toto.

Toru trata o bebê Gamera como se fosse um animal de estimação comum. Os amigos do menino, por outro lado, falam para ele que Toto é um kaiju, principalmente depois que a criatura começa a crescer. Toru rejeita desesperadamente essa ideia que Toto é um kaiju por boa parte do filme até que ele revela a razão. Ele não quer que Toto seja um kaiju porque essas criaturas sempre lutam até a morte e Toru não quer perder seu novo amigo.
Esse é um conceito que define uma diferença fundamental que separa os desenhos de Digimon com os de Pokémon. Apesar de ambos explorarem muito bem a relação das crianças com as criaturas dos seus respectivos universos e o uso das mesmas em duelos, os Pokémons sempre voltam para suas pokébolas. Por outro lado, as lutas entre Digimons com frequência resulta na morte de um deles.
Existe uma tensão e um peso maior entre ver dois Digimons duelando do que dois Pokémons e é esse sentimento que Digimon Adventure estabelece. Vemos isso principalmente através da Kari que tenta impedir que o Agumon enfrente o Parrotmon, um esforço inútil porque está na natureza dos dois. Apesar de ser curto, o confronto consegue ilustrar o caráter épico, mas brutal do mundo de Digimon. Tanto que uma das últimas cenas que o filme nos mostra é a destruição deixada após a luta com os gritos de Kari desesperadamente chamando por Koromon.
Digimon Adventure é um ótimo curta de kaiju e possivelmente uma das melhores obras dentro dessa franquia. Então se você foi uma criança Digimon, também faça esse agrado a si mesmo. Caso não tenha sido, bom, nunca é tarde pra começar e esse filme é um excelente começo!