O zeitgeist cibernético de Digimon Adventure: Our War Game

Uma das primeiras formas de Diablomon aparecendo no computador de Izzy em Digimon: Our War Game

Com a chegada do segundo milênio, o mundo testemunhou uma revolução na área da comunicação com a internet. Embora ela já estivesse em desenvolvimento desde décadas antes, foi a partir da segunda metade dos anos 90 que o acesso e interesse do público se fortaleceu. O Japão foi um dos países pioneiros na internet, na construção tanto da tecnologia quanto da cultura da internet. Então é mais do que natural que existissem obras japonesas buscando representar essa transformação por meio da ficção. Pessoalmente eu gosto de destacar três: Serial Experiments Lain (1998), Digimon Adventure: Our War Game (2000) e Pulse (Kairo, 2001). Cada uma delas

Serial Experiments Lain talvez seja a mais fundamental entre elas. Não só pela qualidade experimental da sua animação, mas pelas discussões que a série levanta em cada um dos seus episódios. As linhas tênues entre o mundo real e o virtual, a perda de identidade e do contato com a realidade, o poder destrutivo de rumores, etc. Pulse, por sua vez, não chega a ser tão abrangente nos seus temas e também não se limita apenas à internet. Contudo ele traz uma perspectiva interessante sobre como essa ideia que a tecnologia ajudaria as pessoas a se conectar apenas serviu para evidenciar a solidão no mundo moderno. Mas não apenas de pessimismo vive o homem. Our War Game, tal como Digimon como um todo, olha a internet pelas lentes das possibilidades fantásticas.

Para nós aqui no Brasil, a animação veio numa embalagem diferente sendo um dos três curtas compilados em Digimon: O Filme. Nos Estados Unidos, Digimon era transmitido pela Fox e supõe-se que a emissora queria um longa-metragem para competir com os filmes de Pokémon. Já no Japão, a versão original saiu nos cinemas como parte do evento semestral da antiga Toei Anime Fair, contando novamente com a direção de Mamoru Hosoda.

Hasoda foi muito importante na gênese de Digimon. Foi ele quem dirigiu o fantástico Digimon Adventure, o curta que precedeu a série original, também o episódio “Temporariamente em Casa”, que para mim é o melhor da temporada. Nesse contexto, Our War Game foi mais um importante passo na carreira do Hasoda que tinha como objetivo dirigir seus próprios filmes. Não é à toa que no futuro ele aproveitaria o roteiro de Our War Game em Summer Wars (2009). Aliás, uma pequena história de bastidores aqui do blog. Inicialmente esse texto seria parte do meu esquecido quadro de Double Down, onde eu iria comparar os dois filmes. Porém depois de rever ambos, eu desanimei. Ainda considero Summer Wars uma boa história, porém fica muito menos especial quando você vê que todas as suas melhores ideias são tiradas de Our War Game.

Acho que já deu para perceber que eu gosto um pouquinho dessa animação, né? De fato, Our War Game é o meu título favorito dentro da franquia de Digimon. Só não arrisco a dizer que é o melhor porque seria muita arrogância da minha parte. E injusto pois não consumi muitas coisas desse universo. De qualquer forma, tenho plena confiança que Our War Game está entre as melhores produções de Digimon e tudo isso se deve a excelente direção do Hasoda.

Algo que ficou claro nos episódios de “Temporariamente em Casa” e Digimon Adventure – que embora seja um curta eu considero o verdadeiro primeiro episódio da série – é que o Hasoda sabia trabalhar com tempo limitado. Para isso ele concentra as histórias em poucos personagens que em ambos os casos foram o Tai, Kari e o Koromon. Apesar dele ter um espaço maior com Our War Game, o Hasoda ainda trata o filme como se fosse mais um episódio de Digimon. Ele toma proveito que já estamos bem familiarizados tanto com os personagens quanto aquele universo como um todo e foca seus esforços no desenvolvimento da aventura.

Our War Game se passa alguns meses depois que os Digi-Escolhidos salvam o Digi-Mundo e, por consequência, a Terra. Tudo parece normal, até que Izzy descobre que um novo Digi-Ovo surgiu. Porém, dessa vez, o ovo não se manifesta no nosso mundo físico e sim no nosso mundo cibernético. Dele nasce o Diablomon*, um Digimon corrupto que passa a consumir dados e causar falhas em vários sistemas do Japão.

*vou me referir a ele apenas pela forma final por conveniência.

Ainda que Digimon seja fruto da revolução digital da internet, o desenho sempre lidou com a tecnologia por uma via mais fantástica. Assim podemos dizer que o que o Hasoda faz em Our War Game é um paralelo lúdico com o infame bug do milênio. Para quem não se lembra, esse foi um medo global originado num suposto problema que estava previsto de acontecer no exato ano 2000. Alguns computadores armazenavam os dois últimos dígitos do ano, então imaginava-se que ao passarmos de 1999 para 2000 os programas iriam entender que estávamos na verdade em 1900. Os mais recentes já utilizavam novos métodos para registrar datas, contudo muitas empresas ainda tinham sistemas antigos. Desse modo, várias pessoas acreditavam que esse bug iria desestabilizar a infraestrutura dos computadores da época.

Felizmente tudo isso não passou de um enorme pânico coletivo. Até houve registro de algumas falhas, porém nada que causasse o imaginado apocalipse tecnológico. Logo, o Diablomon vem representar todo o medo que essas pessoas tinham do que poderia acontecer. Por exemplo, um dos primeiros problemas que ele cria é fazer com que os trens não parem nas estações corretas. Depois o Diablomon entra no sistema dos mercados e muda o preço de todos os produtos, tornando-os absurdamente caros. Por fim ele consegue derrubar as linhas telefônicas de Tóquio, cortando o acesso à internet do Tai e do Izzy.

É nesse ponto que eu considero que Our War Game se torna uma cápsula do tempo que captura o zeiteigeist cibernético dos anos 2000. Os conflitos do filme não surgem apenas por conta de um monstro digital, mas também pelo cenário tecnológico daquele período. O último caso que eu citei é o mais perfeito exemplo, pois nos faz lembrar como o acesso a internet era majoritariamente por conexão discada (dial-up), nos deixando dependentes das linhas telefônicas. Podemos citar a dificuldade do Tai em entrar em contato com os outros Digi-Escolhidos porque telefones celulares ainda não eram comuns, ainda mais com crianças.

Isso leva ao meu exemplo favorito que é quando seguimos o Matt e o T.K tentando arranjar um jeito de se conectar a internet. Os dois foram visitar a avó que vive numa cidade do interior onde quase ninguém possuía um computador. Alguns moradores nem mesmo sabiam o que era um computador. Quando eles finalmente encontram uma loja com um, a dona fala que o computador não tem conexão com internet.

Tem dois momentos dessa sequência que eu acho que vale a pena destacar. O primeiro é quando namorado/esposo da dona da loja pede para ela deixar os garotos usarem o computador. De novo ela repete que não adianta porque ele não está conectado à internet. O namorado/esposo continua replicando com “então conecta!”, o que deixa a mulher furiosa provavelmente pensando que esse idiota não tem a menor noção do que está falando. Não sei o quanto isso foi intencional, mas ali me pareceu que o filme quis mostrar como as pessoas não entendiam como a internet funcionava. Não digo nem da parte mais técnica e sim na superfície da sua operação mesmo que é onde nós, o público leigo, estamos.

O segundo momento é quando o Matt e o T.K finalmente encontram um computador com acesso a internet numa barbearia e conseguem falar com o Tai e o Izzy pela webcam. Quando as crianças conversam com os Digimons pelos computadores, os dois lados vêem igual uma dessas telas de chat de vídeo que é transmitido em tempo real. Isso é o filme tomando uma certa liberdade poética apelando para o fantástico da situação. Porém, quando o Matt e o T.K conversam com o Tai e o Izzy, você vê que a imagem da tela trava o tempo todo, já que a velocidade de transmissão da internet discada era lentíssima.

Our War Game é uma ótima animação e minha opinião sobre ela não mudou muito nesses anos. Hoje eu consigo apreciá-lo por outros fatores além da aventura. É um filme com muito ritmo, onde o Hasoda não disperdiça um segundo sequer. Tem um suspense absurdo com o fator de bomba-relógio que é trabalhado de maneira muito criativa. Ele usa diferentes situações, como o bolo que a mãe do Tai está assando, a prova que o Joe está fazendo e o míssil que o Diablomon fez disparar, para nos manter com essa constante ansiedade que o tempo está chegando no fim. A transformação do Omnimon, com todas as crianças se unindo ao Tai e o Matt para dar força para eles vencerem o Diablomon é simplesmente linda. E antecipa o futuro da internet com as lives.

Mas agora o que eu acho mais especial nessa história são exatamente esses detalhes que mostram como era usar a internet nos anos 2000. É uma nostalgia saudável de olhar para o passado, porém ter a noção que estamos bem melhores – pelo menos do ponto de vista tecnológico – hoje. Our War Game ainda é uma aventura digital muito gostosa de se assistir que também traz aquele quentinho no coração de relembrar um passado que não se limita apenas ao filme, mas a um momento na história do mundo.


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