Em 2017 recebemos dos desenvolvedores canadenses, Studio MDHR, o que na minha humilde opinião é um dos mais fantásticos jogos indie feitos: Cuphead. Como já deixei evidente nos textos de Arcane e Cucuruz Doan’s Island, eu sou apaixonado por animação. Dentre todas as suas formas, a mais especial para mim é animação tradicional, também conhecida como animação desenhada à mão, com a qual eu cresci assistindo. Fosse com os desenhos matinais, fosse com clássicos da Disney. Logo é fácil entender porque eu gosto tanto de Cuphead e o revisito de tempos em tempos.

O que me atraiu no jogo de imediato foi a inspiração que seus desenvolvedores tomaram. A estética de Cuphead busca referências na dita Era de Ouro da Animação Americana, que se iniciou nos anos 20 e foi até os anos 60. Mesmo se tratando de obras bem antigas, mais velhas até que a minha mãe, eu tive contato com várias delas. A minha geração toda teve! Graças aos curtas de Tom & Jerry, Pica-Pau, Mickey Mouse, Looney Tunes que passavam constantemente na TV e as fitas VHS dos clássicos da Disney como Branca de Neve e os Sete Anões, Dumbo, Pinóquio, etc.

Mas as referências de Cuphead não se limitam apenas ao campo da animação. Algumas se estendem a outras figuras culturais daquele período como o cantor Cab Calloway e os Três Patetas. Além disso, outras chegam a ser até mais recentes como O Gigante de Ferro.

Igualmente fundamental para a estética de Cuphead é ela se pautar bastante no estilo da animação rubber hose. Esse estilo foi conhecido pelos personagens possuírem membros, sobre tudo pescoço, braços e pernas, animados na forma de uma mangueira de borracha que facilitava criar a movimentação desses personagens. Assim obras do Fleischer Studios – como Betty Boop, Koko the Clown, Popeye, etc – são referências importantes para Cuphead. Não só na estética, mas também tematicamente pelo uso de elementos surrealistas e com doses de um humor mais sombrio.

Ah sim! Não vamos esquecer a grande influência do jazz para compor a trilha sonora do jogo, que eu não me estenderei mais porque reconheço que manjo zero sobre o assunto.

Recentemente Cuphead voltou aos holofotes com, além da série animada da Netflix, o lançamento da longa aguardada DLC de Cuphead, The Delicious Last Course. Ela que já tinha sido anunciada lá trás, em 2018, entretanto precisou ser adiada algumas vezes durante seu período de desenvolvimento.

Cuphead, Ms. Chalice e Mugman em The Delicious Last Course
Demorou mais chegou!

Eu planejava jogar a DLC mais ali pra segunda metade de 2023 por conta do meu orçamento. Felizmente eu tenho amigos que por alguma razão gostam de mim e um deles me presenteou com The Delicious Last Course no Natal. Obrigado, deputado! Nem tentem entender porque isso foi uma piada interna. Meu amigo é sensato o suficiente para ficar longe da vida política.

Só que eu não vim aqui hoje para fazer uma crítica da DLC. Meu interesse é abordar outra perspectiva. E não é nem pelo timing, já tô acostumado a jogar e falar sobre tudo fora de hora. É só que não vejo nada muito relevante a adicionar sobre The Delicious Last Course que não foi abordado pela própria crítica de Cuphead. Provavelmente daria para falar de toda a DLC em dois rápidos parágrafos. Fala “duvido”!

– Duvido!

Então tá:

THE DELICIOUS LAST COURSE EM DOIS BREVES PARÁGRAFOS

Em termos de qualidade, The Delicious Last Course está no nível do seu jogo base. Tanto o design quanto a animação dos seus personagens continuam excepcionais, reconstruindo com perfeita execução toda aquela estética dos desenhos dos anos 30, 40 e lá vai bolinha. A DLC entrega mais uma sequência de lutas desafiadoras e criativas com novos chefões. Às vezes frustrantes? Sim, mas que irão entreter aqueles que se tornam fãs do material original. Os desafios do King of Games em especial eu considero uma das adições mais criativas que a DLC faz, usando mecânicas que já tinham sido apresentadas anteriormente em vez de apenas colocar mais fases de run ‘n gun ou então do mausoléu.

Um dos chefões de The Delicious Last Course
As lutas em King’s Leap são uma das melhores partes dessa DLC

Aprecio muito como a Miss Chalice não é introduzida apenas como uma contraparte feminina da carismática dupla de irmãos Cuphead & Mugman – agora na minha mente, graças a série animada, Xicrinho & Caneco – mas sim uma personagem que não apenas é diferente, mas que você joga diferente. Com novos movimentos, ela traz uma novidade melhor do que apenas mais chefões e o roteiro nos dá a chance de vivenciar um pequeno curta dos anos dourados da animação americana. Não esperem uma experiência inovadora, porém também não ache que será mais do mesmo. The Delicious Last Course faz a dosagem certa do que funcionou em Cuphead com algumas adições para complementar a sua gameplay.

MAS ENTÃO… VALEU A PENA ESPERAR?

Por ter tão pouco a falar sobre a DLC, eu quase que desisti da ideia de fazer um texto sobre. Mas aí eu resolvi dar uma olhada no que as outras pessoas acharam a respeito dela. A recepção de tanto a crítica quanto os jogadores foi bem positiva, tal como o jogo base. Contudo eu fui notando um detalhe recorrente entre os comentários e reviews que era sobre como a DLC era curta.

De fato é! Bom, nem tanto. É uma nova área com 7 novos chefões além dos desafios do King of Games. Eu levei umas 5 horas para fechar, isso considerando que tenho a mania de deixar o jogo aberto enquanto faço outras coisas. Se olharmos a média no HowLongToBeat é mais ou menos isso mesmo a duração de DLC, igual a um terço da duração do jogo base. Então, assim, para uma DLC até que ela dura até demais, eu diria que podemos considerar como um quarto capítulo de Cuphead.

Créditos finais de The Delicious Last Course
Tudo termina bem, depois que você quase quebra um teclado de raiva no chefão

Mas o que me pegou foi um comentário aleatório em que a pessoa disse que além de ter achado curta, depois de tanto tempo ela esperava por um jogo completo. E aí que clicou pra mim uma ideia de como abordar o texto de The Delicious Last Course. Mas antes disso vamos revisar rapidinho a linha do tempo de produção dessa DLC:

Cuphead é lançado oficialmente em setembro de 2017. The Delicious Last Course é anunciada durante a E3 de 2018, que ocorreu em meados de junho, com previsão para ser lançada em 2019. Porém logo essa data é movida para 2020 para garantir que a equipe não fosse muito pressionada, lê-se o infame crunch, para entregar a DLC no prazo. Porém² em 2020 o mundo se vê em meio a uma pandemia causada pela COVID-19, que causou mudanças severas tanto na esfera social quanto empresarial e assim a DLC é adiada mais duas vezes. Primeiro para 2021 e então para 2022, vindo a ser lançada finalmente em junho desse ano.

Pois bem, temos aí então um intervalo de 5 anos desde o lançamento de Cuphead até o da sua DLC. E considerando agora a duração da mesma, há de se imaginar porque aquele cara do comentário aleatório e outras pessoas que concordaram com a opinião dele se sentissem parcialmente decepcionados. Eu não sou um deles. E digo até mais, acho que eles estão errados nessa postura. E nisso vejo uma boa oportunidade para discutir sobre até que ponto a espera vale a pena.

Para esse tema, precisamos levar em consideração outros vários fatores ao fazer o julgamento de valor. Como consumidores finais eu acredito que a gente por vezes não reflete sobre o processo de produção de qualquer mídia. No geral a gente só considera o momento em que ela foi anunciada e o dia que ela é lançada, ignorando todos os altos e baixos da sua produção.

Animação tradicional não é algo fácil de se fazer. Não só por conta da habilidade necessária, mas também pelo tempo que leva para se entregar um bom resultado. É um processo longo, que envolve vários estágios e artistas diferentes trabalhando numa mesma sequência. Para se ter uma noção, produzir uma sequência de 60-90 segundos pode levar de 8 até 10 semanas dependendo do estilo e técnicas que se empregam na obra. Por esse motivo que a série animada de Cuphead na Netflix precisou recorrer a outro estilo de animação que não a tradicional, apenas emulando a estética do jogo para conseguir entregar os episódios a tempo.

Vamos pensar agora no jogo focando exclusivamente nos chefões. Cada uma das lutas é essencialmente um curta-metragem feito nos moldes da animação tradiciononal. Agora, com base na informação que eu passei acima, tente imaginar a quantidade de trabalho necessário para terminar uma única luta. Se quiseram mais uma informação, o jogo original contém mais de 50 mil frames diferentes, todos desenhados a mão. Os chefões tem, em média, 3 ou 4 estágios diferentes durante a luta sendo que cada estágio conta com múltiplos ataques cada um com uma animação específica.

Vamos pegar um exemplo específico: o King Dice. Nessa batalha, além do chefão, existem não um, nem dois, nem 3, mas NOVE mini-chefes que você pode enfrentar. Cada um com designs e animações próprias. Não me surpreenderia se dissessem que só essa luta levou 6 ou mais meses para ficar pronta.

King Dice, um dos chefões de Cuphead
Traumas, muitos traumas…

E isso porque a gente só está pensando aqui na parte da animação, ignorando todo o período de criação dos artes iniciais, o design das lutas, a programação, testes e revisão. Eu decidi focar só na animação por conta de uma comparação que eu pretendo fazer… nesse exato instante.

O clássico da Disney, Branca de Neves e os Sete Anões, lançado em 1937 levou cerca de três anos para ser concluído. Durante seus anos de produção, foram quase 1500 artistas em diferentes funções, desde animadores, assistentes e artistas de efeitos especiais, trabalhando no projeto. E isso numa época onde havia muito menos preocupações trabalhistas como temos hoje. Pensa aí, MIL E QUINHENTAS pessoas trabalhando dia após dia, com turnos sabe-se hoje que passavam das 40 horas por semana, para fazer um filme de 83 minutos e eles levaram 3 anos para concluir o projeto.

Sabe quantas pessoas ao todo trabalharam nos dez anos, sim, dez anos; do desenvolvimento de Cuphead? Vinte e cinco!

Equipe do Studio MDHR na Game Developers Conference de 2018
Equipe do Studio MDHR participando da Game Developers Conference, 2018

Não sei quantas pessoas trabalham no Studio MDHR hoje. Com base numas informações espalhadas na internet parece que é algo em torno de 11 até 20 pessoas. Ou seja, nem 2% da quantidade de pessoas que trabalharam oitenta anos atrás para fazer Branca de Neve e os Sete Anões. E nem com todo o avanço tecnológico da nossa época você consegue compensar essa absurda desvantagem numérica.

Quando a gente passa a considerar esses aspectos, esse tempo de cinco anos entre o lançamento de Cuphead e The Delicious Last Course ficam muito mais compreensíveis, né? Eis o porquê de não podermos considerar apenas o intervalo e achar que dava então pra entregar um jogo novo. O contexto acerca da produção de um jogo que emprega as técnicas de Cuphead com a quantidade limitada de artistas e desenvolvedores do Studio MDHR, somado ao fato que houve uma pandemia em meio ao desenvolvimento da DLC, faz toda a diferença nesse julgamento.

TÁ… MAS VALEU A PENA?

Ô filho da p…

Sim, valeu! Por todos os motivos que elenquei no primeiro tópico. Se você se tornou um fã de Cuphead, as chances são que você vai gostar bastante da The Delicious Last Course. Qualquer elogio que você usou para o jogo base vai se aplicar a DLC também. Ainda que ela seja “curta”.

Possivelmente se os eventos de 2020 não tivessem acontecido a gente teria conseguido ela mais cedo, mas de qualquer forma o produto entregue foi de qualidade. E mais uma vez enfatizo que nesses casos é sempre importante considerar todo o contexto de produção de um jogo para não reclamar por besteira.


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