Ainda Estou Aqui: a iminência dos sentimentos de Fernanda Torres

Na imagem tem Fernanda Torres interpretando Eunice Paiva no filme Ainda Estou Aqui. A câmera centra no rosto da personagem, que ela para longe, segurando uma lágrima no olho direito.

Ontem tive a oportunidade de assistir ao aclamadíssimo Ainda Estou Aqui com meu amigo e seu irmão. O filme se tornou centro de discussões há semanas e talvez seja o torrent mais aguardado no Brasil dos últimos anos. Mais ainda depois que o tesouro nacional chamado Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro de Melhor Atriz. Só não adicionei um “merecidíssimo” aqui porque não vi os outros filmes, mas estaria mentindo se dissesse que não fico feliz com a conquista dela. O cinema brasileiro não precisa da validação externa, contudo não dá para vencer o vira-latismo cultural brasileiro sozinhos. Então essa é uma vitória a ser comemorada sim.

Vir aqui e dizer que é um filme bom e que vocês deveriam assisti-lo caso a oportunidade se apresente é chover no molhado. De fato é mais uma jóia para o cinema nacional tão desconhecido pela sua própria audiência. Daria para rasgar muitos elogios aqui, passando várias vezes pelo fenomenal design de produção para dar vida ao Brasil dos anos 70 na sua estética, música e violência militar. Mas nenhum elogio é mais necessário do que pela atuação da Fernanda Torres, que é a força mais arrebatadora desse filme.

Numa anedota pessoal, sempre que eu e meu amigo vamos ao cinema aquele pequeno intervalo entre os assentos e a saída da sala se preenche com comentários do filme que acabamos de assistir. Com Ainda Estou Aqui foi diferente. Eu, ele e seu irmão permanecemos no mais profundo silêncio. Porque não tinha nada a ser dito, não depois da experiência que passamos. Só podíamos pensar em todos os grandes momentos que a Fernanda Torres entregou ao longo desse longa-metragem. De qualquer forma, cá estou eu para tentar pôr em palavras o porquê desse filme mexer tanto com a gente.

A esse ponto todos já devem conhecer a história do filme, mas não custa nada fazer uma breve introdução, né?

Ainda Estou Aqui é inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de da personagem central do filme, Eunice Paiva (interpretada pela já citada Fernanda Torres). Não li o original, então meus comentários serão apenas a respeito da adaptação. Com uma narrativa autobiográfica, a história conta a infância de Marcelo sob a perspectiva da sua mãe durante um dos eventos mais traumáticos da família: a morte do pai, o ex-deputado Rubens Paiva. Rubens – interpretado por outro tesouro nacional, Selton Mello – foi um deputado federal do PTB. Eleito em 1962, Rubens acabou deposto após o golpe militar de 64 que deflagrou a ditadura militar no Brasil. Sete anos depois do golpe, Rubens foi levado pelos militares para um “depoimento” que culminou em sua morte no quartel em que era mantido e torturado.

O filme cobre os eventos desde as semanas que antecedem a prisão de Rubens, todo o esforço de Eunice para descobrir o que aconteceu com o marido enquanto mantém sua família segura e as décadas que sucederam até o governo enfim reconhecer a sua morte.

Os primeiros minutos se dedicam a nos apresentar os Paiva, uma típica família de classe média carioca vivendo suas vidas normalmente. Entretanto é uma normalidade cheia de aspas. O filme faz questão de nos lembrar há todo momento que essa é uma história que se passa apenas três anos depois do terrível AI-5, que marcou o início do período de maior violência da ditadura militar. Comboios do exército passam ao fundo. Conversas precisam acontecer entre quatro paredes e de voz baixa. A paranoia invade a vida das pessoas pouco a pouco.

Contudo, o mais importante nesse momento é a dinâmica de Eunice e Rubens. Ainda que a carreira da Fernanda Torres passe por uma diversidade de filmes, novelas e séries, nós a associamos mais aos seus papéis cômicos como a Vani em Os Normais e a Fátima de Tapas & Beijos. Portanto, ela toca esse primeiro ato com muita leveza e graça que nos faz pensar imediatamente naquela Fernanda. É uma mãe feliz, mesmo que as circunstâncias do país não fossem das mais ideais.

Ao mesmo tempo, o personagem do Rubens se beneficia muito da personalidade do Selton Mello que nos faz ter uma simpatia instantânea pelo seu espírito de paizão. Porém há uma diferença gritante nele que, por mais que ele seja todo bonachão, notamos que o personagem veste uma máscara. São pequenos momentos em que seu semblante fica sério onde temos a certeza que algo lhe consome por dentro.

E aí vem a virada dramática na histórica, quando os militares vêm buscar Rubens para o “depoimento” do qual ele não irá voltar. O tom do filme vai mudando conforme a tensão aumenta, ao mesmo tempo que ocorre uma mudança em Eunice. Não temos mais aquela Fernanda que nos fez rir como Vani ou como Fátima. Agora outra Fernanda entra para os holofotes.

Um dos poucos pensamentos que eu consegui verbalizar naquela saída do cinema foi em relação a atuação da Fernanda Torres. A gente adora quando os atores dão aquela “explosão”, né? Quem não ama quando o Gary Oldman dá um dos seus gritos? Porém esse momento nunca acontece em Ainda Estou Aqui. O que te ganha aqui é como a Fernanda consegue representar a Eunice se segurando, como ela fica apenas na iminência de ter um sentimento. A personagem não pode derramar uma lágrima, não pode dar um grito, não pode se entregar a suas emoções nem por um segundo. Porque Eunice sabe que tudo isso vai gerar alguma consequência terrível para ela ou, pior, para seus filhos. Então Eunice se segura e veste a mesma máscara que seu marido estava usando.

Dá para pinçar muitos bons exemplos, mas a cena que me marcou bastante não é uma das principais do filme. Eunice vai até o banco tentar sacar um dinheiro para pagar a empregada e também para manter a família. Chegando lá, o gerente diz que não pode liberar o saque sem a assinatura do Rubens. Assim ela só pode dar um sorriso amarelo e pedir para ele trocar alguns dólares e libras que ela tinha guardado.

Esse é um momento que mostra muito bem o que tem de tão fenomenal na atuação da Fernanda Torres e também na construção da personagem da Eunice. É evidente o quanto ela quer gritar naquela cena. Você escuta o “Como eu vou pegar a assinatura do Rubens se vocês prenderam ele, caralho?!”. Só que o grito não vem e nunca vai vir. A prisão de Rubens ainda era um dos muitos segredos que os militares escondiam do povo e tudo que Eunice conseguiria ali é voltar para o quartel em que a mantiveram por umas semanas.

Aliás, essa é uma das sequências mais aterradoras de todo o filme. É fácil você chocar sua audiência mostrando violência. Ainda Estou Aqui vai por outra vertente. Nós apenas escutamos os gemidos de dor, os sons de tortura, os pedidos de socorro. Há apenas um rápido vislumbre de uma prisioneira sendo afogada durante um “depoimento”. Todo o resto fica a cargo da nossa imaginação.

São poucas as passagens em que Eunice tem a permissão de dar vazão aos seus sentimentos, geralmente afastada dos olhos da sua família. Uma das primeiras coisas que ela faz ao voltar do cativeiro, é ir até o banheiro para se limpar. Eunice se esfrega com tamanha intensidade que ficam marcas vermelhas pela sua pele. A frustração, a raiva, elas escapam brevemente naquele banho. Contudo logo uma das filhas vem recebê-la e assim ela passa a conter seus sentimentos de novo.

Outro momento é quando atropelam o cachorro da família que, de certa forma, servia como uma memória do pai. Num pequeno momento de raiva, Eunice vai até o carro dos milicos que os vigiam, soca o vidro, grita, manda eles irem embora. Contudo, novamente, quando ela se vira para encarar a família ela engole toda sua raiva, tentando fingir que aquilo foi apenas mais um dos reveses da vida.

É um choro que não pode ser chorado, um grito que não pode ser gritado. Isso define a personagem da Eunice pelo resto do filme. A sua impossibilidade de expressar qualquer emoção é um reflexo da impossibilidade de se expressar em tempos de ditadura. A verdade precisa ser engolida a muito contragosto. O problema que ela nunca termina de desces. A vontade fica lá, entalada na garganta, tentando sair pela boca ou pelos olhos. Tudo que ela pode fazer é dar um sorriso, uma das poucas manifestações de força e protesto que ela pode fazer em frente a um governo sanguinário que lhe tirou o marido e, se quiser, pode tirar os filhos.

O mais triste é como essa dificuldade de se expressar acaba se mantendo até mesmo décadas depois da ditadura terminar. Existem dois saltos no tempo, um para 1996 quando Eunice enfim consegue um atestado de óbito do marido. Depois de tudo que a família passou, ela ainda não consegue deixar cair uma lágrima. Como a própria diz, chega a ser um absurdo ela ter que sentir alívio por um documento que prova que seu marido morreu.

O segundo salto no tempo nos leva para 2014, ano em que ocorreu a Comissão Nacional da Verdade que investigou muitos dos crimes ocorridos durante a ditadura. Agora temos uma Eunice já no fim da sua vida – interpretada por mais um tesouro nacional, Fernanda Montenegro – quando foi diagnosticada com Alzheimer. Durante um almoço em família, deixam Eunince em frente a TV enquanto passa uma reportagem sobre a ditadura. Algumas vítimas são mencionadas, incluindo seu marido. Mais uma vez não há lágrimas, não há soluços, não há gritos. Apenas um lábio que se mexe, pálpebras que tremem. Mas no fundo daqueles olhos a gente sente toda a dor que foi deixada ali e nunca pode sair.

Ainda Estou Aqui é um lembrete de tudo que a ditadura pode te tirar. Ela tira seus amigos, ela tira seus familiares, ela tira sua liberdade, ela tira sua voz. E, mesmo que ela não tire a sua vida, ela consegue tirar sua capacidade de expressar a sua dor.


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