Beholder: até onde você iria?

Fiz este texto de Beholder há dois anos quando ainda tinha perfil no Medium. Particularmente é um que tenho imenso orgulho, pois o considero um dos melhores que eu já escrevi. Eu testei um formato diferente nele. É meio uma review e é meio um conto, por isso que não coloquei na seção de Críticas. Meu objetivo foi de transmitir o sentimento que Beholder me fez ter ao jogá-lo e no final gostei muito do resultado. Espero que curtam também e tenham uma boa leitura!


Cena introdutória de Beholder

Sou o primeiro a entrar no prédio. Minha família vem logo atrás. Estávamos todos cansados depois de uma longa viagem em direção a nossa nova vida. Na nossa chegada somos recepcionados pelo antigo senhorio, a quem eu iria substituir. Mas ele não nos deu boas vindas, pois o vemos sendo arrastado para o camburão em frente a portaria por dois policiais brutamontes. Minha esposa e filhos assistem toda a cena horrorizados enquanto me mantenho calmo. Pelo lado de fora, pelo menos.

Depois disso o meu chefe, frio e impassível, me entrega a minha função sem qualquer cerimônia: vigiar (mas que todos sabemos que é um eufemismo para espionar) os meus inquilinos e reportar qualquer atividade suspeita. Naquele momento eu tive duas certezas: faria o que fosse necessário para proteger a minha família e o mínimo possível para não me comprometer com aquele governo totalitário. No que eu pudesse, faria vista grossa e tentaria sempre ajudar meus inquilinos. Estávamos todos juntos nesse barco, mas minha família sempre viria em primeiro lugar.

A princípio eu consegui me ater aos valores morais que estabeleci, numa vã tentativa de manter a minha humanidade intacta. Como fui ingênuo! Mesmo xeretando nos pertences dos moradores e instalando câmeras nos cômodos – afinal eu tinha que mostrar algum serviço para não acharem que eu era contra as ações do governo – me contive em roubar os pertences valiosos que encontrava numa gaveta ou num armário. O máximo que fazia era entregar os perfis dos inquilinos para ganhar um dinheirinho extra no final da semana, mas sem colocar nada que os comprometesse fato.

Claro que, quando chegou a ordem, eu precisei reportar o homem que morava no do apartamento 2. Nesse caso, entretanto, ele não era flor que se cheire: um traficante que ousou empurrar a minha garotinha na escada além de ameaçar minha família. Precisei tomar providências, então o reportei sem culpa! Recebi uma recompensa e ainda a satisfação de tornado o prédio um local mais seguro para todos.

Mas então chegou uma segunda ordem do governo. Fui obrigado a expulsar Klaus, o humilde vendedor de tabaco do apartamento 1. Klaus, o mesmo homem que me ajudou a conseguir uns livros para o meu filho estudar. Deveria ser um dilema, porém não pensei duas vezes. Fiz o que estava ao meu alcance para garantir que ele e a esposa escapassem com segurança da cidade ao entregar a eles tickets para um cruzeiro que recebi. Eu poderia tê-los vendido por uma boa grana, mas os Schimmers precisavam mais do que eu.

Nesse meio tempo, minha filha mais nova ficou doente e eu precisava conseguir, de alguma forma, aspirinas para ela. Graças a Deus – se é que ainda existia Deus nesse lugar – a velhinha do apartamento 3, Rosa, disse que me daria um frasco que ela tinha em casa. Mas é claro que não seria de graça. Rosa me pediu que conseguisse um casaco para ela. Comprei um por $265 com o vendedor que ficava em frente ao meu prédio. Felizmente, eu tinha dinheiro mais que suficiente para comprá-lo e troquei pelo remédio. Entreguei para minha esposa e ela comemorou. Pronto, nossa garotinha estava enfim segura!

Foi o que eu pensei…

Algum tempo depois, já nem entendo mais a passagem dos dias, minha esposa chega com mais uma notícia ruim. O remédio não tinha funcionado e nossa filha precisava de um médico. Na mesma hora corri até o novo morador, um doutor que havia se mudado para o apartamento vago do traficante, e ele de muito bom grado examinou minha filha.

O resultado saiu rápido: ela precisava de outro remédio. Que custava $20.000!

Eu tinha um pouco mais da metade disso guardado. Nessa hora, me vi catando tudo que tinha no apartamento para vender, na esperança de atingir a quantia necessária. Até mesmo fui na lavanderia e peguei todas as meias que encontrei nas máquinas. Entretanto ainda faltava muito, muito dinheiro pra conseguir os vinte mil.

Então comecei a ter umas ideias. Alguns pensamentos que eu, até o momento, não havia tido ou se tivera eu havia ignorado. Tudo naquela esperança que eu seria capaz de me ater aos meus valores. Lembrei daqueles pertences valiosos dos meus vizinhos. Ora, eles precisavam tanto daquilo? Tinha umas coisas boas que eles poderiam viver sem e todo dia eles saíam para trabalhar deixando o apartamento livre. Eu sabia disso porque estava sempre os observando. Então, com muito cuidado para não ser pego pela polícia, entrei nos apartamentos com as minhas chaves e peguei algumas coisas. O suficiente para poder salvar a minha filha. Era só dessa vez, jurei pra mim mesmo.

Isso não durou nem um dia.

Enquanto eu esperava o médico chegar do trabalho para entregar o dinheiro, meu filho se aproxima e diz que precisa de $15.000 para não ser expulso da faculdade. E agora? Como vou juntar mais essa grana? Sem condições. A não ser…

Aquela mulher que eu apresentei para o médico, que dizia ser parente de dona Rosa. Falei com a senhora e ela me disse que não via a sobrinha há muito tempo. Não levou muito tempo para descobrir que aquela mulher era na verdade uma impostora. Logo depois, ligo para o Ministro da Ordem e ele confirma. A descrição da mulher bate com o perfil de uma pessoa procurada pela polícia. A melhor parte é que há uma recompensa de $2.000 pendendo sobre a sua cabeça. Hmm…

Decido entregá-la imediatamente para polícia, mas não sem antes extorquir uns bons cinco mil ela alegando que não iria entregar sua identidade às autoridades. Algo que fiz quase que no mesmo momento que ela me entregou o dinheiro. Mas tudo bem, afinal ela era uma criminosa. Tudo bem tirar uma grana extra dela, não é mesmo?

NÃO É MESMO?!

Fui recebendo novas missões, tanto do governo quanto de um grupo revolucionário e isso trazia mais dinheiro pra casa. Consegui ajudar meu filho também, só que a alegria durou pouco. Minha filha não melhorava e logo eu precisava arranjar outro remédio. E agora o moleque também me diz que quer fugir do país com a namorada. Mais dinheiro. $35.000 somando tudo!

Agora eu já não via mais problema em chantagear o contramestre da barca de carvão do apartamento 4 e depois reportá-lo para a polícia e só para eu ficar com toda a sua mobília. Muitos dos seus pertences passaram a valer bastante depois que se tornaram ilegais. Eu também não via mais problema em plantar esses itens ilegais no casal de velhinhos do apartamento 3 – sim, daquela mesma velhinha que me ajudou com as aspirinas para minha filha antes – porque eu percebi que se eu plantasse uma evidência na casa deles eu poderia chantagear os dois pelo mesmo “crime”.

Depois disso também não vi problema algum em vender a vida de um funcionário do governo para os revolucionários, pois assim eu ia conseguir o remédio para minha filha de graça. Menos $15.000 que eu precisava guardar e podia ajudar meu filho com tranquilidade. Ok, agora minha família estava em segurança, certo? Acabou as chantagens, os roubos, podia focar em ajudar os inquilinos novamente…

Mas e se rolasse outro problema? E se minha filha ficasse doente de novo? Seria melhor eu ter um dinheiro guardado pro via das dúvidas. Novas pessoas se mudaram para os outros apartamentos e eu podia vê-las cometendo infrações o tempo todo. Então eu continuei roubando, plantando evidências, chantageando. Nem mesmo o doutor que examinou minha filha escapou. Era ele sair pra trabalhar que eu entrava no seu apartamento pra plantar uma gravata azul ou uma maçã, que sabe-se Deus – agora eu espero mesmo que Ele não esteja aqui – porque o governo proibira, só para extorqui-lo quando ele chegasse.

Até mesmo convenci uma filha matar a sua própria mãe, uma cientista que desenvolvia um gás para ser utilizado na guerra. Gostaria de dizer que fiz isso pensando no bem maior, em todas as vidas que eu estaria salvando ao impedir que essa arma fosse criada. Eu fiz isso porque vi que ela tinha no seu apartamento umas moedas estrangeiras que valiam 10 mil no mercado negro e assim quando a polícia viesse prender a garota eu poderia ficar com tudo e revender. Não podia nem dizer pra mim mesmo que foi dois coelhos com uma cajadada só, eu só queria as moedas mesmo.

Bom, eventualmente eu consegui tirar minha família toda daquele lugar com o dinheiro que consegui guardar. Na verdade juntei até mais que eu precisava. Muito mais.

Mas tudo bem, eu consegui um final feliz, não é mesmo?

SIM, É UM FINAL FELIZ!

Salvei a minha filha conseguindo os remédios pra ela!

Também salvei o meu filho levando ele e a sua namorada pra fora do país!

E minha esposa? Também a salvei mantendo longe de qualquer perigo!

Eu salvei minha família inteira!

Diabos, pode se dizer que salvei até o país ajudando a resistência derrubar o governo!

Mas e a mim mesmo?

Salvei?

Carl Stein, protagonista de Beholder

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