O texto de Haunting Ground a seguir foi publicado originalmente anos atrás no meu falecido perfil do Medium. Resolvi trazê-lo para cá por conta de um futuro texto sobre Halloween, que devo publicar no final do mês, pois dedico uma seção desse artigo ao filme.
Nos últimos dez anos o terror se tornou um dos meus gêneros favoritos dentro da ficção, tanto no cinema quanto nos vídeo games. Estranhamente não sou chegado em literatura de terror, mas isso não vem ao caso hoje. Isso é em parte por questões terapêuticas. Na minha infância eu era uma criança MUITO medrosa, no nível de não conseguir assistir as chamadas de TV de filmes de terror. Contudo, hoje em dia gostar tanto desse gênero acabou virando um ponto fraco meu. É muito fácil me tirar do sério com comentários que são, por falta de uma expressão melhor, COMPLETAMENTE IMBECIS a respeito de qualquer filme que eu gosto muito.
O jeito mais fácil de me triggar costuma ser com um reducionismo bobo de “terror = assustar”. Geralmente ele é acompanhado da lógica de “esse filme é ruim porque nem dá susto!”. Eu nem vou entrar na questão da subjetividade do que é assustador e do que não é porque essa é uma discussão que nunca leva a lugar algum. Portanto vou me ater a minha definição pessoal do objetivo do terror em meio aos demais gêneros da ficção.
A intenção de uma obra de terror não é necessariamente deixar a sua audiência com medo. Eu vejo o terror num campo mais amplo que é o de causar um desequilíbrio na sua audiência e isso por se feito numa gama de sentimentos: angústia, desconforto, nojo, inquietação, repulsa, choque e, eventualmente, medo. Para citar um exemplo, O Babadook é um filme de terror que adoro (e motivo de uma discussão que dura dois anos com uma prima minha). Contudo ele nunca me deixou remotamente assustado. Isso porque o que me marcou foi toda a angústia de ver uma família sofrendo pelo luto da morte do pai.
Essa mesma lógica eu aplico aos jogos. Não é sempre que um jogo me deixa com medo, no geral o sentimento que eu mais tenho com esses jogos é de ansiedade. Com esse gancho eu gostaria de falar um pouco sobre Haunting Ground.
O SUBESTIMADO HAUNTING GROUND
Haunting Ground foi lançado pela Capcom na primeira metade de 2005. O jogo era um sucessor espiritual de Clock Tower dada as semelhanças na jogabilidade. Ajuda também o fato que a Capcom ter coproduzido com a Sunsoft o Clock Tower 3 em 2003. A recepção de Haunting Ground foi bem mista e, para piorar, ele chegou nas lojas alguns meses depois de um dos grandes clássicos modernos de action horror, Resident Evil 4.
Felizmente a história fez justiça com o nome de Haunting Ground. Com o passar dos anos ele conseguiu conquistar um nicho de fãs – não sei se o suficiente para dar-lhe o status de cult – que reconheceram os méritos do jogo. Existem muitas qualidades em Haunting Ground, como a sua atmosfera e os fortes temas sexuais e voyeurísticos (não sei como consegui escrever essa última palavra sem olhar no Google) sobre objetificação que permeiam a gameplay.
Com isso, hoje há um consenso maior de que o título foi imensamente subestimado na sua época de lançamento. Inclusive tem um vídeo muito bom da Suzi Hunter que recomendo assistirem. Depois de terminarem de ler o texto, claro!
Mesmo que Haunting Ground vem ganhando mais atenção, não posso assumir que todo mundo o conhece. Então vamos a um resumo básico:
No jogo, controlamos a jovem Fiona que, após um acidente de carro que mata seus pais, acorda numa jaula dentro de um misterioso castelo. Fiona precisa encontrar uma forma de escapar e tem como ajuda Hewie, um cão pastor-branco que ela encontra acorrentado numa árvore do jardim. Em cada seção do castelo Fiona é caçada por algum personagem que vive no castelo. Para sobreviver ela precisa: correr, se esconder e, em alguns momentos, usar objetos ao seu redor para deter seus perseguidores temporariamente. Fiona pode dar ordens a Hewie para pegar itens e ajudá-la na resolução de alguns puzzles. O cachorro também pode segurar os perseguidores por alguns segundos para que você tenha tempo para fugir.
Se eu fosse escolher um sentimento para definir a experiência de Haunting Ground eu iria com o supracitado ansiedade. Você é frequentemente bombardeado com doses de adrenalina sempre que um perseguidor surge na tela e você precisa dar um jeito de fazê-lo te perder de vista. Uma vez que o perseguidor desaparece e você volta a explorar o mapa normalmente. Contudo a preocupação com o próximo momento que ele pode reaparecer fica com você o tempo todo. Dessa forma nós ficamos apreensivos com qualquer barulho. O mero ato de passar por uma porta é cheio de tensão porque você pode dar de cara com o perseguidor no meio do corredor.
Porém tem algo a mais nessa história. Enquanto eu jogava Haunting Ground, notei que eu me sentia muito desconfortável em vários mapas do jogos, mesmo quando não havia a menor possibilidade de um perseguidor estar nas redondezas. Era um frio na espinha que me acompanhava toda vez que eu entrava numa sala ou cruzava um dos corredores do castelo. Não foi difícil descobrir a origem desse desconforto porque eu já o senti, e acredito que muitos de vocês – que espero que ainda estejam lendo esse texto – também já sentiram em vários o momentos da vida: o medo de estar sendo observado!
Em 197,8 John Carpenter um dos seus maiores clássicos, Halloween, e essa interrupção no fluxo de texto tem um bom motivo. Tenham paciência!
HALLOWEEN E A PERSPECTIVA DO STALKER
Halloween é muito importante na história do cinema de terror, tanto americano quanto global, por ser um dos percursores dos slashers. Não que ele fosse o primeiro, porém foi um dos principais filmes a estabelecer e popularizar muitas das convenções do gênero. Halloween até hoje é lembrado como uma das referências mais influentes e ajudou a fomentar toda uma linha de filmes nos anos seguintes.
Para as audiências mais modernas eu imagino que ele não vai ser tão efetivo tendo em vista qual o padrão de violência e gore que temos hoje. Também não tenho dúvidas que muitos acharão Halloween um filme muito parado e pouquíssimo assustador. Contudo, pra mim ele é uma das melhores aulas desde os tempos hitchcockianos de como se criar tensão e suspense. E isso tem tudo a ver com a forma que o John Carpenter posiciona e move a câmera durante o filme.
A icônica introdução do filme começa com uma visão em primeira pessoa onde a câmera são os olhos de um personagem que ainda não conhecemos. Isso é uma técnica muito comum em filmes de terror para estabelecer a presença do assassino sem revelá-lo.
Só que esse não é bem o motivo do John Carpenter abrir seu filme. Nos minutos seguintes, revela-se logo de cara a identidade do assassino, Michael Myers, que se tornaria um dos maiores símbolos dos slashers americanos dos anos 70 e 80. Halloween começa dessa forma porque, ao nos mostrar a visão do Michael Myers em primeira pessoa, ele estabelece que a câmera não irá funcionar apenas como uma janela pela qual assistimos a história se desenvolver, mas como por vezes ela será o ponto de vista do vilã.
Com essa ideia estabelecida, o Carpenter passa a afastar o nosso ponto de vista dos personagens. Em vários momentos do filme a câmera fica numa distância significativa. Isso ocorre com os personagens ou andando na direção dela…
… ou se afastando …
… ou passando há alguns metros de distância em frente a câmera. Essas posições são intencionais para se criar a impressão que há alguém ali observando essas personagens.
Para reforçar isso, em alguns momentos o Carpenter faz com o Michael Myers apareça em frente a câmera bloqueando parte da visão, confirmando a sensação que havia alguém ali a espreita. O diretor repete essas ocorrências diversas vezes ao longo da primeira metade de Halloween, porém depois ele passa a mostrar apenas os personagens. Daí que nasce a tensão no filme, porque agora começamos a questionar se o Michael está ali presente ou se é apenas a câmera.
Essa dúvida cria na nossa cabeça a mesma paranoia que acomete a protagonista do filme, Laurie Strode, e nos vemos olhando para todos os cantos da imagem procurando o Michael Myers na sombra. O terror então não passa de ser apenas o medo de estar sendo observado e sim de saber que está, porém sem a menor noção em que lugar o observador se encontra.
O exemplo de Halloween nos mostra como o posicionamento da câmera é uma ferramenta muito útil para manipular a percepção da sua audiência. Da mesma forma, Haunting Ground usa a câmera do jogo para produzir um sentimento semelhante que eu considero que ainda tem mais impacto por contato das particularidades dessa mídia.
O OBSERVAR E O SER OBSERVADO EM HAUNTING GROUND
Jogos tem essa qualidade de interação com o seu universo que cria uma conexão muito mais forte entre a obra e a audiência, o jogador. Isso também pode acontecer nos filmes, porém temos uma enorme facilidade de nos desassociar do que acontece na tela. Nos jogos é oposto, frequentemente nos sentimos parte daquela história por estar controlando as ações dos personagens. Haunting Ground não é nenhuma exceção e diria que um dos melhores exemplos de como a interação eleva a experiência num nível que não seria possível em outra mídia.
Como eu mencionei lá no começo, o jogo tem fortes temas sexuais onde a protagonista Fiona é constantemente objetificada pelos demais personagens. Não apenas no sentido sexual. Em alguns momentos ela é sim vista como um objeto de desejo, mas também ela é tratada com uma mera ferramenta para o vilão conseguir atingir seus objetivos.
Exemplificando com um dos meus casos favoritos do jogo: Daniella, a personagem que persegue Fiona durante a segunda seção do castelo. Daniella é uma mulher que teve toda sua sexualidade removida para que ela se torne uma serva sem sentimentos. Isso acaba fazendo-a alimentar um ódio e inveja pela feminilidade de Fiona. Por isso ela tenta conseguir o Azoth, um elemento alquímico que Fiona carrega para conseguir a habilidade de sentir cheiros, gostos e, claro, prazer.
E o que torna Daniella interessante dentro da trama é que ao conhecer sua história nós percebemos que ao mesmo tempo que ela é uma malfeitora (meu Deus quem fala malfeitora?), ela também é uma vítima que sofreu diversos abusos físicos e traumas psicológicos dentro do castelo. E escolhi esse exemplo porque elemento de vítima-vilã vai ser importante para gente logo a frente.
Os temas sexuais já são suficientes para deixar alguns jogadores desconfortáveis, mas Hauting Ground faz algumas adições que tornam isso ainda mais eficiente e, tal como em Halloween, é uma questão do posicionamento e movimentação da câmera.
Na maior parte do jogo, você fica com a clássica visão em terceira pessoa usando câmeras fixas com as doss tempos de Resident Evil e Alone in the Dark. No contexto particular de jogos de terror, esse tipo de câmera é eficiente para você criar alguns sustos pontuais. Elas escondem os inimigos nos pontos cegos de cada câmera e assim mantém o jogador sempre em estado de alerta.
Porém a perspectiva do jogo muda dependendo da situação. Quando Fiona se esconde embaixo da cama ou uma cadeira larga, por exemplo, o jogo muda para visão em primeira pessoa. Aqui a intenção é fazer o jogador se sentir na mesma posição da vítima e não um mero observador. Nesses momentos, você deixa de controlar a personagem temporariamente aguardando o perseguidor ir embora.
Voltando a visão em terceira pessoa, existe um diferencial em Haunting Ground: as câmeras não são inteiramente fixas. Geralmente elas se giram acompanhando a movimentação de Fiona, sem necessidade de haver um corte para um outro ângulo.
Em outras ocasiões, principalmente em corredores muito longos, a câmera “corre” ou atrás de Fiona ou ao seu lado. E também há os casos em que rola um pequeno zoom out quando ela atravessa de um ambiente para outro.
Agora queria trazer a minha experiência de jogo para o texto. Quando adquiri consciência dessa movimentação da câmera, no sentido que passei a interpretar uma intenção por trás desse movimento e não tomá-lo apenas como uma mecânica comum do jogo, me ficou claro o porquê de eu ter um constante desconforto ao jogar Haunting Ground.
Logo no início do jogo, se estabelece através de uma cutscene que Fiona está sendo observada por uma figura misteriosa que a espia pelas paredes e quadros.
Ao estabelecer esse elemento dentro da sua narrativa, o jogo acaba por dar um novo significado aos movimentos que a câmera faz e por consequência altera a nossa percepção do nosso papel dentro dessa história.
Na maior parte do tempo, você se sente como Fiona. Ou seja, a vítima. Você está lá correndo desesperado de um lado ao outro tentando encontrar uma escapatória daquele pesadelo. Porém, naqueles segundos em que a câmera se move, você, ainda que brevemente, assume um novo papel. Quando a câmera “corre” atrás de Fiona você começa a se sentir como um dos seus perseguidores. Também quando essa mesma câmera se mexe igual uma pessoa virando o pescoço, ou quando focaliza na personagem ao entrar no cômodo, você se coloca na mesma perspectiva da pessoa que espiona Fiona por trás das paredes.
Jogar Haunting Ground é estar numa alternância constante. Você é a vítima, você é perseguidor. Você observa, você é observado. O jogo consegue transmitir muito bem o sentimento de desespero em nós através da sua jogabilidade, mas são esses detalhes nas jogadas de câmera que pra mim tornam a sua gameplay tão eficiente em construir uma atmosfera perturbadora. Utilizando muito bem os temas voyeurísticos e tornando os limites entre ser observado e ser quem observada, Hauting Ground se sobressai no quesito de deixar sua audiência completamente desconcertada.
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