No início do mês passado eu publiquei na minha série de Game Cuts um texto sobre Ariela. Esse é um pequeno RPG baseado em turnos, feito no RPG Maker 2k de autoria do mogezilla. Ele está há um tempo nas comunidades de RPG Maker e fez Ariela para participar de uma game jam meses atrás. Por isso que o jogo é bem curto, coisa de duas horas de gameplay no máximo. Apesar disso eu vi potencial em Ariela para falar sobre battle design e, obviamente, para falar de RPG Maker também. Quem já me acompanha há um tempo sabe como as comunidades de RPG Maker foram muito importantes para mim no passado.

Hoje eu já não acompanho elas porque meu interesses foram para outros caminhos. Entretanto recentemente eu tenho revisitado esse universo pouco a pouco, um jogo por vez. Por ter curtido Ariela, eu resolvi procurar um pouco mais da história do mogezilla. Foi assim que eu fiquei sabendo que ele tem um projeto em desenvolvimento chamado Lionheart e também achei outro jogo que ele fez para outra game jam desse ano: Abraxas.

Abraxas, jogo de terror curto feito pelo maker brasileiro mogezilla
Pequeno jogo de terror do mogezilla para a TocaJam 2023

Assim como Ariela, Abraxas é um jogo curto. Porém esse aqui é do RPG Maker 2k3 e não tem a jogabilidade de RPGs. Ele é um jogo de aventura e terror que toma inspirações nos slashers dos anos 80 e 90 como também os trabalhos do James Wan e o Junji Ito. Mas diferente de Ariela, o Abraxas não chega a ser um jogo tão satisfatório. Apesar de uma atmosfera eficiente, o jogo não se sobressai nem em roteiro e nem nos puzzles. Claro que o fato do mogezilla ter poucos dias para terminar esse projeto para a game jam influenciaram nesse resultado. Por isso que tentar fazer qualquer crítica mais elaborada seria um tanto injusto.

Porém tem algo em Abraxas que e eu acho que vale muito a pena de se destacar.

Nele o mogezilla adicionou um sisteminha que podemos dizer que não é muito convencional para o que estamos acostumados a ver no RPG Maker. No jogo você tem 4 personagens controláveis que você pode alternar a qualquer momento apertando os botões 1, 2, 3 e 4. Cada personagem tem algumas habilidades específicas e você pode trocar itens entre eles. Isso me lembrou um clássico do NES que eu adoro muito que é Sweet Home. Hoje ele é chamado de avô do survival horror e teve uma influência direta no desenvolvimento de Resident Evil. A jogabilidade dele segue o mesmo conceito de controlar um conjunto de personagens que você pode dividir em grupos menores, além de ter que gerenciar o inventário de cada um deles.

Existem outros jogos com esse tipo de mecânica então teoricamente eu não deveria ficar tão impressionado com Abraxas, certo? Mas eu fiquei. E bastante! Contudo isso não se deve a mecânica em si, mas ao fato do mogezilla ter feito isso no RPG Maker 2k3. Foi aí que virou a chavinha na minha cabeça e eu achei sobre o que poderia falar num texto. Portanto, Abraxas aqui só vai servir de gancho, pois esse foi mais um jogo que aumentou a admiração que eu sinto pelos makers.

Não sei se esse termo ainda é utilizado, mas era bem comum no tempo que frequentei os fóruns de RPG Maker. Ou então eu só tô sofrendo um Efeito Mandela. Claro que makers são game developers / designers como quaisquer outros. Mas eu gosto de usar esse apelido porque acredito que exista uma cultura bem particular e distinta no desenvolvimento de jogos usando o RPG Maker. Desde que eu o conheci anos atrás, eu tenho um grande respeito pelo pessoal que tenta fazer seus projetos nessa ferramenta. Tem nem haver com a habilidade, mas sim o espírito sonhador dos membros dessas comunidades que eu acho muito cativante.

RPG Makers: 2k e 2k3, pessoalmente os meus favoritos
Sonhar é de graça e o RPG Maker era bem caro

Reconheço que existem pessoas ali que se sobressaem demonstrando um olhar e uma capacidade artística fenomenal. Fazer uma propaganda aqui do Cronus, que conheci nos tempos da Centro RPG Maker, que é um tremendo de um artista que naqueles tempos lá já trabalhava na empresa de Terraria.

Infelizmente nem todo mundo consegue chegar no mesmo lugar que o Cronus. A maioria dos makers sacrificam tempo e esforço em seus projetos movidos mais por uma paixão genuína em ser capaz de fazer seus jogos, aprendendo tudo na raça e nem tendo expectativa de ganhar dinheiro ou reconhecimento com suas criações. Afinal esse é um problema que eu diria até maior do que outros jogos indie. Poucos jogos de RPG Maker furam a bolha, você precisa ser um LISA: The Painful para tal. Maioria dos projetos ficam presos a suas próprias comunidades, muitos desparecendo quando elas deixam de existir. Mas isso é conversa para um texto no futuro!

Por conta de todos esses reveses que eu tenho muito respeito pelos makers. E dentre eles tenho uma admiração extra especial por aqueles que utilizam e ainda utilizam as versões mais antigas do RPG Maker: 2k e 2k3. Admito que tem um pouco de nostalgia envolvida afinal foi nessas versões que eu conheci a engine. Mas o que mais me influencia é porque tanto o 2k quanto o 2k3 são ferramentas muitíssimo mais limitadas. O RPG Maker em si já não tem um escopo muito grande afinal ele é feito com um propósito específico para o desenvolvimento de RPGs. Porém as versões mais recentes contam com funcionalidades que dão espaço para criar sistemas mais complexos que no 2k e 2k3 seriam difíceis de executar. Qualquer um que escolher essas versões para seus projetos já vai começar com um trabalho maior para dar vida a suas ideias dependendo de quais sejam.

Eu não sou um grande conhecedor assim de jogos de RPG Maker. E para piorar muito dos que eu conheço já nem existem mais. Mas tem vários títulos que eu me recordo que ainda carrego muita admiração. Por exemplo, tem o Heart and Soul que é um jogo de uma maker brasileiro, o Kamui, que foi ativo lá pelos anos 2000. E um pouco antes dele também teve o Kamau. esse um maker inglês, se não me engano, responsável pela clássica trilogia de Legion Saga. Outro jogo que citaria também, embora não tenha texto sobre ele, é o Sunset Over Imdahl criado pelo Teo Mathlein. Acho que nessa lista eu até botaria também o Saint Seiya RPG: Asgard Chapter, do Lord_Dracon. Não é nem pelo jogo, mas sim pela história do projeto já que ele foi feito bem nos primórdios das primeiras comunidades brasileiras.

Mas veja bem, não estou falando que eu gosto desse pessoal porque eles eram os “makers raíz”. Tem muita coisa recente que eu admiro também. A série To The Moon do Kan Gao e Rakuen da Laura Shigihara são favoritos meus. Além disso, Fear & Hunger do Miro Haverinen está na minha lista quando tiver um tempo. O próprio LISA: The Painful é um que não vejo a hora de jogar.

O que eu admiro no pessoal que usou e usa o RPG Maker 2k e o 2k3 é porque eles representam o que eu acho demais fantástico na ferramenta. E é a mesma coisa que me fez ficar impressionado em Abraxas. Para isso tem mais história do meu passado!

Em meados dos anos 2000, antes mesmo de eu saber o que era o RPG Maker, eu baixei um jogo chamado Ahriman’s Prophecy. Encontrei ele pelo antigo Baixaki que eu costumava frequentar pra procurar jogos gratuitos e menos pesados que meu PC pudesse rodar. Ahriman’s Prophecy me divertiu muito e cheguei até a frequentar o fórum dele da época mesmo não manjando nada de inglês. E, como está implícito, eu não fazia a menor ideia que ele era um jogo de RPG Maker.

Hoje até acho graça da minha inocência. É só você bater o olho no menu inicial, prestar atenção nos tilesets, facesets, charsets e efeitos sonoros que você percebe de cara qual engine usaram para criar esse jogo. Só que até quando eu passei a conhecer o RPG Maker eu ainda não me toquei que aquele Ahriman’s Prophecy era também uma cria dessa ferramenta.

Tinha dois motivos para isso. Na verdade três, mas não vou levar em conta o fator “ser uma criança burrinha”. O primeiro é que o sistema de luta dele era diferente do que vinha nos RPG Makers. Não era o frontal do RPG Maker 2k – baseado em Dragon Quest – nem o lateral – que vem do Final Fantasy– do RPG Maker 2k3 . Ahriman’s Prophecy era um RPG de ação onde você lutava apertando a barra de espaço para acertar os monstros, depois surgiam novos personagens que alternavam com a protagonista e ainda você liberava magias. Por último tinha o menu do jogo que se vocês olharem…

… era assim …

Menu personalizado de Ahriman's Prophecy, RPG de ação feito no RPG Maker 2k3
Menu padrão do RPG Maker 2k3

… e não assim!

Como eu não entendia nada de RPG Maker, da primeira vez eu simplesmente olhei pro menu de Ahriman’s Prophecy e pensei “ah que bonitinho”. Hoje eu olho pra ele e fico de queixo caído sabendo que é do RPG Maker 2k3. Porque, gente, é um trabalho hercúleo fazer esse negócio só com scripting de eventos e manipulação de centenas de imagens.

Eu tenho uma história parecida com Sunset Over Imdahl também. A primeira vez que eu joguei eu já estava plenamente ciente desse universo dos makers. Porém, tal como em Ahriman’s Prophecy, a principio eu não fazia a menor ideia com o que criou-se o jogo. Aqui o motivo é ainda mais claro, você olha esses mapas desenhados à mão e em momento algum pensa nos tilesets típicos de jogos de RPG Maker. E conforme você explora a cidade e nota as colisões quase que perfeitas, você fica se questionando como que aquilo foi criado. Era algo tão fantástico que o autor até colocou um NPC secreto para explicar como ele fez aquilo no RPG Maker.

Sunset Over Imdahl, clássico do RPG Maker 2k conhecido pelos seu mapeamento belíssimo
Meus olhos brilham até hoje quando eu olho esses mapas

Eis o X da questão. É isso aí que descreve o porquê de eu me impressionar com tanto com os jogos de RPG Maker 2k e 2k3 da época e Abraxas é um exemplo contemporâneo dos mesmo principio. O que me impacta em tais projetos é olhar esses detalhes como o menu personalidade de Ahriman’s Prophecy, os mapas de Sunset Over Imdahl e a troca de personagens de Abraxas e pensar: como fizeram isso?

Precisamos lembrar de uma coisa. Pondo o RPG Maker numa linha do tempo, dá para destacar o salto que houve da transição do RPG Maker 2k3 para o RPG Maker XP em 2005. Não digo relacionado aos gráficos e sim no escopo do que poderia ser alcançado na ferramenta. Antes do XP, o RPG Maker usava um linguagem de script simplificada com comandos que se combina com várias ferramentas de edição (mapa, batalha, eventos, etc). Sendo assim, a engine era acessível para um público mais amplo que seria capaz de criar jogos sem entender uma linguagem de programação sequer. Pode-se argumentar que ainda era necessário entender um pouco de lógica de programação, mas aquela “codificação pura” você não precisava conhecer.

Quando lançaram a versão XP, o RPG Maker passou a ter suporte para linguagens de programação. A primeira foi RGSS (Ruby Game Scripting System) que tinha como base Ruby. A partir do RPG Maker MV, o suporte passou a ser para JavaScript. Pouco tempo atrás anunciaram o RPG Maker Unite que vai contar com o suporte para Unity. O que essa atualizações trouxeram foi um aumento na versatilidade da plataforma, expandindo o que os makers poderia alcançar nela. Eu estava ativo no período em que o XP começou sua ascenção e lembro bem da quantidade de scripts lançados semanalmente nas comunidades. Fosse por membros ou trazidas de fóruns gringos, esses scripts permitiam a criações de mecânicas fenomenais que antes os makers só podiam sonhar…

… será?

Realmente o advento do suporte a linguagens de programação compensou por várias limitações das versões antigas do RPG Maker. Contudo, pensando em retrospecto, uma coisa que eu percebi foi o quanto essas limitações não eram verdadeiramente fatores limitantes paras os makers. Por mais que desse uma tremenda trabalheira de switches, variáveis, edição de eventos e manipulações de imagens, o pessoal dava um jeito.

Vou pegar o Legion Saga III de exemplo. Ele é um RPG baseado em turnos tradicional, porém dentro dele o Kamau foi capaz de construir um minigame que seguia as regras de uma partida de Super Trunfo. A inteligência artificial era bem rústica, mas ainda assim era impressionante o fato dele conseguir botar algo assim no RPG Maker 2k.

Minigame tipo Super Trunfo do jogo Legion Saga III do RPG Maker 2k

Ao longo de toda a história do RPG Maker, os makers conseguiram dar fins para a plataforma que inicialmente não foram projetados. Tanto é que existe um relativamente extenso portfólio de jogos não-RPGs feitos com o RPG Maker. Nos primeiros anos que frequentei essas comunidades me apresentaram um projeto gringo, Fear, concebido por um usuário de nome Devin, que era basicamente um survival horror com larga inspiração em Silent Hill. Além do sistema de batalha em tempo real, era outro jogo que vinha com um menu personalidade aos moldes de Ahriman’s Prophecy.

Se a gente focar apenas nesse gênero de terror, a lista já é imensa. Corpse Party, do Makoto Kedōin, uma série cult de jogos de terror, começou no RPG Tsukūru Dante 98 que é uma das versões mais antigas do RPG Maker. Não sei nem se ela chegou a ser utilizada por qualquer pessoa fora do Japão, mas uma das suas criações conseguiu atravessar gerações e até bolhas. O Wolf RPG Editor, que é uma espécie de primo do RPG Maker, também é outra ferramenta que o pessoal usa para criar jogos fantásticos que não tem nada a ver como RPGs. Aqui posso citar a série The Strange Men Anthology, da Uri, que configura uma da minhas franquias de jogos de terror favoritas.

Fear (RPG Maker 2k), Corpse Party (RPG Tsukuru Dante 98) e The Crooked Mand (Wolf RPG Editor), jogos de terror feitos em engines construídas para se fazer RPGs
E tem muito jogo que tô deixando de fora porque senão esse texto não acaba

É o somatório dessa criatividade e habilidade com o espírito de “não sabendo que era impossível, foi lá fez” que me atrai tanto ao trabalho desses makers. Eles conseguiram demonstrar uma capacidade de explorar os limites da plataforma para criar de sistemas até jogos completos que fogem daquilo que ela foi inicialmente projetada para fazer. RPGs de ação, jogos de tiro, de aventura, mecânicas que eu não consigo nem imaginar como conseguiram fazer com scripting de eventos.

Só para citar mais uma história do passado, enquanto eu escrevia esse texto eu me lembrei do Tanatos. Acho que era esse o nome de usuário dele na época. Tanatos esteve presente na última vez que frequentei as comunidades de RPG Maker com mais atividade e a pira dele era criar sistemas. Não qualquer sistema, mas aqueles que usavam lógicas bem complexas que você precisava entender bem da ferramenta para conseguir fazer. E uma das coisas que mais me impressionou que ele foi capaz de fazer uma imitação do sistema de batalha Chrono Trigger no RPG Maker 2k3. Infelizmente os links do antigo site dele não estão mais ativos e assim o máximo que eu consegui encontrar foi a postagem dele na antiga Central RPG Maker.

Enfim, agora no final do texto a gente completa o círculo voltando para Abraxas e seu sistema de seleção de personagens. Novamente, é o tipo de coisa que me faz torcer a cabeça para imaginar como o maker conseguiu programar isso só com eventos e fazer funcionar tão bem. O jogo pode não ser grandes coisas, mas o sistema em si faz valer a pena você dá uma olhada para poder admirar o que pessoas competentes e criativos conseguem produzir com essa ferramenta.

É por isso vou sempre ter um grande respeito e carinho por essa comunidade e seus humildes desenvolvedores que não recebem o devido reconhecimento que lhes é merecido!


Backlogger precisa do seu apoio para crescer. Então, por favor, compartilhe ou deixe um comentário que isso ajuda imensamente o blog. Você também pode me seguir em outras redes como TwitterFacebook e Tumblr

2 thoughts on “Abraxas e porque eu admiro os makers”
  1. Olá, Belmonteiro! Escreve deveras bem e não gostaria de escrever para Revista Make The Game, pois o Condado está solicitando redatores.

    Excelente artigo, olha hoje é raro analises e feedbacks, claro há os grupos como o Neko games em que o próprio ‘Maker’ Moge participa. Eu sempre procuro estudar alguns jogos e escrever sobre eles, mas confesso que estou pensando em aposentar o gamepad, mas antes tenho alguns projetos para concluir. Indiquei seu Blog/site para alguns amigos. Valeu e novamente agradeço muito pelo apoio ao amigo Moge. Estou sempre falando com o mesmo no discord. E mandei o link do seu blog para ele. Valeu!

    1. Olá de novo, Bento! Eu levo um tempo para responder, mas é porque eu esqueço de conferir os alertas do meu celular. Te respondi lá pela Condado e também levo um tempinho pra visualizar as mensagens por lá, haha! E muito obrigado pela divulgação, sempre bom ver a palavra se espalhando e espero que o Moge curta os dois textos que fiz pros jogos dele.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *