No segundo semestre de 2022 eu adquiri um novo gosto por mangás. Como eu menciono no meu texto sobre Astro Boy e Pluto, até aquele momento eu só havia lido quatro mangás na minha vida. Isso porque eu preferia muito mais acompanhar os animês. Coisa que também já não fazia há alguns anos salvo uma série ou outra como Megalo Box que eu parava para assistir eventualmente.

Com o recém-adquirido hábito de ler mangás, resolvi voltar também para os animês e explorar alguns gêneros que eu costumava ignorar. Um deles era o de ficção científica e dentro dele o dos mechas. E foi assim que eu fui parar em Mobile Suit Gundam. Dado seu impacto cultural eu já conhecia por nome mesmo sem ter visto qualquer uma das dezenas de obras da franquia.

O bom de Gundam é que você tem vários pontos de partida possíveis. A franquia se divide em diferentes linhas do tempo espalhadas por diversas mídias diferentes: séries animadas, mangás, filmes (animados e live action), jogos, etc. Sendo assim eu comecei pela série de Iron-Blooded Orphans uma vez que eu conhecia a primeira música de abertura que é cantada pelo grupo Man With A Mission.

De imediato gostei dos temas que a série abordava sobre guerra, violência, trabalho infantil, colonialismo, entre tantos outros. Assim resolvi dar continuidade com a franquia. Para dar sequência eu voltei bastante no tempo assisti o primeiro Mobile Suit Gundam feito: Gundam 0079. Novamente me vi gostando bastante do conceito da franquia e agora nessas últimas semanas eu estou no processo de me tornar um fã de Gundam.

Atualmente eu estou explorando a linha do tempo principal, Universal Century (UC), que é a que possui mais produções associadas a ela. Até o momento que escrevo o texto eu já assisti, fora as duas séries mencionadas, Mobile Suit Zeta Gundam, os OVAs de War In The Pocket – minha série favorita por enquanto – e estou na primeira metade de Mobile Suit ZZ Gundam com planos para assistir o filme Char’s Counterattack assim que terminá-la.

Pois bem, quando eu dava uma checada em todos os títulos incluídos nas linha do tempo UC, um nome em particular me chamou atenção. Foi um filme lançado esse ano, meses antes de eu começar a explorar a franquia, Mobile Suit Gundam: Cucuruz Doan’s Island. Esse é um nome que qualquer fã de Gundam que tenha assistido as séries mais antigas deve estar familiarizado. O filme é um remake do episódio homônimo da primeira série de 1979.

Ainda há muita coisa da franquia de Gundam que eu tenho para explorar, ainda não toquei nem a ponta do iceberg. Porém me sinto confortável em dizer que esse filme é facilmente uma das melhores produções de toda a franquia. Foi uma grata surpresa para esse ano, pois duvido que qualquer fã esperava que fizessem algo nesse nível algum dia relacionado a aquele episódio. Então, antes de prosseguirmos para a crítica de fato, farei um breve (assim espero) contexto.

O INFAME 15° EPISÓDIO

A primeira série animada de Gundam é um dos títulos mais interessantes da franquia por múltiplos fatores. O primeiro, óbvio, é onde tudo começou. Mas também porque o Gundam de 1979 representa um grande impacto na cultura japonesa. Ela não apenas deu início a uma das suas mais influentes franquias de todos os tempos como também criando uma nova tendência dentro do já estabelecido gênero de mechas.

E outro ponto interessante de Gundam 0079 é a história conturbada da sua produção, marcada por vários e vários problemas. O mais emblemático é o fato da série ter sido cancelada por conta da baixa audiência na época. Dos 52 episódios planejados para concluir a história, os patrocinadores decidiram cortar para 39. A equipe precisou batalhar muito pra conseguir subir esse número para 43 afim de dar uma conclusão melhor para a série. E desses 43 episódios, um nunca chegou a ir ao ar fora do Japão por ordem do próprio criador de Gundam, Yoshiyuki Tomino.

Estamos falando do infame 15° episódio de Gundam 0079, Cucuruz Doan’s Island, um episódio não chegou nem ao menos ser dublado em inglês – entretanto estranhamente existe uma dublagem italiana – e foi eliminado do segundo filme compilado da série. Hoje ele existe somente nas coletâneas de DVDs e Blu-rays lançados tempos depois.

Cucuruz Doan's Island

Cucuruz Doan’s Island se passa no que podemos considerar o segundo dos três arcos de Gundam 0079. Originalmente, o episódio conta a história de um pedido de socorro detectado pela White Base, a nave dos personagens principais da série, em uma pequena ilha no Pacífico. O protagonista, Amuro Ray, é então enviado até a ilha para investigar o ocorrido. Lá eke se depara com um grupo de órfãos e um dos mobile suits inimigos do Império de Zeon pilotado pelo personagem de Cucuruz Doan.

Não existe nenhum motivo oficial para que o episódio ter sido tirado do ar já que o Tomino nunca chegou a esclarecer essa questão. Porém há muita especulação em torno da decisão. Uma das teorias mais aceitas é por conta da animação que ficou muito abaixo do padrão dos demais episódios da série. O diretor de arte de Gundam 0079, Yoshikazu Yasuhiko, estava hospitalizado na época em que o décimo quinto episódio foi produzido. Isso leva a crer que foi a principal razão dos problemas na animação. Recentemente ele até revelou que a produção desse episódio em particular foi completamente terceirizada.

Cucuruz Doan’s Island estava fadado a ser apenas uma nota no rodapé da série que eventualmente seria apagada do imaginário popular. Mas foi aí que o próprio Yasuhiko, junto com o estúdio da Sunrise, resolveu tomar a frente num projeto de refazer o infame episódio. Assim chegamos a possivelmente um dos melhores remakes da história do cinema animado.

REFORMULANDO O “CLÁSSICO”

Óbvio que quando você pega um episódio de 20 minutos e o estende para um longa-metragem com quase duas horas de duração significa que muitos novos elementos serão adicionados. Vai desde maiores sequências de ação – também passando por um aumento no elenco e no desenvolvimento de alguns personagens – e indo até novas linhas narrativas sendo incluídas na história. Bem como a reformulação ou reestruturação das narrativas originais.

Cucuruz Doan’s Island tem tudo isso!

Vou me reservar o direito de não falar sobre como o filme está visualmente muitíssimo melhor. Afinal, 40 anos de evolução não só das técnicas como das tecnologias de animação somadas a um orçamento maior determinam que aprimorar esse aspecto do episódio original não é mais do que a obrigação do filme. Mas se alguém tem qualquer dúvida:

Pode dar play sem medo, esses são só os primeiros 30 segundos do filme

A primeira coisa que o remake faz de bom é reestabelecer a trama de Cucuruz Doan’s Island na linha do tempo da série ao conectá-la ao conflito mais amplo da Guerra de Um Ano. O que diabos eu quis dizer com isso? Não diria que é um problema do episódio original é que ele não é nenhuma extensão dos episódios anteriores como também não catapulta nenhuma história para os seguintes. Ele é uma história paralela que serve mais para reforçar os temas nos quais Gundam 0079 se apoia. Também dá um pouco mais de nuance ao exército de Zeon ao mostrar que nem todos os soldados são 100% maus. De qualquer forma, você consegue removê-lo tranquilamente da série. Bão é a toa que o Tomino o fez sem acarretar qualquer consequência para a história principal.

Para “consertar” isso, o filme muda o contexto da história onde a White Base não está apenas checando um pedido de socorro. Assim a ida de Amuro a ilha do Doan se torna consequência de uma missão para eliminar agentes de Zeon remanescentes na região. Paralelo a essa trama, o roteiro insere um segundo conflito que também se conecta diretamente a Guerra de Um Ano. O Império de Zeon ameaça destruir diversas cidades do mundo se a Federação da Terra continuar com as suas operações militares em Gibraltar.

Mobile Suit Gundam: Cucuruz Doan's Island

Aqui a o filme faz uma referência direta a um pedaço da nossa história real da Segunda Guerra Mundial sobre a libertação de Paris das mãos do Eixo. Hitler teria ordenado que a cidade fosse destruída antes de ser entregue aos aliados. Porém o general alemão Dietrich von Choltitz se negou a seguir com ordem e preservou a cidade. Claro que é as motivações do general não podem ser ligadas a uma mudança genuína de consciência. Contudo a história serve para fazer um bom paralelo com a do próprio Doan nesse Gundam.

Dentro desse novo contexto, e tendo mais tempo de duração, o remake aproveita para trabalhar mais o personagem de Cucuruz Doan. Enquanto no original, exploram o passado de Doan através de diálogos bem expositivos – uma ação necessária dado o curto espaço de tempo de um episódio de uma série – no filme temos uma chance de conhecê-lo mais através das suas ações e os personagens que o cercam, tento um entendimento mais natural do que levou a ter sua mudança de pensamento.

Mobile Suit Gundam: Cucuruz Doan's Island

Além disso, Cucuruz Doan’s Island puxa também para a sua história um dos temas diluído ao longo de toda a série que é perda da inocência de Amuro. Fora todo o trauma que gera nele de o obrigarem a lutar numa guerra em que ele não queria fazer parte. Vários dos diálogos, dele próprio quanto de outros personagens, dedicam-se a evocar esse tema e isso serve de um ótimo gancho para passarmos para o próximo tópico.

O ESPÍRITO DO BOM E VELHO GUNDAM

O diretor Yasuhiko numa de suas entrevistas disse como ele acreditava que o episódio de Cucuruz Doan’s Island tinha potencial para contar uma boa história se feito direito. E ao meu ver o que levava ele a ter essa crença não era necessariamente o roteiro do episódio e sim os temas que a franquia de Gundam vem discutindo ao longo de toda sua história. De tal forma, Cucuruz Doan’s Island seria mais um veículo para poder fortalecer esse discurso. Yasuhiko consegue utilizá-lo com uma tremenda competência e segurança de quem entende muito bem a obra.

Não estou fazendo nenhuma grande revelação ao dizer que o filme tem temas antiguerra, afinal esse nada mais é do que o coração de toda franquia de Gundam. E nesse aspecto Cucuruz Doan’s Island é bem o padrão que você esperaria de uma boa série de Gundam. Todos os conceitos que Tomino definiu lá trás estão sendo representados aqui sem muitas novidades. E está tudo bem porque o intuito dessa produção não é desconstruir ou dar uma nova perspectiva da série antiga.

O objetivo do filme é contar a história do Cucuruz Doan’s Island original de maneira efetiva mantendo o espírito daquela época. Não apenas tematicamente, mas como também esteticamente. Ainda que a animação esteja atualizada para os tempos modernos, muito do traço e dos designs originais se mantem. Inclusive a própria tecnologia quando vemos personagens usando dispositivos claramente influenciados pela tecnologia da época da primeira série.

Mobile Suit Gundam: Cucuruz Doan's Island
Não-ironicamente: fios > tecnologia wireless

Por conta disso eu considero necessário ver o Gundam 0079, incluindo o infame 15° episódio, porque o contexto da série original melhora muito a experiência com esse filme. Cucuruz Doan’s Island até que faz um bom trabalho para conseguir situar minimamente um espectador novato. Mas, obviamente, a intenção do contexto que o filme entrega é muito mais para reacender a memória de quem já está familiarizado com essa história. Muita das relações entre personagens e a própria ideologia do Império de Zeon vai passar batido já que o filme não pode desprender muito tempo reintroduzindo todos esses elementos.

Contudo, como núcleo da trama é personagem do Doan, dá para você assistir o filme e ter uma experiência satisfatória sem entender o todo desse universo. Inclusive até a própria experiência traumática que o Amuro sofre por toda a série dá para se captar perfeitamente no filme, com cenas adicionadas justamente com essa intenção de mostrar o estado mental do personagem para os espectadores.

Mobile Suit Gundam: Cucuruz Doan's Island

Um dos meus momentos favoritos do filme é quando temos o Amuro eliminando um dos soldados de Zeon usando o seu Gundam para esmagá-lo. A série já tinha o hábito de mostrar closes do rosto dos soldados antes da cabine explodir durante as sequências de luta de forma a nos mostrar que não são apenas robôs gigantes explodindo. Pessoas estão morrendo nesse processo. O filme adiciona uma nova camada nessa cena em particular ao cortar diversas vezes para dentro da cabine do mobile suit para que possamos ver as reações dele ao fato de estar sendo obrigado a matar pessoas numa guerra que ele não queria participar. Os frames falam por si mesmos:

O trauma de um adolescente sendo obrigado a lutar numa guerra que ele nunca quis participar é um tema recorrente no arco de Amuro

Existe essa ideia que por se tratar de um contexto de guerra, muitas ações são justificadas. E o que filme, tal como a franquia de Gundam como um todo, mostra como esse conceito não tem valor prático algum. Os indivíduos continuam afetados pelo trauma de matar dezenas e mais dezenas de pessoas, até mesmo quando elas são basicamente nazistas espaciais. Por mais que você tente racionalizar, é uma memória que vai te assombrar pelo resto da vida. Cucuruz Doan’s Island nos demonstra como a guerra nos afeta não apenas no grande esquema mundial, mas intimamente, destruindo a vida de jovens como Amuro e até mesmo de adultos como Doan.

Mais uma vez isso não é nenhuma novidade no que tange o universo de Gundam. Porém é o tipo de mensagem que precisa se reforçada, independente da época. E é esse tipo de compromisso temático que faz Cucuruz Doan’s Island não ser apenas um cashgrab que tenta capitalizar em cima da nostalgia do Gundam clássico, mas mais uma valiosa adição ao legado da franquia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

White Base, uma das naves mais famosas da franquia de Gundam

Mobile Suit Gundam: Cucuruz Doan’s Island me pegou desprevenido e foi mais uma das gratas surpresas desse ano. Jamais imaginaria que veria um remake de um episódio desse tipo, um remake que funciona muito bem, e é uma feliz coincidência que tenha acontecido justo na mesma época que eu comecei a explorar a série.

Não tenho muito a adicionar do que já falei nos tópicos anteriores, então só gostaria reforçar que se você é um fã do Gundam e adora as séries clássicas, esse filme precisa ir para o todo da sua lista de afazeres. Ele dá a mesma sensação das primeiras obras de Gundam, mas com muito frescor pela animação e a melhoria no roteiro.

E mesmo que você desconheça a série de 1979, esse aqui pode ser um bom início acompanhado da série de The Origin, mangá que também tem uma adaptação em série animada, que é outro trabalho do diretor desse filme.


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2 thoughts on “Cucuruz Doan’s Island: excelente filme que ninguém esperava”

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