
Dentro dessa facção criminosa chamada comunidade gamer tem uma piada de como as meses discussões se repetem em ciclos depois de alguns meses. Os três grandes exemplos são: o debate sobre se vídeo games são arte, a conversa sobre dissonância ludonarrativa e o infame modo fácil em Dark Souls. Sendo sincero os dois primeiros nem tem sido tão comentados assim, pelo menos faz mais de ano que não vejo mencionarem ludonarrativa. Ainda bem! Contudo o terceiro item sempre volta, às vezes mais cedo, às vezes mais tarde.
A mais recente ocasião foi graças a Lies of P, um soulslike que recebeu um patch que suaviza a dificuldade geral do jogo. Como sempre, a discussão volta com ajuda de um catalisador que surge do nada. Dessa vez ela (re)começou quando algum usuário qualquer resolveu fazer um tweet na sua tenra inocência de ser apenas mais um jovem naquela rede. O rapaz não tinha nem mesmo 1000 seguidores, logo não devia nem passar pela sua cabeça que postagem poderia sair do seu humilde perfil. Parece que certas coisas viralizam só de sacanagem com a pessoa. Mas enfim, ele disse:
Entendam, souslike é feito pra ser dificil e desafiador, se você não consegue jogar, não é pra você, e tá tudo bem! Tem muito jogo por ai com modo de dificuldade q vc nem leva dano. Praq querer modo easy e nerf em soulslike ? É basicamente pedir pra tirar a identidade do jogo…
Um Usuário de Twitter Qualquer, 2023
Para infelicidade geral da Nação – e principalmente para o autor do tweet – o comentário foi replicado por outros perfis e ganhou muito mais tração do que deveria. Assim a velha e não-querida discussão do modo fácil estourou de novo dentro da bolha gamer e veio parar na minha frente. No que tange a adição de um sistema de níveis de dificuldade, seja em Dark Souls ou qualquer outro jogo que o valha, eu não me importo o bastante para emitir uma opinião. Minha única posição nesse tópic é achar errado o uso da acessibilidade como um argumento em favor do modo fácil. Depois disso, toda a minha torcida é pela briga…
MAS!!!
Claro que tem que ter um mas. Conforme a discussão se estendeu dias a fios (de Twitter), uma fala em particular começou a me incomodar. Toda santa hora alguém precisa lembrar para Gwyin e o mundo de como “Dark Souls é um jogo muito difícil”. É quase um mantra, repetido tanto pelos seguidores da seita quanto aqueles que, sabe-se lá porque, querem ingressar nela. Assim ambos os lados seguem dando poder ao mito que hoje amaldiçoa tudo relacionado a esses e os demais jogos da From Software.
Eu não vou bancar o gamer hardcore que se acha o fodão games e dizer que Dark Souls nem é um jogo tão difícil assim. Alimento meu ego com outras coisas. Fora que seria pura mentira, pois de fato existe um nível de desafio maior que a média dos jogos e não é a toa que se tornou a identidade da franquia Souls. Contudo, apesar de eu concordar são jogos difíceis, eu também tenho alguns pensamentos meio paradoxais com essa afirmação. Detesto a supervalorização da dificuldade que os fãs e não-fãs fazem como se Dark Souls não tivesse nada mais a oferecer. Ao mesmo tempo, eu acho um exagero o terrível mito – no sentido de narrativa – que os outros jogadores criaram ao redor dessa dificuldade. São jogos desafiadores, não nego, mas estão longe de ser esse bicho de sete cabeças que tanta gente faz parecer.
Curiosamente, eu já estive do outro lado dessa briga. Me considero alguém com certa experiência em jogos (jamais um gamer), mas na primeira vez que joguei Dark Souls eu dropei. Até que resisti bastante e consegui passar da Chaos Witch Quelaag, porém eu vi que não aguentava mais tanta dor e ranger de dentes e resolvi desinstalar o jogo. Somente anos depois com Dark Souls III que eu passei a gostar da franquia e voltei para zerar o primeiro. Ainda morri algumas dúzias de vezes, muito menos do que a minha tentativa inicial, só que dessa vez eu fui até o fim. Olhando em retrospecto, eu não acho que foi o aumento na minha habilidade com jogos que causou essa melhoria, foi algo mais simples: eu aprendi a não jogar feito um selvagem!
Antes de chegar em Darks Souls eu não tinha tanto contato assim com jogos de RPG de ação porque eu gostava mais de combate por turnos. Então eu, e talvez outras pessoas se identifiquem com isso, tinha como referências jogos hack ‘n slash como Devil May Cry e God of War. Tais jogos tem um combate mais frenético, te permitem fazer diversos combos e você consegue enfrentar grupos de inimigos de uma só vez com relativa facilidade. Sem contar que barra de HP e as formas de recuperá-lo são até que bem generosos para a maior parte dos casos. Óbvio que em chefões ainda existe toda uma necessidade de se moderar e não sair atacando desembestado. Identificar as possíveis “janelas”, aqueles momentos mais ideais para atacar seus inimigos, é base para todo jogo que envolve combate em tempo real.
Porém, no caso de Dark Souls eu diria que existe uma particularidade que deixa o combate um pouquinho mais complexo. Para falar disso eu gostaria de fazer um desvio rápido para o cinema. Tempinho atrás eu fiz uma maratona de filmes swashbucklers e dentre eles estava Os Duelistas, que estreou a carreira do Ridley Scott como diretor. Um detalhe que é conhecido sobre o filme é o realismo dos duelos e achei interessante o do início:
Uma coisa que dá para notar nessa cena é como existem muitas pausas durante o duelo. Os personagens passam mais tempo se encarando e estudando os movimentos do seu oponente do que trocando golpes com os floretes. Quando isso acontece, geralmente são alguns poucos ataques rápidos e eles se afastam de novo. Dá para você sentir os duelistas pensando “ok, isso não deu certo então vou precisar mudar de tática” e, ao meu ver, o combate de Dark Souls opera muito nessa lógica.
Os jogos ainda estão bem longe de ter uma “luta de espadinha” realista, porque realismo nem sempre gera uma jogabilidade legal. Mesmo assim, dá para dizer que existe um fator da vida real inserido no combate de Dark Souls que é a ideia de stamina. Qualquer um que tenha jogado sabe disso, porém eu vou comentar mesmo assim.

Cada ação (atacar, defender, desviar) consome uma quantidade de energia que varia de acordo com o tipo ataque, a arma e seus equipamentos. Então se você ficar indo para cima de um grupo de três ou mais inimigos ou então spammar o botão de ataque toda hora, pode ter certeza que não vai durar muito tempo no jogo. Desse modo você vai perder toda sua energia em segundos e sofrer por isso. Não dá para meter uma de He-Man brasileiro desafiar 35 cearenses de uma vez só porque é esse tipo de ação impulsiva que faz o jogo te punir tão severamente.
Errar o timing de um desvio ou de um ataque é ruim em qualquer jogo, só que em Dark Souls isso pode ser fatal. Se você moscar, até mesmo um inimigo comum pode te causar uma quantidade de dano considerável. O jogo te incentiva a agir constantemente com cautela, caso contrário te fará “sentir” cada um dos seus erros.
Saiu correndo sem olhar por onde anda? Vai cair num buraco posicionado maliciosamente para pegar um apressado! Atacou feito um selvagem e agora não tem stamina para rolar pra longe do chefão? Vai tomar um dano que deixa o “super efetivo” do Pokémon em choque! Resolveu ser ousado e enfrentar cinco monstros ao mesmo tempo? *imagens censuradas por conter violência muito gráfica*
Eu acho que aí reside o fator que pesa mais nessa mística do Dark Souls superdifícil que a gente vê se repetir tanto. Realmente, quando você vê metade da sua barra de HP esvaziando por causa de apenas dois golpes de um chefão, a primeira reação é a de achar que vai ser impossível derrotá-lo. Só que essa impressão desaparece depois de algumas (às vezes várias) tentativas. Foca-se em enfatizar o quão punitivo Dark Souls é, mas pouco se comenta o quão mais fácil o jogo vai se tornando conforme você entende o “ritmo” das lutas.
Um experimento que eu gosto sempre de propor é iniciar um New Game+ no exato instante que você zerar qualquer jogo da trilogia. É notável o quão mais fácil fica derrotar chefões e atravessar passagens que você agarrou horas na sua playthrough anterior, mesmo com os inimigos estando mais fortes. Não é apenas porque você mantém seus atributos e sua build, é porque você já se acostumou com a dinâmica do combate. Se quiserem dá até para fazer outra experiência. Recomece o jogo depois que você derrotar uns cinco ou seis chefões e você vai perceber que vai levar um tempo muito menor para alcançar o ponto em que parou. Além de morrer muito menos vezes também. Diabos, só a título de curiosidade eu instalei Dark Souls III aqui, um jogo que não encosto há pelo menos uns seis anos, e derrotei o primeiro chefão na segunda tentativa.
Não é apenas porque as coisas estão frescas na sua cabeça, ou porque você é um fodão games. Eu acredito piamente que qualquer pessoa tem a capacidade de zerar Dark Souls com o devido empenho. Organicamente você aprende agir com mais calma, a manter distâncias seguras para um ataque ou para uma tática evasiva, a conservar melhor sua stamina, a reagir apropriadamente. Claro que existe uma certa habilidade que você precisa desenvolver, isso é parte natural de qualquer jogo. Mas você também tem que se policiar para jogar com paciência, diligência e perseverança.
Se depois de duas tentativas fracassadas onde você não muda sua abordagem em relação ao chefão, você continuará perdendo. Não é um jogo em que você vai conseguir sucesso por um método de força bruta. Você precisa se planejar, observar, se adaptar. De novo, não acho que seja é uma jogabilidade que só um grupo seleto de jogadores é capaz de dominar. O que eu acho é que é uma jogabilidade que só um grupo seleto de jogadores se esforça para dominar. O outro lado prefere acreditar e alimentar o mito da dificuldade de Dark Souls, que tem seu pézinho de verdade, porém é largamente exagerada.
Enfim, não fiz esse texto como um contra-argumento a ideia de um modo fácil. Mais uma vez eu não ligo se um dia vão inserir ou não isso nos jogos de Dark Souls ou qualquer outro da From Software que desde Sekiro: Shadows Die Twice eu já não tenho mais interesse em acompanhar. Eu só gostaria que as pessoas parassem de transformar a dificuldade num bicho-papão. Estejam elas em qualquer um dos lados. É difícil? É! Mas está longe de ser impossível!
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Algo que eu sempre comento é a pergunta de se a pessoa chegou a essa visão puramente sozinha ou não.
A ideia do “Dark Souls: Jogo impossível” surge da primeira versão do jogo pre-patch onde, pelo jogo ter sido rushado e incompleto quando lançou, haviam varias coisas que simplesmente não funcionavam, eram quebradas, ou eram simplesmente desbalanceadas.
Um exemplo era de que como originalmente DS1 possuía um sistema similar aos primeiríssimos Dragon Quests pelo simples fato de bosses recompensarem uma quantia paupérrima de Souls ao mesmo tempo que não ofereciam um homeward bone, de modo que o jogo te incentivava a parar o seu fluxo pra ir grindar.
Como sempre é dito: Foi visto como oportunidade de marketing e disso saem coisas como o nome “PREPARE TO DIE EDITION” ou a humilhante cutscene inicial do Dark Souls 2.
A questão é que eu questiono o quanto ter essa visão previamente influencia na sua visão com o jogo.
Eu mesmo, quando estava zerando Final Fantasy 2 no GBA, o achava um jogo OK, até ler uma enxurrada de criticas sobre o quão ruim ele era, coisa que me desanimou de continuar com o jogo.
Minha primeira tentativa de zerar Castlevania SotN foi um desastre, pois eu nunca peguei o Leather Shield (Então digamos que Sloggra e Gaibon foram na base do abuso de save states) nem sabia que havia um mini-mapa no jogo, some isso a outros fatores e saiba que eu ODIEI o jogo pela primeira vez… até ler reviews e ver gente falando sobre o mesmo e notar que NINGUÉM teve as mesmas dificuldades que eu, com os papos geralmente sendo sobre partes do late game que a pessoa gostou. Disso eu passei a refletir sobre o fato de que talvez fosse algum problema da minha parte, e não do jogo (Enfim, um reset e duas tentativas depois meses após o ocorrido e eu consigo zerar o jogo).
Exemplificando para o próprio DS: Em qualquer outra franquia, se um player acabasse no Cemitério ou em New Londo Ruins no começo do jogo, ele saberia que foi pra direção errada. Mas uma pessoa que vai jogar o jogo enviesada pela visão de “Jogo super-difícil” pode não pensar o mesmo.
Termino sempre lembrando que o próprio Miyazaki fala que ele não faz os próprios jogos “com o objetivo deles serem difíceis como um fim em si mesmo” (https://www.vg247.com/elden-ring-studio-fromsoftware-doesnt-make-its-games-hard-for-the-sake-of-it-says-miyazaki).
Há um motivo bem circulado de porque esse tipo de treta ocorrer com Soulslikes, mas não ocorrer com outros jogos recordistas de vendas e de dificuldade similar como os da serie “Monster Hunter”: Falta de pre-concepções sobre o segundo.
Pra mim é isso daí: a pessoa passou anos ouvindo o mito de como o jogo é muito difícil, aí começa a jogar de qualquer jeito indo pra qualquer lugar, passa um perrengue e se convence que o jogo é super difícil mesmo, desistindo antes de chegar no ponto em que você começa a entender a pegada da gameplay
Concordo com seus argumentos. Acontece que Dark Souls se aproveitou da mitologia criada em torno de sua dificuldade e, ao mesmo tempo em que atrai milhares de jogadores, afasta outros que poderiam jogá-lo, mas não o fazem por acreditarem que não é um jogo para eles. Realmente não é um jogo ocasional, exige dedicação em desenvolver técnicas e aprender os movimentos dos chefes. Só comprei o primeiro porque estava em promoção na PStore, gostei, comprei os outros dois, e zerei ontem o terceiro título (mais de um ano depois de começá-lo). Tive que ver tutorial pro chefe final porque não estava conseguindo finalizá-lo. Mas valeu a pena. A sensação de terminar uma coisa difícil é muito boa. E se essa coisa difícil é um Dark Souls, a sensação é melhor ainda.
Eu nem diria que se aproveitou, a dificuldade é a “filosofia” da trilogia e os demais título derivados de Dark Souls. O mito veio mais da comunidade e como segue sendo um jogo popular, muitas pessoas querem ingressar nele, porém sem se dar o trabalho de aprender as “regras”. Se pegar uns shoot’em ups aí, principalmente bullet hell, você vê que tem uma dificuldade ainda mais impiedosa. Mas como virou um gênero absurdamente nichado, não tem ninguém exigindo modo fácil para os jogos dele. E é possível zerar sempre precisar disso, tal como Dark Souls, mas é algo que requer dedicação. E eu compreendo quem não quer se dar a todo esse trabalho, só queria que parassem mesmo de alimentar essa noção que sem modo fácil é impossível de se zerar