Eu tenho duas primas, mãe e filha, que adoram filmes de terror. Eu também gosto de filme de terror – alguns diriam que gosto até demais – então nós frequentemente discutimos sobre eles. E quando falo discutir é no sentido mais agressivo da palavra. Eu já quase parei de falar com uma delas por causa de O Babadook. Pois bem, anos atrás falávamos de alguns filmes mais antigos e A Bruxa de Blair foi citada. Foi nesse dia que eu tinha a chance de testemunhar um fenômeno que só ouvi falar pela internet: alguém que achava que o filme era real.

Minha prima era adolescente quando A Bruxa de Blair veio para o Brasil, portanto ela é uma das poucas pessoas que eu conheço que chegou a assisti-lo ali no período do seu lançamento. Enquanto conversávamos sobre o filme, ela nos falou da história que ouviu na época que o diretor teria encontrado as gravações numa floresta e que as três pessoas do filme tinham desaparecido de verdade. Escutando em silêncio percebi então que minha prima de fato acreditava que A Bruxa de Blair era baseado em fatos reais.

Aqui eu preciso explicar algo. Essas minhas duas primas gostam de ASSISTIR filmes, entretanto elas não são aficionadas pela ficção de terror. Diferente de mim, elas não pegam filmes de 50 anos para conhecer as origens do terror folclórico no cinema. Mas o que eu quero dizer com isso é que ambas dificilmente pesquisam sobre o gênero. Portanto a minha prima não tinha menor noção que só estava repetindo uma narrativa criada numa brilhante jogada de marketing pelos diretores Daniel Myrick & Eduardo Sánchez para vender o filme às audiências.

Uma das cenas mais icônicas de A Bruxa de Blair
A maior “selfie” do cinema

Hoje até pode soar um pouco ridículo que alguém acreditava que a Bruxa de Blair, a da lenda, existia de verdade. Porém em 1999 a história era outra. Se você pesquisar vai encontrar vários relatos de pessoas que na época acharam ou conheciam outras pessoas que saíram das salas de cinema pensando que o filme era real. O impacto da “veracidade” da história foi tamanho que A Bruxa de Blair conseguiu arrecadar mais 400 vezes o seu orçamento inicial em bilheteria.

Portanto naquele dia eu não achei graça da minha prima por cair no conto dos diretores. Pelo contrário, eu fiquei impressionado como A Bruxa de Blair conseguia causar esse efeito depois de tanto tempo. Foi ali que tive a certeza esse é o único filme da história do cinema que não dá para fazer um remake!

Vocês sabem que eu gosto de fazer umas afirmações hiperbólicas de vez em quando só pra gerar uma reação, mas dessa vez eu falei sério, Acredito que um diretor imensamente habilidoso conseguiria fazer um remake, um bom remake, de grandes clássicos como O Poderoso Chefão, Os Sete Samurai, 2001: Uma Odisseia no Espaço ou A Ratinha Valente. E quando eu falo de um bom remake eu não digo apenas em fazer um bom filme e sim o de criar uma obra que consiga ter a mesma relevância cultural que seu original. A título de exemplificação, Os Infiltrados, do Martin Scorsese, é um remake de Conflitos Internos, de Andrew Lau & Alan Mak, que não só é tão aclamado quanto o original como também muito de vocês estão descobrindo agora que ele é um remake. Ou seja, ao menos no imaginário ocidental é o filme do Scorsese que as pessoas conhecem.

Porém eu não acho que existe e nem que existirá alguém capaz de fazer um remake de A Bruxa de Blair. Não um que surte o mesmo efeito nas audiências modernas tal como o original fez na sua época. Porque esse filme vai além da ficção. A Bruxa de Blair é um ponto histórico do cinema que depende fortemente de um período específico do mundo digital e real. Sem esse contexto, não há nada que o difere de um found footage mediano, ainda que para mim ele é uma das execuções mais eficientes na proposta de criar um filme que aparente ser real.

Basta ver que desde o lançamento desse filme já houve diversos outros replicando seu estilo. Mas teve algum que conseguiu ter o mesmo efeito que ele causou nos anos 2000? Nem a própria franquia de A Bruxa de Blair, que inclui hoje duas sequências e um jogo, conseguiu alcançar o original. Atividade Paranormal, de 2007, foi um dos que chegou mais perto, mas com uma abordagem diferente de marketing. Tanto que você não vê na internet histórias sobre como pessoas acharam que aquela foi uma história real. Pelo menos não com a mesma frequência de A Bruxa de Blair.

Notem que aqui eu não estou falando em questão de bilheteria ou então de “qualidade”. O que discuto aqui é o impacto cultural, pois A Bruxa de Blair é um marco do terror moderno e do cinema como um todo também. Só que ele não alcançou esse status pelo seu roteiro, sua cinematografia, sua atmosfera, nada disso. O que fez A Bruxa de Blair funcionar tão bem é um elemento que infelizmente na era da informação fica cada vez mais raro: mistério!

O MUNDO EM 1999

Antigo site criado para promover o filme A Bruxa de Blair
A Bruxa de Blair foi um dos primeiros filmes a usar principalmente a internet na sua estratégia de marketing

A coisa mais comum (e mais decepcionante) ao ler comentários recentes sobre A Bruxa de Blair é ver gente dizendo que o filme é chato. Ou então nada assustador. Até certo ponto são opiniões compreensíveis, porém não são dignas de respeito. É errado esperar desse filme um horror dado ao espetáculo como um filme do James Wan. A audiência média parece falhar em compreender qual a proposta do filme e nunca olha para o contexto.

Aí vem um segundo problema, pois A Bruxa de Blair tem um legado. Mesmo que as pessoas não saibam a história dessa produção, certamente já ouviram falar dele como “um filme arrepiante”. Elas chegam para assistir com essa mentalidade que será algo de fazer você ter medo de dormir sozinho. Porém elas se deparam é com três jovens andando numa floresta por mais de uma hora e ficam irritadas por não entender porque achavam esse filme assustador. Por isso que, quando eu converso sobre A Bruxa de Blair, eu frequentemente uso o termo “datado”. Porém não faço uso do sentido pejorativo da palavra de gente que consegue engajar com qualquer coisa com duas décadas ou mais de idade. Ele é datado porque o contexto do ano de 1999 é de extrema importância para entender o porquê do fenômeno que o filme foi.

Em ‘Saint Seiya RPG: Asgard Chapter e porque contexto importa’ eu descrevo como a internet era um mundo completamente diferente nos anos 2000 do que é hoje. O acesso era menor, a velocidade era lenta e não havia essas redes sociais titânicas como o Facebook. Assim informação circulava bem mais devagar e estava espalhada em dúzias de fóruns e sites diferentes. Alguns bem obscuros. A internet era ainda um continente desconhecido e misterioso. Foi nesse cenário que A Bruxa de Blair fez sua história com uma das mais efetivas campanhas de marketing no cinema quando ainda pouco se conhecia de marketing viral.

E qual a chave para a campanha? Internet!

O site do filme, hoje infelizmente extinto, chegou a ter 160 milhões de visualizações nos primeiros três meses, algo que para 1999 era um número astronômico. Mas o mais importante para o sucesso de A Bruxa de Blair foi a mística que se criou sobre o projeto. Não digo da lenda da bruxa homônima que os diretores criaram para história, eu digo da ideia que as gravações eram genuínas. Foi isso que fez as pessoas ficarem tão assustadas no filme. Não há nada muito gráfico em A Bruxa de Blair fora uma cena que os personagens encontram uma sacola com dentes humanos. O que mexia com a audiência era a crença que tudo aquilo teria ocorrido de verdade.

O fato de não vermos nenhum evento sobrenatural na tela, além da naturalidade com que os personagens se expressavam, dava ao filme um tom muito realista. O seu título original, The Blair Witch Project, reforçava ainda mais a narrativa que aquilo era um projeto de faculdade e não uma produção tradicional de cinema. Para criar um mistério ainda maior, chegaram até a fazer e distribuir pôsteres nas primeiras exibições de A Bruxa de Blair dizendo que os três estudantes estavam desaparecidos. Tudo matematicamente planejado para dar o máximo de credibilidade para o filme.

Outra coisa importante a se destacar é que o gênero de found footage era um termo bem desconhecido em 1999. Na verdade, antes de A Bruxa de Blair ninguém se referia a ele como um gênero de ficção. Ao menos fora das paredes das faculdades de cinema, porque o conceito já existia. Ele descreve uma técnica narrativa do cinema onde se insere gravações feitas pelos próprios personagens no filme para adicionar esse elemento de realismo dentro de uma história.

Muitos filmes já tinham explorado essa técnica anos antes de A Bruxa de Blair. Para listar alguns tem o filme italiano de 1980, Holocausto Canibal, do Ruggero Deodato e em 1985 o filme japonês, Guinea Pig, de Satoru Ogura. Nos Estados Unidos mesmo, em 1998, Stefan Avalos & Lance Weiler fizeram The Last Broadcast. Porém nenhum deles chegou a ter o alcance, e principalmente a mística, de A Bruxa de Blair. Como eu costumo dizer, o sucesso do filme dependeu muito menos do que se existia na época e mais do que NÃO existia. O acesso limitado a informação e o desconhecimento geral a respeito do found footage foram importantíssimos para A Bruxa de Blair conseguir ter mais credibilidade com a audiência.

É exatamente por isso que não dá para você replicá-lo hoje. Mesmo com tantos anos de evolução das estratégias de marketing viral e do cinema contemporâneo nas últimas décadas. Para algo como A Bruxa de Blair conseguir ser efetivo, a gente teria que desaprender muita coisa do mundo moderno.

O QUE ACONTECERIA SE
A BRUXA DE BLAIR FOSSE FEITO HOJE

Pôsteres dizendo que os atores de A Bruxa de Blair haviam desaparecido, tudo parte da estratégia de marketing do filme
Isso aqui não ia durar dois dias na internet pós-redes sociais

Um dos meus filmes favoritos de 2022 foi O Menu, de Mark Mylod. Tanto que cheguei a fazer um texto analisando a maior parte do elenco. Tem um momento que o chef Slowik chega no seu fã irritante, Tyler, e lhe diz que ele é a razão pela qual todo o mistério foi drenado da arte. O personagem de Tyler acha que saber obsessivamente cada detalhe, até o mais insignificante, torna a experiência melhor, não deixando nenhum espaço para surpresa, para a novidade, para nada. Tudo tem que ter um o quê, um porquê e um para quê.

Imagine o que aconteceria hoje se tentassem fazer algo como A Bruxa de Blair? No instante que uma campanha como a do filme fosse tentada, cada nerdão de internet começaria uma cruzada para descobrir o máximo de informação possível sobre o projeto, arruinando toda a magia da experiência tanto para si quanto para os outros.

Por exemplo, a primeira coisa que as pessoas fariam seria digitar “blair witch legend” no Google. Em poucos cliques elas descobririam que não existe essa história de uma bruxa assombrando uma floresta nos arredores de Burkittsville. E essas pessoas não conseguiriam guardar essa informação para si. Elas sairiam internet a fora mostrando como a história do filme é mentira. Como hoje tudo circula com mais facilidade, essas pessoas seriam ouvidas a longo alcance.

Mesma coisa com o found footage. Se a pessoa ainda não soubesse o que significava, poderia fazer rapidamente uma pesquisa na Wikipédia e descobrir que não passa de uma técnica de cinema. Novamente, a magia do filme se quebraria em instantes.

Outra parte fundamental da campanha não funcionaria hoje que era o boato sobre os estudantes desaparecidos. Não importa que contratassem alguém que nunca apareceu sequer num comercial local, a internet hoje daria um jeito de encontrá-lo. Centenas de pessoas passariam dias rastreando todas as redes sociais a procura daquele rosto. Provavelmente algum conhecido se manifestaria, facilitando ainda mais para os usuários encontrarem o elenco do filme. Não duvido que no dia seguinte já teria alguém gravando um vídeo pra Tik Tok em frente a casa dos atores, ou os abordando enquanto vão ao mercado. E aí aquelas dúzias de perfis de internet que passam o dia reportando cada espirro que é dado na indústria do entretenimento repassariam a informação que as pessoas no filme eram atores contratados e que estavam bem.

É impossível ter aquela mesma magia que existia em 1999 onde a internet era ainda um lugar desconhecido e cheio de mistérios. Tudo é dissecado em questões de dias e assim não existe muito espaço para surpresas de verdade. Duvido muito que existe qualquer chance de surgir um filme que faça alguém acreditar que ele é real 20 anos depois do seu lançamento. Se tentam fazer isso hoje, vai ter dúzias de biscoiteiros criando threads no Twitter ou vídeos no YouTube com títulos chamativos de “A VERDADE SOBRE A BRUXA DE BLAIR”.

Ah, eu te entendo, chef Slowik. Como eu te entendo…

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Última cena de A Bruxa de Blair
Nunca que hoje tal cena carregaria tanto impacto como em 1999

Não era pro tópico anterior ter um tom tão agressivo, é que eu me emociono fácil quando o assunto é terror. Mas enfim, quando eu falo que é impossível de se criar um remake de A Bruxa de Blair não é porque essa é uma obra irretocável que se precisa de muito talento para reproduzi-la. Você certamente pode juntar um bom diretor, com um bom roteirista, chamar uns bons atores e fazer um bom filme. Contudo o fenômeno que transformou de um mero filme para um marco na história do terror moderno não dá mais para ser refeito.

As condições necessárias para a ideia de A Bruxa de Blair dependiam de um mundo que hoje não existe mais. O fácil acesso e compartilhamento de informações pelas redes sociais ou veículos da indústria do entretenimento impossibilita de se criar aquele mistério tão fundamental para a experiência do filme. Hoje o máximo que você conseguirá fazer é um filme legal de terror com uma turminha do barulho de jovens perdidos na floresta investigando uma lenda e causando altas confusões. Mas fazer as pessoas saírem das salas de cinema acreditando que acabaram de ver uma prova que bruxas existem? Isso, infelizmente, jamais acontecerá de novo!


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