
Semanas atrás eu estava numa festa de aniversário com a minha família. Conversando com meus primos, o assunto chegou nos filmes de terror. Um deles disse que reassistiu um dos anos 90 que eu particularmente gosto muito. Não direi o nome, pois a ferida ainda está aberta. Para minha infelicidade, meu primo falou muito mal desse filme. Disse que era sem graça e questionou como a gente sentia medo dele naquela época. Eu tive que fechar os olhos e contar até dez. Apesar do meu jeito beligerante na internet – afinal somos todos corajosos por trás de uma tela – na vida real eu tento ser afável em face de uma opinião divergente. Mas também é porque eu já esbarrei com discursos similares a esse do meu primo e eles me cansam mais do que me irritam.
Não preciso entrar no mérito que o terror é tão subjetivo quanto o humor, porque tem algo mais simples aqui. Se você assistir qualquer filme que te assustava décadas atrás, pode ter certeza que ele não vai surtir o mesmo efeito hoje. Não apenas porque você não é mais criança ou um adolescente, mas também porque se você consome terror com frequência você acaba criando anticorpos contra ele.
Eu sou um belo (alerta de narcisismo) exemplo anedótico, porque eu era incapaz de ver QUALQUER filme de terror até mais ou menos meus quinze anos. Jogos? Menos ainda! Eu já cheguei a sair correndo do quarto por causa de Resident Evil Gun Survivor. Entretanto, hoje esse é um dos meus gêneros favoritos, tanto no cinema quanto nos vídeo games, e dificilmente algo me assusta igual no passado. Logo, a crítica de “filme de terror ruim, nem dá medo” não é uma que você deva levar muito em consideração. É um reducionismo tosco de quem olha para o gênero mais como um entretenimento do que uma arte… e eu vou parar por aqui antes que eu comece a me exaltar sem necessidade.
Isso não significa que não existirão obras que irão nos assombrar profundamente depois de velhos. Há sempre temas que nos são mais sensíveis e que exploram medos que carregamos nas nossas vidas pessoais que vão surtir mais efeito. Minha tia, por exemplo, morre de medo de cobras, tubarões e crocodilos. Até em filmes que não são de terror ela se assusta em cenas com esses animais. Então enquanto eu fico entretido vendo, por exemplo, Predadores Assassinos, ela mal consegue olhar para televisão.
Evidentemente que eu também tenho esses gatilhos. Um que eu descobri tempos atrás é que eu fico muito ansioso em sequências que envolvam o personagem pendurado no céu, como naquela fase de Contra III: The Alien Wars em que você precisa ficar pulando de míssil em míssil para destruir a nave inimiga. Sério, minhas mãos chegam a suar nessa parte. Porém o que mais mexe comigo são cenários ambientados no mar aberto porque eu descobri que eu tenho um medo irracional do oceano. Assim chegamos em Dredge!

Quando se trata de vídeo games, eu tenho um curioso fascínio por mini-games de pesca. Não sei de onde veio isso, eu nem mesmo pesco na vida real. Mas fato é que se em algum momento tiver um sistema, do mais simples até o mais complexo, de pesca eu abro um sorriso de orelha a orelha. É o motivo de Legend of the River King 2 estar no meio daquela lista de JRPGs que fiz esse ano. Também sou uma pessoa que gosta quando um jogo dá um enfoque narrativo maior e vocês já foram avisados que curto terror. Logo, é até estranho pensar que eu levei tanto tempo para jogar Dredge.
A premissa do jogo começa bem simples: você encarna o Pescador que vai trabalhar num arquipélago na cidade de Medula Menor. Uma boa parte da jogabilidade, seja na campanha principal ou nas side quests, envolvem você pescar os mais variados peixes seja para vender ou a pedido de um habitante. No começo você tem apenas uma vara, mas logo você consegue habilitar outros equipamentos como redes e covos. Além disso, o Pescador pode dragar artefatos do fundo do mar, engrenagens especiais para liberar equipamentos melhores e material para aprimorar o seu barco.
Do jeito que eu falei, parece que Dredge nada mais é do que um jogo de pesca comum. Porém ele também é um ótimo jogo de terror cósmico. Não só na atmosfera, mas no texto também porque a narrativa intercala os diálogos com descrições tanto dos personagens quanto das suas ações para criar a sensação de estar lendo um conto do H. P. Lovecraft. Então logo você percebe que existe muito mais naquelas águas além de peixes. Forças sombrias, monstros marinhos, artefatos amaldiçoados, figuras misteriosas, mutações, etc. Tudo isso se amarra na história através do enigmático personagem do Colecionador que pede para que você busque relíquias ao redor do arquipélago.
Já na jogabilidade, o jogo traz um dos temas principais dessas histórias lovecraftianas que é a loucura. Dredge tem um ciclo de dia e de noite e algumas espécies de peixes só aparecem em um desses horários. Porém, no período noturno, o Pescador fica suscetível a alucinações e outros fenômenos sobrenaturais que se manifestam conforme o nível de pânico dele cresce. Isso ocorre naturalmente sempre que ele está longe de uma doca ou uma fonte de luz, mas também aumenta ainda mais ao testemunhar esses eventos. Então o Pescador começa a ver olhos na escuridão, escuta vozes, faz aparecer monstros marinhos que podem danificar o navio, entre muitos outros fenômenos.

Dredge é facilmente um dos jogos mais assustadores que eu já joguei e tenho total certeza que a maioria vai DISCORDAR dessa minha afirmação. Eu compreendo totalmente. O jogo pode até ser um pouco mais assustador no início quando você está mais vulnerável aos perigos do arquipélago, porém quando você adquire equipamentos melhores isso tende a diminuir em muito. Com motores mais potentes, luzes mais fortes e varas mais velozes você consegue atravessar as águas da região e concluir os objetivos das missões com mais tranquilidade. Tanto é que após a primeira área, Dredge começa a se apoiar mais nos monstros marinhos que aparecem independente do estado mental do Pescador para apresentar algum perigo para o jogador.
Só que até mesmo quando a noite já não era um risco tão grande, eu continuava muito ansioso jogando Dredge. Tudo isso tem a ver com aquilo que falei de ter um medo irracional do oceano, com toda ênfase no “irracional”. Vamos a uma anedota da minha vida:
Muitos anos atrás, eu fiz um passeio de barco para umas ilhas aqui do Sudeste com a minha mãe e a minha tia. Estávamos juntos de um grupo de n-pessoas e a gente tinha que ficar sentado na lateral do barco. Logo, eu passei o trajeto todo com o medo muito lógico de tombar para fora da embarcação. O problema é que não foi só isso e asseguro que não estou exagerando para fins cômicos. Chegou um momento em que eu comecei a imaginar um Megalodon – sim, aquele tubarão gigante extinto há milhões de anos – aparecendo do nada e pulando no barco. Não cheguei a ponto de alucinar, porém o pensamento não saía da minha cabeça e me deixou desconcertado até que finalmente chegamos numa das ilhas.
Entendem agora? Eu digo que meu medo do oceano é irracional porque não são maremotos, redemoinhos aquáticos, naufrágio ou qualquer outro perigo real que me assusta. Eu fico com medo de dar de cara com a porra de um Kraken ou de um Leviatã. É maluquice minha? Altamente provável! Deveria buscar terapia? Com toda certeza! Irei fazer? De forma alguma! Com isso eu queria ilustrar que o efeito que Dredge teve em mim é exatamente por eu ter esse medo insano do mar. Enquanto para alguns jogadores, navegar durante a noite os deixa só um pouco mais apreensivos, para mim eram momentos de alta ansiedade.
Um dos melhores momentos foi quando por algum motivo eu decidi ir de barco até as águas desconhecidas que circundam o arquipélago. O jogo bota um aviso na tela falando para você voltar, porém eu continuei indo. Para piorar estava de noite. Poucas vezes eu tive tanta agonia num jogo porque eu comecei a imaginar o que poderia acontecer: um tentáculo arrastar meu barco para as profundezas do oceano, ser engolido por uma baleia gigante, ser sugado por um redemoinho. Eu até mesmo imaginei a possibilidade de cair por um abismo como se a Terra de Dredge fosse plana. O pior é que eu também não conseguia dar meia volta com o barco porque eu tinha medo de olhar para trás e ter um Cthulhu ou qualquer coisa parecida me olhando.

O gamer adora jogar a palavra imersão de qualquer jeito nas discussões sobre vídeo games, geralmente exaltando coisas bestas como a grama mexer quando o personagem passar por ela. O que aconteceu comigo e Dredge foi a imersão real. Eu fiquei tão absorvido pela sua atmosfera que me peguei “alucinando” coisas que poderiam acontecer ali no meio daquele mar fictício tal como o próprio Pescador na realidade do jogo.
Acho que no final, o meu ponto aqui é voltar a uma palavra que falei lá no começo e mostrar o quanto a nossa subjetividade é intrínseca para experiência de qualquer jogo. Isso é algo óbvio, é o básico da compreensão da forma como nós nos relacionamos com a arte. Contudo, quando o assunto é vídeo game, eu ainda vejo predominar uma mentalidade que a lendária “crítica imparcial” que produz uma “análise objetiva da obra” existe. Então quando eu digo que Dredge é um jogo assustador, eu falo isso partindo do meu medo pessoal com o mar. Isso afeta também outros aspectos da jogabilidade porque onde para alguns a pescaria pode ser enfadonha e repetitiva, para mim que adoro esses mini-games é uma diversão contínua. É de fato o meu jogo dos sonhos (e dos pesadelos).
O Backlogger precisa do seu apoio para crescer. Então, por favor, compartilhe ou deixe um comentário que isso ajuda imensamente o blog. Para mais textos pessoais clique aqui.




