Em Memória à Satoshi Kon é uma minissérie de cinco textos que pretendo fazer sobre a obra de um dos grandes diretores de animação que já existiu. Satoshi Kon iniciou sua carreira em 1984 e esteve em atividade até sua morte em 2010 por conta de um câncer pancreático. Durante esse período ele dirigiu quatro longas-metragens e uma série animada, Paranoia Agent, que considero tornaram clássicos modernos da animação. Dos filmes eu já cobri Tokyo Godfathers e hoje falarei sobre o seu segundo filme: Millennium Actress!

Satoshi Kon, um dos grandes diretores da história da animação, falecido em 2010

Millenium Actress é uma das mais fantásticas obras de Satoshi Kom, um filme que conta a história da vida da atriz Chyoko Fujiwara bem como a história do Japão dos anos 40 e 50 através do cinema
Satoshi Kon não errava mesmo!

Em 300 anos a.C, Aristóteles diria que a arte imita a vida. Em meados do séc. XIX, Oscar Wilde diria que a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida. E, em 2001, Satoshi Kon diria que a arte é a vida. Ok, ok, ele não falou exatamente essas palavras. Não sei se ele disse nem mesmo algo que seja remotamente próximo disso. É somente uma interpretação minha do que ele falava através do seu trabalho, em especial em Millennium Actress.

Esse filme é um passo importante na carreira do Satoshi Kon pois lhe deu mais controle criativo sobre sua obra. Algo que acredito que muita das pessoas que conhecem o seu primeiro filme, Perfect Blue, não sabem é que não é um trabalho 100% original dele. O roteiro é na verdade adaptado de uma light novel de chamada Perfect Blue: Complete Metamorphisis. Não que isso diminua o mérito do Satoshi na produção, eu citei esse fato apenas porque ao saber que esse segundo projeto deriva diretamente de uma ideia do diretor explica bastante toda paixão pelo cinema que vemos no filme. Millennium Actress não é apena uma obra que sai da cabeça do Satoshi, mas também do seu coração!

Quando o filme abre, somos inseridos numa ambientação de ficção científica claramente futurista. Uma mulher, que ainda desconhecemos, se encaminha para uma nave especial de uma base lunar. Um homem, que também desconhecemos, tenta impedi-la dizendo que se ela for não será mais capaz de voltar. Porém nós não vemos o desfecho desse momento porque é revelado que aquilo não passa de uma cena de um filme que existe dentro do filme que estamos assistindo. Essa pequena reviravolta já nos mostra que haverá uma qualidade especial na narrativa de Millennium Actress.

A partir daí nós então conhecemos dois personagens principais da trama, Genya Tachibana, que parece ser um entrevistador para algum estúdio televisivo, e o seu cameraman Kyoji. Os dois estão trabalhando uma matéria sobre o antigo e renomado Ginei Studios que foi a falência. Contudo o foco da história não está no estúdio e sim na sua principal atriz, Chiyoko Fujiwara, que protagonizou vários dos seus maiores sucessos. 30 anos antes dos eventos do filme, Chiyoki decidiu se aposentar e se afastar totalmente da vida pública. Após o sumiço de três décadas, ela decide enfim conceder uma entrevista a equipe de TV recontando seus passos como atriz.

Nesse comecinho Millennium Actress é bem tradicional no que esperamos ver numa obra biográfica. Mesmo que esteja se tratando de uma personagem fictícia. Temos uma montagem rápida passando por vários dos filmes da atriz que intercala com cenas do Tachibana e do Kyoji indo encontrá-la. Um contexto geral sobre a história de Chiyoki e do Ginei Studios é mencionado brevemente além de ficarmos cientes que o entrevistador é um grande fã. dela A atriz fala então sobre o início da sua carreira através de flashbacks e é aí que a narrativa especial do Satoshi Kon, em que a realidade se mistura com a ficção, mostra suas caras.

Cena de flashback onde vemos os documentaristas, Tachibana e Kyoji, testemunhando o passado de Chiyoki em tempo real
Não tem jeito, o cara era mestre!

Para facilitar o entendimento, vamos imaginar que existem duas realidades principais na história de Millennium Actress, o presente, no qual temos Tachibana, Kyoji e a Chiyoki mais velha, e o passado com as memórias da Chiyoki quando mais nova. Porém o Satoshi Kon distorce essa segunda realidade pois não vemos apenas as pessoas que passaram pela vida da atriz nele. Tanto o Tachibana e o Kyoji acabam inseridos no passado como se tivessem registrando-o conforme ele ocorre. Portanto a reação deles a narração da Chiyoki se torna mais complexa porque eles parecem estar revivendo o passado junto dela.

Mas as “surpresas narrativas” do Satoshi não param por aí!

Nessa primeira parte da narração de Chiyoko nós ficamos sabendo o porquê dela ter escolhido a carreira de atriz. Quando era apenas uma adolescente, ela foi descoberta por um dos olheiros do Ginei Studios lhe ofereceram uma participação no seu próximo filme. As gravações iam começar logo num lugar chamado de Manchúria. A mãe dela se opõe a oferta do estúdio porque quer que a filha se case e cuide da loja da família. Como Chiyoko é muito jovem ela apenas aceita a decisão da mãe e sai enfurecida de casa. É durante esse período que ela acaba por conhecer um misterioso artista, um pintor, que está fugindo da polícia. Depois de ajudá-lo a se esconder na sua casa, a jovem descobre que ele é um dissidente político se opondo às ações do governo na Segunda Guerra Sino-Japonesa.

Chiyoko acaba por se apaixonar pelo pintor que a convida a visitá-lo na sua aldeia quando o clima político do país se acalmar. Um dia, enquanto ela voltava de um passeio com suas amigas, a jovem percebe que a polícia descobriu o esconderijo. O artista foge a tempo e vai para estação de trem. Chiyoko tenta alcançá-lo, porém acaba caindo. Tudo que ela consegue é olhar o trem se afastar e jurar para o pintor que irá até ele de alguma forma.

Tachibana e Kyoji estão testemunhando a cena toda como estiveram fazendo nos últimos minutos do filme. Porém o entrevistador solta um comentário que adiciona mais complexidade na narrativa de Millennium Actress. Emocionado, ele conta para seu cameraman que “chorou 53 vezes quando viu essa cena no cinema”. Agora nós temos uma nova realidade na história, uma em que os filmes que Chiyoki participou de alguma forma também recontam eventos pelos quais ela passou na sua vida. A partir desse momento nós começamos a alternar entre as diversas camadas de realidade do filme, o passado, o presente, a ficção, o passado contado através da ficção, etc. E isso tudo ocorre de forma surpreendentemente orgânica.

Sequência curta em Millenium Actress em que podemos ver o filme alternando entre a realidade e a ficção
Cinema demais, bicho. Literalmente!

Um dos meus momentos favoritos de Millennium Acrtress é a cena acima que aparece na segunda metade do filme. Nessa parte já temos uma Chiyoki mais madura e já com uma carreira de renome no cinema. Contudo ela segue tentando encontrar o pintor, que sabemos acabou preso em algum momento após o fim da Segunda Guerra Mundial.

A cena abre com Chiyoki conversando com a sua mãe que não está satisfeita com o fato da filha não querer se casar e continuar perseguindo um homem que ela mal conhece. Portanto assumimos que esse é mais um flashback do seu passado. Porém, entre um corte e outro, a personagem da mãe muda e vemos outra atriz, Eiko Shimao, no seu lugar. Agora a gente entende que é mais outro exemplo de um filme contando a história verdadeira de Chiyoki. Porém a realidade da cena muda outra vez, pois quando a câmera troca de posição nós vemos a equipe de filmagem revelando que agora estamos realmente num flashback de um dia de gravação de um filme que acaba fazendo reconstruindo um momento pelo qual Chyoki passou pela mãe. Ufa! São esses tipos de saltos que ocorrem o tempo todo do segundo ato em diante em Millennium Actress.

É fantástico o como essa narrativa é muito fluida e clara no filme. Talvez soe um pouco confuso, porém isso é apenas eu falhando como um comunicador. Se você assistir, verá o quão fácil é entender o que está se passando. Porque o Satoshi Kon não era apenas um bom diretor, mas também um bom contador de histórias. Ele sabe manter uma narrativa intrigante, complexa e, ao mesmo tempo, com uma clareza ímpar que qualquer um na audiência será capaz de traduzir.

E eu não acho que isso é apenas por conta da habilidade do Satoshi. Tem uma certa influência de o quão nós, subconscientemente, somos capazes de compreender a realidade que nos cerca através das lentes da ficção. Uma frase muito comum sobre a arte é dizer que ela é produto da sua época. Ou seja, ela sofre influência dos movimentos políticos, históricos, sociais e culturais daquele instante em que ela se origina.

Um exemplo clássico é O Senhor dos Anéis, o livro original. É de conhecimento público que J. R. R. Tolkien sempre insistiu que a sua história não era uma alegoria sobre a Segunda Guerra Mundial. De fato dá para argumentar que ele não aludiu a nenhum evento específico daquele conflito. Porém, é muito difícil não fazer essa conexão numa história em que temos diversos povos se unindo para derrotar um inimigo em comum que quer tomar o controle daquele mundo. Ainda mais se consideramos que o Tolkien não só lutou na primeira das duas Guerras Mundiais como o livro foi escrito durante a segunda. Mesmo que ele não estivesse conscientemente escrevendo sobre ela, o “espírito” daquela época acabou por influenciá-lo.

Por isso que uma das minhas interpretações de Millennium Actress é como a animação argumenta que o cinema, a arte, é um reflexo do que está acontecendo no mundo naquele período. Às vezes de formas literais, às vezes de forma figurada. Eis o motivo da frase “a arte é a vida”. Assim os filmes de Chiyoki contam a sua história porque ela viveu sua vida através do cinema, usando as produções como uma forma de procurar o homem pelo qual se apaixonara.

Mas o Satoshi Kon usa Millennium Actress não apenas para contar a história de uma atriz fictícia. Ele também usa seu filme como um veículo para mostrar a história do cinema japonês, passando pelos épicos de jidaigeki e indo até a ascenção dos filmes de kaiju. Por consequência, os filmes também mostram a história do próprio Japão.

Exemplo de um filme propaganda que ficaram muito comuns durante o final da década de 30 no Japão sendo retratado em Millenium Actress
Camadas, camadas em todo lugar!

Não é a toa que tanto Ginei Studios escolheu Manchúria para fazer o seu filme na realidade da animação e o Satoshi a escolheu como um tema tão importante da história. Manchúria é um lugar real, uma região do nordeste da China que, em 1931, foi invadida e controlada pelo exército japonês. Apesar de não ficar claro a exata época em os eventos de Millennium Actress ocorreram, pelo contexto dá para assumir que Chiyoki na adolescência estava em algum ponto do final da década de 30. Quando ela se aposenta, já estamos entre os anos 60 e 70. Então é seguro assumir que temos um intervalo de 30 até 40 anos onde os principais momentos do filme acontecem.

Voltando a Manchúria. Alguns historiadores consideram que a invasão da região é o ponto de partida da Segunda Guerra Sino-Japonesa que viria a se tornar parte da segunda Guerra Mundial. Só que a região não foi escolhida somente como um marco histórico para podermos nos situar na cronologia do filme. Quando Chiyoki decide se juntar ao Ginei Studios ela fala para o diretor que “quer servir ao seu país”. Qual o motivo dessa fala? É para mostrar que personagem era uma patriota? Bem, não! Até porque sabemos que ela só está ali para poder ir atrás do pintor. A fala de “servir ao país” é uma referência ao estado que o cinema japonês se encontrava naquele período.

O cinema japonês já existia desde o começo do séc. XIX e foi a partir dos anos 20 que começou a ganhar popularidade. Com os conflitos militares da década de 30, o governo viu naquele uma mercado em ascensão uma ótima ferramenta de comunicação. Assim esses anos foram marcados por um grande envolvimento do governo na produção de filmes. Criaram-se leis para garantir que os títulos seguissem os interesses políticos do país, bem como uma larga produção de filmes propagandas. O filme que o Ginei Studios está gravando em Manchúria retrata uma guerra e é seguro assumir que se passa durante os conflitos contra os chineses.

Numa cena seguinte, Chiyoki é vista pegando um trem que supostamente estaria levando-a para aldeia do pintor. Entretanto no meio do caminho há uma explosão que causa um descarrilamento. Chiyoki e os passageiros veem vários bandidos do lado de fora que atiram contra o veículo. A jovem tenta escapar por uma porta e quando ela finalmente consegue abri-la o cenário muda. Agora não estamos mais na Manchúria dos anos 30 e sim em um filme épico retratando algum período do Japão feudal onde está havendo uma invasão.

Novamente, a escolha do trem não é uma mera coincidência. A invasão de Manchúria foi justificada pelo governo japonês como uma resposta ao incidente de Mukden, quando um grupo terrorista chinês teria tentado sabotar os trilhos de uma ferrovia da região. Hoje sabe-se que a explosão foi causada pelo próprio exército japonês para criar um pretexto para iniciar um conflito com as tropas chinesas e tomar o controle de Manchúria.

Por isso que os primeiros filmes que vemos Chiyoki participar se passam em períodos de guerra, pontuando não apenas o belicismo como também o autoritarismo do governo japonês durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa. Depois deles, temos uma segunda leva de filmes que refletem um Japão se reconstruindo e tentando superar os medos e as marcas deixadas pela Segunda Guerra Mundial. Já o último filme que Millennium Actress representa e último filme que a Chiyoki grava é uma ficção científica. Especificamente uma sobre exploração espacial. Aqui notamos um tom mais esperançoso com o futuro do Japão que também se refletia no seu cinema que finalmente tinha liberdade para dar voz a novas histórias.

Millennium Actress é, sem dúvidas, um drama muito emocionante sobre a vida de uma atriz. Ao mesmo tempo ele funciona como uma maravilhosa carta de amor pelo cinema. Você pode sentir a paixão do Satoshi Kon em cada quadro, nos mostrando que aquelas histórias falam muito mais do que apenas aquilo que achamos estar vendo nas telas.

Chiyoko Fujiwara, protagonista do filme

Backlogger precisa do seu apoio para crescer. Então, por favor, compartilhe ou deixe um comentário no texto que isso ajuda imensamente o blog. Você também pode me seguir em outras redes como TwitterBluesky e Tumblr. Para mais artigos clique aqui.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *