
Em 1996, Pânico deu uma revigorada no saturado gênero dos filmes slashers que perdera o fôlego depois de uma sucessão de produções questionáveis que só visavam explorar uma tendência de mercado. Ironicamente, o filme acabou criando uma nova leva de produções questionáveis que só visavam explorar a NOVA tendência de mercado. O ano de 1998 é emblemático nesse cenário. Nele tivemos Lenda Urbana – a mais descarada tentativa de produzir um clone de Pânico – e duas tentativas de trazer de volta slashers conhecidos como Halloween H20: 20 Anos Depois e A Noiva de Chucky. Mas o filme mais importante (só para os fins deste texto) veio no ano anterior: Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado.
Estrelado por Jennifer Love Hewitt e Freddie Prinze Jr., esse foi um dos slashers de maior sucesso no final daquela década. 125 milhões de bilheteria, contra um orçamento de 17 milhões de orçamento. Porém não dá para dizer que foi por mérito próprio, pois o ele tinha algo a seu favor: um roteiro assinado por Kevin Williamson, ninguém menos que o criador de Pânico. Entretanto, os filmes tinham muito pouco a ver um com o outro. Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado é na verdade uma adaptação de um livro homônimo da década de 70 que o Kevin Williamson escreveu antes de Pânico. O roteiro inicialmente foi rejeitado pela Columbia Pictures, mas com o sucesso de então um produtor resolveu indicá-lo para Mandalay Entertainment.
Depois de receber uma aprovação, o Kevin foi instruído a reescrever algumas partes para que o filme se aproximasse mais de um slasher tradicional em vez do thriller do original. De tal forma, Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado tem muito mais a ver com A Morte Convida para Dançar (1980) e Assassinatos na Fraternidade Secreta (1982) do que Pânico. Todos esses filmes retratam um grupo de jovens sendo perseguidos por um misterioso assassino em busca de vingança.
Apesar do seu sucesso de bilheteria, a recepção por parte da crítica foi, sendo generoso, mista. Não é nenhuma surpresa. Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado, e a tentativa de torná-lo uma franquia, nunca chegou próximo de ser um bom slasher. Admito que a premissa é muito boa, entretanto a execução deixa a desejar. Por esse mesmo motivo que eu acho que também não deveria ser nenhuma surpresa que o seu mais recente capítulo também se encontra abaixo da linha de medíocre. Mais do que isso, Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado é um dos exemplos mais idiotas da nova tendência de “filmes legado”.
Spoilers de Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado – o original e suas sequências – e Pânico 4 porque eu não quero que vocês percam tempo com nenhum desses filmes.
O dia que eu soube da existência de um nonvo Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado ficou marcado na minha cabeça. Foi no mesmo dia que eu e meu amigo decidimos ir assistir Superman. Estava em casa, me preparando para sair, quando decidi dar uma olhada no Facebook. No que considero um castigo divino, o trailer patrocinado do filme apareceu na minha linha do tempo. A princípio eu achei que seria apenas mais um daqueles remakes/reboots que uma Hollywood em decadência criativa vem nos empurrando há décadas. Adoraria que fosse isso, mas o Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado conseguiu ser pior. Naquele dia eu sai de casa sabendo que esse seria o filme mais idiota desse ano*.
*Na época eu ainda não sabia do filme
Guerra dos Mundos com o Ice Cube!
Quem já pegou alguns quadrinhos de super-heróis para ler deve estar familiarizado com o conceito do “personagem legado“. Essa é uma tradução literal (e potencialmente errada) de legacy character, mas estou com preguiça de procurar se existe um termo equivalente em português. Enfim, o “personagem legado” seria aquele cuja identidade é passada, às vezes literal, às vezes simbolicamente, por um personagem mais antigo. O famoso passar o bastão. O meu exemplo favorito é o Fantasma porque esse conceito de legado é uma parte essencial da própria mitologia do personagem. Mas para citar algo mais popular da nossa contemporaneidade, Miles Morales é um perfeito exemplo desse tipo de personagem.
O conceito expandiu para o cinema através das ditas legacy sequels e na última década com muitos filmes evocando essa noção de legado. Creed, a nova trilogia de Star Wars, Candyman, Ghostbusters: Mais Além, Top Gun: Maverick, etc. A própria franquia de Pânico, que hoje mais parece ser uma espécie de TV Tropes do cinema, fez o mesmo com Pânico 5. Logo, foi só uma questão de tempo até alguém pensar que daria para fazer um “filme legado” com Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado. Uma ideia idiota, mas quando o assunto é filme de terror isso costuma ser comum.
Mas porque eu acho idiota? Bom, tenho duas respostas. A primeira é que não acho que essa é uma franquia que teve algum impacto cultural que justificasse essa tentativa. A segunda, e a que considero mais importante, é que legado é um conceito que não cabe no universo de Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado!

Vamos tratar das duas respostas. O primeiro filme de fato tem cult following, porém tudo que veio depois dele não deixou qualquer marca no imaginário coletivo. A sequência Eu Ainda Sei O Que Vocês Fizeram No Passado veio e foi embora, arrecadando menos dinheiro e com uma recepção bem pior. Só não dá para dizer que ela matou totalmente a ideia de franquia porque ainda existe outro filme. Eu Sempre Saberei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado foi praticamente um spin-off puxando para o lado sobrenatural que saiu para DVD e que ninguém em sã consciência viu.
Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado ainda teve uma série de televisão em 2021 que durou apenas uma temporada. É bem provável que a maioria deve estar sabendo da existência dela hoje. Eu não a considero exatamente como uma parte da franquia porque a intenção parecia ser uma releitura mais atual do livro e não do filme. De qualquer forma, não ter uma franquia de grande sucesso não é um motivo para continuar tentando. Nos vídeos games, Bubsy vai ter mais um jogo aí (e pior que parece bom). O que pesa mesmo para mim é, como eu disse, não existir uma base para um legado dentro do próprio Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado.
Hora da revisão!
A trama do primeiro filme começa com um grupo de quatro amigos que moram na cidade de Southport – Julie (a protagonista), Ray, Helen e Barry – voltando de um concurso de beleza. Ray, o par romântico de Julie, está dirigindo quando uma distração causada por Barry faz com ele atropele um pedestre, aparentemente matando-o. Sem testemunhas ao redor e com medo de serem presos por homicídio, o grupo decide se livrar do corpo e jurar nunca mais falar sobre o ocorrido. Passa-se um ano e Julie volta para Southport durante as férias. Pouco tempo após sua chegada ela recebe uma carta com a mensagem “Eu sei o que vocês fizeram no verão passado!”. A partir daí, um homem encapuzado passa a perseguir Julie e seus amigos, matando um por um.
Depois da premissa, não tem muito mais o que se tirar de Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado. Cinematograficamente falando, o filme não tem nada para se destacar dos slashers que o precederam. Não tem um assassino icônico, a atmosfera é fraca e os sustos/mortes são baratos. Porém eu acho que o pior é o roteiro que não apresenta nada de substancial em personagens ou temas. Deveria ter no mínimo um dilema moral que puxasse o filme, mas nos entregam apenas o sentimento mais comum de culpa por um erro do passado. Isso não mudou nada 28 anos depois, aliás.
Fora que o mistério é quase inexistente. Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado só fica te enrolando por uma hora até que chegue o momento obrigatório de mostrar a identidade do assassino. Não é algo tão ruim como Quem Matou Rosemary, mas também não chega ser bom. Como o filme não tem qualquer ideia, o máximo que ele consegue fazer de reviravolta é revelar que o assassino era o mesmo homem que o grupo atropelou e deu como morto no início da história. A sequência consegue deixar isso pior porque ela apenas repete essa reviravolta e, para dizer que tem algo diferente, introduz um filho do assassino que se faz passar por um dos novos amigos de Julie.

Aí eu pergunto a vocês, com todas essas informações, vocês acham que esse novo filme tem alguma base sólida para sustentar um legado? A pergunta é retórica pois a resposta é claro que é não!
Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado de 2025 quer muito ser um reboot, ele DEVERIA ser um reboot. Porém, infelizmente, ele precisa trazer personagens antigos porque a nostalgia hoje virou combustível para produção cultural. A premissa é em essência a mesma do primeiro filme, apenas trocando alguns detalhes superficiais. Agora não são quatro amigos, são cinco. Não vou me preocupar a dizer o nome de nenhum deles, porque nenhum deles importa, nem mesmo a protagonista. A única exceção é a Stevie e vocês já devem imaginar porque. Em vez de estarem voltando de um concurso de beleza, o grupo está indo ver os fogos de artifício no Dia da Independência depois da festa de noivado de dois deles. A vítima agora não é mais atropelada, ela perde a direção por causa de um dos personagens parado no meio da rua e o carro cai de um penhasco.
Mais uma vez não tem testemunhas no local e os personagens resolvem não contar para a polícia o que aconteceu. Eles até ligam para reportar o acidente, porém depois o pai do riquinho do grupo usa sua influência para evitar que eles sejam investigados. Um ano depois a protagonista volta para a cidade para o chá de panela da sua amiga, que agora vai casar com outro personagem igualmente sem importância, elas recebem bilhete falando “Eu sei o que blá-blá-blá”. Vocês já entenderam!
Se o filme quisesse ele poderia continuar daí sem fazer qualquer ponte com o original, porém uma podcaster que a protagonista conhece no aeroporto cita o massacre de 1997. Pronto, agora nos metemos na desgraça de um “filme legado” e o roteiro precisa fingir que existe uma necessidade em conextar ambas as histórias. Mais a frente, quando as mortes começam e a polícia não dá sinal que irá investigar muito a fundo porque o pai do riquinho segue fazendo pressão, a protagonista resolve buscar ajuda. Isso a leva até Julie, que dá aulas numa universidade fora de Southport e ainda lida com os traumas dos eventos dos filmes anteriores.
Depois de dar o excelentíssimo conselho de “vocês precisam descobrir quem é o assassino”, Julie encerra suas contribuições para a trama. Ok, minto. No final ela aparece para distrair o assassino por uns segundos, dando tempo para a protagonista acertá-lo com um arpão. Quisera eu estar exagerando. Dá para contar nos dedos de uma mão as cenas que Julie aparece. O filme desperdiça por completo a personagem a ponto de você se perguntar porque tiveram o trabalho de trazer a Jennifer Love Hewit de volta. *sussurra* Falsa nostalgia!
Ray, o personagem do Freddie Prinze Jr., consegue ter muito mais espaço e importância para a história e infelizmente não por bons motivos. Ele começa num papel de mentor como o chefe de Stevie e também aconselhando os personagens como descobrir quem é o assassino. Também ficamos sabendo que em algum momento ele e Julie se divorciaram pelas divergências de como lidar com seus traumas.
Agora vamos falar de Stevie. Ela é a personagem que tem o fundo mais trágico de Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado. Na verdade, ela é a única que tem uma história. É até indicado que a mãe da protagonista faleceu, porém isso não é usado para nada além de uma linha de diálogo no início do filme. A vida de Stevie não foi das melhores. O pai gastou toda sua poupança para a faculdade e, sentindo vergonha de si mesmo, a abandonou. Isolada, uma vez que seus amigos foram para universidade, Stevie acabou se envolvendo com drogas e teve que ir para reabilitação da qual ela saiu recentemente. Quando o filme começa, ela está sob os cuidados de Ray, que prometeu ao seu pai que cuidaria dela.
De longe Stevie é a personagem com que conseguimos mais simpatizar. Ela é a que mais sofreu no grupo e cuja vida poderia ser totalmente arruinada por causa do acidente. Tanto que ela fala que se a polícia ficasse sabendo, ela era a única ali que não poderia pagar um bom advogado. Toda essa carga dramática por trás da personagem faz a gente pensar por que ela não é a protagonista, né?
E vocês sabem por que ela não é, né?

Isso mesmo, Stevie é a nossa assassina que resolveu se vingar dos seus amigos por terem abandonado-a e porque, aparentemente, namorava o rapaz que morreu naquela noite. Esse desfecho acaba sendo previsível por um simples processo de eliminação. Ao final restam três personagens, a protagonista, sua melhor amiga e Stevie. Sabemos que não é possível que as duas primeiras não podem ser o assassino a não ser que o roteiro decida paga de louco. Assim ficamos com uma revelação tão sem cerimônia que é como se o próprio filme estivesse desistindo de si mesmo. “É o que tem pra hoje!”, diz Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado com a maior cara lavada.
Mas, calma lá! Porque tem outra reviravolta, é claro que tem. Pois não tinha como Stevie fazer isso tudo sozinha, não é mesmo? Por um breve momento eu cheguei a achar que o filme ia fazer algo bem idiota como dizer que ela era parente do assassino dos outros filme. Conseguiu ser ainda pior! Porque quem esteve ajudando Stevie esse tempo todo era… Ray! Depois de matar tantos personagens, Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado achou que seria bom também matar metaforicamente o caráter do outro personagem mais importante dessa franquia para termos um “legado”.
A justificativa chega ser tão risível quanto a própria revelação. Julie, para dizer que faz alguma coisa nessa história, chega a conclusão que Ray deveria estar ajudando Stevie depois de ouvir que ela era a assassina. Ela vai até o seu bar quando Ray está próximo de matar a protagonista e os dois têm uma última discussão. Stevie veio pedir ajuda para se vingar dos seus amigos e ele simplesmente decide que a melhor forma seria matá-los. Mas como? Usando o mesmo método do cara que o traumatizou no passado, claro!
Para não dizer que é apenas isso, Ray também mostra uma raiva da cidade tentando apagar a história dos massacres que traumatizaram ele e Julie. Fica particularmente engraçado quando a gente lembra que uma das primeiras vítimas é a podcaster que iria fazer um episódio contando sobre esses mesmos eventos. É uma tentativa tão forçada de dar uma motivação para o vilão que até me deu uma nostalgia real. Porém não por essa franquia e sim por Pânico 4, onde a vilã revela que planejou a morte dos seus amigos (e da própria mãe) só para ficar famosa igual sua prima Sidney. Pânico 4 pelo menos pode alegar que tentou elaborar um comentário sobre a ideia de fama no mundo das redes sociais. Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado só não sabia o que fazer com sua história.
O roteiro e humor dolorosamente sem graça já seriam o bastante para fazer deste um dos filmes mais idiotas de 2025. Mas o que consagra Eu Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado de fato é o quanto essa produção se força para dizer que há algum legado ali a ser explorado. Existem filmes que são uma ofensa à inteligência do seu público, mas esse vai além. É um filme que mostra como os estúdios tem a plena certeza que as pessoas se tornaram tão dependentes da nostalgia que são capazes de lançar qualquer coisa contanto que ela esteja conectada, ainda que da forma mais imbecil possível, a alguma coisa do passado.
Enfim, não sei quanto a vocês, mas agora eu vou ficar esperando o fatídico dia que irão anunciar um “filme legado” de Lenda Urbana. Porque certamente tem algum engravatado por aí que acha que existe nostalgia por essa franquia também.
…
Eles já estão trabalhando num novo filme de Lenda Urbana, não estão? FILHOS DA P-
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Demorei até ler “Pânico 4” para perceber que série era essa (Scream, para os nossos amigos internacionais)…
Pô, eu tenho que me lembrar de colocar o título original. Sempre esqueço desse detalhe. Não sei se também é comum aí na Espanha, mas aqui direto as distribuidoras mudam títulos achando que a tradução do original não vai colar. Tem uns até que são legais, Airplane! aqui virou Apertem os Cintos… O Piloto Sumiu, outros nem tanto como o caso do Il buono, il brutto, il cattivo que virou Três Homens em Conflito. Curiosamente o found footage espanhol REC saiu com esse nome aqui, mas por exemplo, na sequência eles já colocam um subtítulo e ficou como REC 2: Possuídos
Na Espanha também tivemos muito disso. “Airplane!” era “¡Aterriza como puedas!” e “The Naked Gun” era (é) “Agárralo como puedas” porque queriam ligá-los. Meu favorito é “Soñando, soñando… triunfé patinando” (“Ice Princess”) porque é bem recente (2005) e bobo.
De qualquer forma, não se preocupe. É sempre divertido ler algo como “O homem que veio do futuro” e adivinhar qual é o título original.