Flow: uma vitória para a animação

Na imagem tem o gato cinza que protagoniza o filme Flow. O gato flutua no que parece ser um cosmo azul com uma luz branca brilhando atrás dele

Ontem tivemos a 97ª edição do Oscar em que o Brasil arrebatou o seu primeiro prêmio na história do cinema nacional. O enorme sucesso de Ainda Estou Aqui garantiu uma estatueta na categoria de Melhor Filme Internacional, uma conquista mais do que merecida. Tal vitória só poderia ficar melhor se a nossa queridíssima Fernanda Torres tivesse levado o prêmio de Melhor Atriz. Como comentei no meu texto, a atuação dela é um dos pontos mais comoventes do filme e seria outra vitória merecida. Infelizmente a história voltou a se repetir, agora resta esperar mais 25 anos para a neta da Fernanda Montenegro corrigir esse erro da Academia. Porém, o Brasil tem muito a comemorar e não é o único. Outro vencedor da noite merece nosso prestígio: Flow (Straume).

O filme letão dirigido por Gints Zilbalodis ganhou na categoria de Melhor Animação e essa também é outra vitória histórica. Flow além de ser a primeira indicação ao Oscar da Letônia depois de décadas de submissões, é também a primeira animação independente a receber o prêmio. Se isso já não fosse um marco e tanto para o país, o filme também fez história por ser totalmente produzido num software de código aberto, Blender. Essa é uma conquista a ser comemorada não apenas pelo país, mas por artistas em todo o mundo.

Quero muito acreditar que a vitória de Flow abrirá um precedente muito positivo para a categoria. Há muitos anos que vemos os prêmios se centralizarem no eixo Disney-Pixar com seu perfeccionismo técnico 3D multimilionário. Não diminuo o mérito dessas vitórias – com exceção de Big Hero 6, aquele ano foi uma palhaçada – apenas acho que isso tira o espaço de outras vozes que precisam muito mais desse holofote. No ano anterior tivemos uma animação tradicional, O Menino e a Garça, e antes disso uma animação stop-motion, Pinóquio. Portanto estou otimista num futuro mais plural para a categoria de animação.

Mas também não precisamos ficar medindo a vitória de Flow apenas pelo seu potencial impacto na mídia. Afinal o filme mostrou uma imensa competência técnica e emocional.

O filme mostra um gato solitário que vive numa floresta num mundo pós-apocalíptico em que a humanidade aparentemente foi exterminada. Depois que um dilúvio ocorre, o gato busca refúgio num barco à vela junto de uma capivara. Logo outros animais se juntam a eles formando um grupo peculiar: um lêmure, um labrador e um secretário (uma espécie de ave de rapina). Agora os cinco precisam unir forças para sobreviver à enchente ao mesmo tempo que lidam com as suas diferenças.

Na imagem estão os cinco animais principais do filme Flow: um secretário, um labrador, uma capivara, um lêmure e um gato cinzento. A câmera os filma de lado, mostrando o barco à vela no qual eles se refugiaram para escapar da enchente

Flow tem uma dualidade interessante. Apesar de não ser tão estilizado quanto outras animações, a direção artística confere bastante expressividade aos animais sem fugir do natural. Isso é tanto no design quanto na animação. O gato se move e age como um gato, a capivara se move e age como uma capivara e por aí mais. Eles não falam e suas interações, seja com o ambiente ou um com os outros, são similares ao que observamos na natureza. Claro que algum veterinário ou biólogo pode argumentar que “não é bem assim”, mas anos de tweets do Neil DeGrasse Tyson já nos ensinaram a ignorar esses tipos de picuinha.

Contudo isso não implica que os animais de Flow não tenham personalidade, tal como aquela bizarrice do remake fotorrealista de O Rei Leão. O filme é capaz de reunir o melhor de dois mundos de forma brilhante, fazendo com que o elenco não sejam apenas animais naturalmente cativantes por serem animais. Eles nos ganham por serem bons personagens.

O gato a princípio mantém um distanciamento dos outros bichos, uma vez que estava acostumado a viver sozinho. Inclusive é aquele que tem o arco mais evidente, tendo que aprender a conviver com outras espécies e ser parte de um bando. A capivara, por sua vez, além de ser a mais tranquila e cooperativa, é o coração do grupo. O lêmure funciona em partes como um alívio cômico, pois tem um jeito um tanto neurótico e tem uma obsessão em acumular quinquilharias, comportamento que gera alguns dos conflitos do filme. O secretário já é uma figura mais trágica ali dentro, uma vez que os motivos que o levam a se juntar ao grupo causam uma mudança radical no seu jeito de ser. Por fim o labrador, bom, ele é um labrador.

A diversidade do elenco torna-se um dos carros-chefes da animação porque é o que a permite ecoar com vários espectadores. Mesmo que o filme não tente antropomorfizar os animais, não é difícil projetar características humanas e até mesmo se identificar com eles. Por exemplo, em dado momento irrompe uma briga quando o secretário joga a bóia de vidro do lêmure na água. O lêmure tenta virar o leme, porém a ave é maior e mais forte e não deixa que ele tome controle da embarcação. Em meios aos grunhidos, dá para reconhecer o padrão de uma discussão que com certeza aconteceria se tivéssemos cinco humanos nesse contexto.

Essas desavenças são o principal conflito de Flow. Ainda que a enchente seja uma constante pela maior parte do filme, a maior tensão está no atrito dessas espécies. Claro que existem situações que envolvem aspectos externos. Uma em particular que vale a pena destacar é quando o grupo chega numa cidade. Por conta do espaço estreito entre as construções, a gente prende a respiração temendo que a vela vá se chocar com alguma parede. Porém os momentos mais memoráveis vem da interação de grupo entre si e com outros que eles encontram nessa jornada.

Na imagem, um labrador branco olha para um lêmure que tenta colocar uma boia de vidro no barco. Atrás deles, um gato cinzento os observa deitado na grama.

A câmera flutua o tempo todo por eles, trazendo momentos de descontração e deslumbre que novamente faz uma “humanização não-intencional” com essas pequenas criaturinhas. A falta de diálogos também contribui muito para manter nossa atenção em cada frame, absorvendo cada detalhe das cenas.

É muito provável que Flow se torne um daqueles filmes que geram leituras distintas. Você consegue fazer interpretações ambientalistas, sociais e até mesmo bíblicas nele, já que seus temas não estão marcados a ferro e fogo. Isso é intencional, porque o filme está o tempo todo estimulando a sua imaginação com alguma pequena informação. As misteriosas gigantes que vemos a todo momento são uma das particularidades que te fazem questionar o que aconteceu naquele lugar. Também tem uma sequência especial que ocorre entre o gato e o secretário, bem lá para o terço final de Flow, em que o filme adquire um tom surrealista pontual e magnífico. Vai render muitas discussões sobre seus possíveis significados, mas eu não prefiro arranjar explicações. O que mais me admira na cena é a sua demonstração do poder da animação de criar quadros fantásticos em todos os seus sentidos.

Não há porque me alongar em mais detalhes aqui. Flow não é uma experiência a ser ouvida, mas sim vista. Não tem a menor graça falar dele com base nos seus eventos. Isso acontece, depois isso e então aquilo. Eca! É um filme que se pauta muito mais nos sentimentos do que no seu roteiro. Para mim, animação é uma mídia a ser sentida, não descrita. Então parem de me dar atenção e vão lá prestigiar essa obra de arte!

Antes de encerrar eu queria reforçar mais uma vez como Flow é uma vitória para a animação como um todo. Ele mostra que você não precisa de um orçamento milionário e com as ferramentas mais sofisticadas do mercado para atingir o público. Um diretor, com uma pequena equipe, um software de código aberto e uma visão artística muito clara chegou lá e espero que isso pavimente o caminho para que muitos outros o alcancem.


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4 comentários em “Flow: uma vitória para a animação”

  1. Um filme sublime! Resenha fez jus à grandiosidade dessa obra de arte que é uma experiência para ser vista, como bem lembra a autora do texto.

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