Considerando que estamos há um dia do lançamento de Homem-Aranha: Através do Aranhaverso, essa é uma boa hora para tecer comentários sobre Homem-Aranha no Aranhaverso. Não é nenhuma daquelas opiniões cinematográficas polêmicas (até porque eu acho esse tipo de coisa uma tremenda bobeira). Minha opinião não difere nem um pouco do consenso popular que Homem-Aranha no Aranhaverso é uma animação fenomenal. Junto com Batman: A Máscara do Fantasma ela está entre minhas histórias de super-heróis favoritas.

Também o que eu tenho para falar não é nada de muito fantástico. A mensagem do filme é, para todos os efeitos, óbvia. E nem digo óbvia aqui como uma forma de tentar menosprezar a animação. É porque não existe mesmo qualquer sutileza nessa questão. A cada 10-15 minutos de filme tem pelo menos uma linha de diálogo que tangencia esse ponto. E no final a narração do Miles Morales elimina qualquer dúvida sobre o que o filme está falando.

Miles Morales, nova versão do Homem-Aranha apresentada em Ultimate Marvel
Miles Morales, o primeiro Homem-Aranha negro fez sua estreia nas HQs no início da década de 2010

Então, sem mais enrolação, Homem-Aranha no Aranhaverso é uma resposta ao reacionarismo presente na cultura pop em relação as novas releituras de personagens consolidados. Acho que a maioria não colocaria a mensagem exatamente dessa forma e resumiria com “qualquer um pode ser o Homem-Aranha”, só que eu quero ir um pouco mais além.

E antes de prosseguir, eu preciso definir uma coisa.

Reacionário é um termo largamente utilizado na ciência política. Ele descreve pessoas, movimentos e grupos políticos que almejam o retorno da sociedade para um estado político anterior ao atual. Não é a mesma coisa que conservador, embora dividam alguns pontos em comuns, e uma comparação que eu achei mais interessante é dizer que o reacionário é a antítese do revolucionário. Enquanto este pensa num novo estágio futuro para a sociedade, o reacionário busca retomar o passado ao qual ele idealiza. Então, resumindo, o reacionário é um indivíduo que se opõe com veemência as transformações sociais contemporâneas.

De maneira análoga, quando eu uso reacionário no contexto da cultura pop, sobretudo no meio geek/nerd, eu não estou me referindo necessariamente a questões políticas. Aqui eu me refiro a um comportamento que desde 2010, provavelmente até mesmo antes disso, vem se agravando nas redes sociais. Falo do repúdio instantâneo a qualquer mudança na etnia, gênero, sexo, etc; de algum personagem seja ele de filmes, séries, HQs e por aí vai.

Miles Morales surgiu no mundo dos quadrinhos pela revista Ultimate Marvel em 2011. Nesse universo, vários personagens clássicos – super-heróis, vilões e até personagens coadjuvantes – foram reimaginados e modernizados. O Miles aparece após o arco da morte de Peter Parker, dez anos depois do início de publicação da revista, assumindo o manto do herói. E após o fim da revista em 2015, Miles foi um dos escolhidos para se integrar ao universo mainstream da Marvel. Hoje ele não é apenas mais uma versão alternativa do Homem-Aranha e conquistou seu espaço próprio. Mas apesar de que o Miles tenha agora uma fanbase sólida, o começo não foi tão receptivo assim.

Sendo um pouco generoso, dá para entender parte desses infames “mixed feelings”. Diferente de um Miguel O’Hara, a versão futurista do Homem-Aranha na revista Marvel 2099, a inclusão do Miles se deu com a morte do seu antecessor. Logo, há de se esperar que muitos fãs tivessem alguma rejeição inicial ao ver outro personagem assumindo o lugar dele.

Porém também não dá para descartar que para outros casos também houve uma influência desse reacionarismo da cultura pop que tem alguns preconceitos enraizados. Isso porque nos anos seguintes fomos observando cada vez mais casos de desaprovação com novos personagens, sobretudo aqueles que representavam alguma minoria. Com isso, vou pegar um rápido desvio antes de falar de Homem-Aranha no Aranhaverso pois precisamos comentar como “a lacração está estragando o mundo dos quadrinhos”.

A ASCENÇÃO DOS ANTI-LACRADORES

She-Ra na série animada de 1985 e no reboot da Netflix de 2018
5 anos atrás She-Ra fez um monte de marmanjo chorar na internet. Infelizmente pelos motivos errados

Infelizmente eu retenho muitas memórias das quais eu não gostaria de reter. Uma delas vem de 5 ou 6 anos atrás quando anunciaram She-Ra e as Princesas do Poder, reboot da série animada de 1985 que apresentou a personagem para o mundo. O que me lembro desse dia é de ir na internet e ver um bando de marmanjo, entre uns 20 e 30 anos – alguns até beirando os 40 – putos da vida pela mudança de visual da personagem. She-Ra deixou de ser aquela típica gostosona voluptuosa das animações americanas oitentistas e teve um redesign que buscava não sexualizar a personagem. Essas reações só pioraram após o lançamento da série quando vários desses marmanjos notaram a inclusão de temas LGBTQ+ no desenho. Inclusive eu recordo de uns comentários específicos xingando o novo design da She-Ra dizendo que ela parecia um “menino vestido de menina”.

She-Ra não foi a primeira e infelizmente não foi a única a ser vítima desse tipo de “controvérsia”. Aliás ela não foi a única nem mesmo dentro do universo do He-Man. Dois anos atrás Mestres do Universo: Salvando Eternia recebeu reações parecidas pelas simples decisão de colocar a Teela como a protagonista. Eu perdi as contas de quantas vezes vi o termo “feminista” sendo usado de forma pejorativa pra falar dessa série.

Há mais de décadas que vemos esse tipo de discurso permeando determinados setores da internet. Pessoas zangadíssimas porque irão mudar um aspecto, seja na personalidade, no design, no que for; de algum personagem numa nova adaptação. O velho, saturado e patético “estão destruindo a minha infância”. São sempre as mesmas falas, às vezes as mesmas pessoas, repetindo que tudo isso é culpa do politicamente correto, falando que querem empurrar a “agenda woke” e, aqui no Brasil, que é tudo lacração.

No universo dos quadrinhos isso não é diferente e tais polêmicas pipocam de vez em quando. Até mesmo eu, que não li mais do que algumas HQs do Batman, umas do Homem-Aranha, Born Again do Demolidor, Old Man Logan e alguma história do Justiceiro que eu já não lembro o nome – ah sim, li Watchmen também, afinal todo mundo tem que ler Watchmen – já vi casos o suficiente para ficar de saco cheio.

Um que eu me lembro sempre é o da Riri Williams, a Coração de Ferro, a jovem negra que viria a substituir o Homem de Ferro numa época que as pessoas fingiam que sempre adoraram esse personagem. Maldito seja, universo cinematográfico da Marvel! E tem outro caso também. Só que nesse eu não sei se foi algo mais generalizado ou foi eu quem esbarrou nuns vídeos infelizes. De qualquer forma, me refiro a reclamações que vi sobre a Kamala Khan, a jovem paquistanesa que se tornou a nova encarnação da Ms. Marvel. Sei que só estou arranhando a superfície aqui e provavelmente deve ter dúzias de outros exemplos que eu desconheço ou já me esqueci. Mas a minha intenção é só contextualizar o tema do texto.

Sabemos que não é uma questão localizada apenas nas HQs. Qualquer personagem em qualquer outra mídia que passa por qualquer mudança é recebido com essa desaprovação por algumas comunidades. Na real, com tempo ficou mais aparente que é sempre o mesmo tipo de pessoa.

Essa repercussão negativa se tornou um cliché tão grande que hoje os estúdios até preveem as reações e as utilizam como parte das suas campanhas publicitárias. Ou vocês acham que a Disney não sabia o que ia acontecer quando anunciaram que o live action de A Pequena Sereia contaria com uma atriz negra no papel da Ariel?

No meio dessas reações a gente sempre consegue pinçar as mesmas justificativas de reacionários que querem racionalizar de alguma forma a sua desaprovação pelas mudanças. As duas mais frequentes é falar que “não tem nada contra novos personagens”, porém a inclusão deles foi “forçada” ou “mal escrita”.

Não vou descartar totalmente a validade de algumas dessas justificativas. Até certo ponto é compreensível, e natural, que o público não receba de braços abertos um novo personagem por estarem tão familiarizadas com o original. O ser humano, no geral, não gosta de mudanças. E obviamente existirão novas versões que são simplesmente ruins, nem sempre uma modernização vai implicar em algo bom. Só que o que vale destacar é como muitas dessas reações surgem antes mesmo da gente ter qualquer material sobre o novo personagem. É só você anunciar que algo vai ser diferente do original que já gera desaprovação. Por isso eu fico sempre com um pé atrás com essas manifestações na internet, pois muitas parecem sair de um lugar de puro reacionarismo. Isso quando não é de um preconceito bem evidente!

Quer outro exemplo saindo rapidinho dos quadrinhos? Super Mario Bros. O Filme! Esse é absurdamente ridículo. Quando lançaram o trailer houve um grupo de pessoas acusando que o filme seria “lacrador”. E por que disseram isso? Só porque dava a entender que a Peach teria uma papel mais ativo, com uma postura meio girlboss, e que o Mario seria um completo paspalho. E a ironia nessa história é que, quando o filme lançou, inverteram o discurso parabenizando Super Mario Bros. por ser “anti-lacrador”.

É com esse tipo de idiotice que a gente lida constantemente na cultura pop. Mas eu acho particularmente curioso de se observar o fenômeno nas HQs pois nessa mídia, sobretudo com super-heróis, existe uma longa tradição de mais de um personagem assumindo o manto.

Pega aí, sei lá, o Flash. A primeira versão publicada dele era o Jay Garrick. Anos depois criaram o o Barry Allen, em sequência o Wally West e ainda tem mais outros. Ou então o Lanterna Verde, que acho um exemplo ainda melhor. Ele já foi o Alan Scott, Hal Jordan, Guy Gardner, John Stewart, Jessica Cruz, Simon Baz, etc. Volta para a Ms. Marvel, antes da Kamala Khan tivemos a Carol Danvers, Sharon Ventura e Karla Sofen. O que não falta é super-herói que já foi representado por mais de um personagem. E se eu quiser ir mais longe posso falar do Fantasma aqui também!

Adaptação de 1996 de O Fantasma, com Billy Zane interpretando o personagem
Me sinto moralmente impelido a usar a adaptação com o Billy Zane

O personagem foi criado na década de 30 e, mesmo não tendo superpoderes, é considerado um dos primeiros super-heróis fantasiados. O que tem de relevante no Fantasma é que essa ideia de passar o manto já está contida na própria concepção do personagem através da sua linhagem. Quem conhece a história do universo do Fantasma sabe que existe a lenda que ele é imortal, mas isso nada passa de um mito. O que acontece é que sempre que o atual se aposenta ou morre, alguém assume o lugar do antecessor criando a ilusão que é sempre o mesmo herói.

Enfim, o que eu quis mostrar é que essa ideia que o manto do super-herói pode ser passado para outro personagem sempre esteve presente na história das HQs. Porém isso acaba não sendo uma verdade para todos, pelo menos não no imaginário popular.

O Superman sempre foi o Clark Kent, o Batman sempre foi o Bruce Wayne e o Wolwerine sempre foi o Hugh Jackman. Até certo ponto isso também foi uma verdade para o Homem-Aranha, a não ser em exceções como a do Miguel O’Hara em que você tinha todo um universo alternativo independente da versão original. Igual, por exemplo, o Batman do Futuro, que era um personagem exclusivo da série animada até que foi incorporado anos depois no cânone das HQs.

Novamente eu queria destacar que até certo ponto eu consigo entender a rejeição com uma nova versão de um personagem estimado. Você não é obrigado a gostar dele, você tem todo direito de preferir o original. A minha rusga aqui é com o pensamento do reacionário que mantém a mente fechada para qualquer nova encarnação só pelo simples fato dela ser diferente.

E aí que enfim chegamos no caso de Homem-Aranha no Aranhaverso.

“SOMOS TODOS HOMEM-ARANHA!”

Cena do discurso da Mary Jane em Homem-Aranha no Aranhaverso
Sério, não tem como deixar a mensagem mais óbvia do que isso

Vou o tomar a liberdade de não entrar em detalhes da trama de Homem-Aranha no Aranhaverso e apenas focar naquilo que mais me interessa, beleza?

A animação conta a história de origem do Miles Morales, mas para isso ela resolve utilizar também vagamente elementos do Aranhaverso. Nos quadrinhos esse conceito foi trabalhado na revista de Spider-Verse, uma série publicada entre 2014 e 2015. Porém o Aranhaverso já não era nenhuma novidade nessa época, pois esses mesmo elementos já tinham aparecido em outras mídias como as animações e jogos do Homem-Aranha.

O primeiro caso que eu me recordo são nos dois últimos episódios da série dos anos 90 que formam o arco das Spider Wars. Nessa história, temos o Homem-Aranha indo parar noutra dimensão onde o Peter Parker daquele universo se fundiu com o Carnificina. Além dessa nova versão do Peter Parker/Carnificina, no desenho aparecem outros Homens-Aranha que ajudam o “original” a derrotar o vilão e enviar cada um de volta para seus respectivos universos.

Unir essas duas história, a da origem do Miles Morales com a do Aranhaverso, foi uma decisão que eu considero perfeita. A mistura desses conceitos numa única narrativa fortalece o tema central da animação sobre como todos podem usar a máscara. E mais uma vez eu destaco o quão o filme nem se preocupa em ser minimamente sutil na sua mensagem.

Vários diálogos de Homem-Aranha no Aranhaverso
Ok, dá pra ficar mais óbvio sim

Mas o que faz isso verdadeiramente funcionar é que, apesar da falta de sutileza, o filme não se deixa cair na armadilha de ser dogmático. Tão pouco tenta julgar e condenar a audiência que, por alguma motivo, não gosta dessas versões alternativas. Homem-Aranha no Aranhaverso tenta ser um conciliador, alguém que consiga tornar esse público mais tolerante às releituras dos seus personagens favoritos.

Teria sido muito fácil adotar aquela postura “aceita que dói menos” que muitos de nós, já impacientes com as pessoas que ficam reclamando sempre que as coisas mudam, assumimos na internet. E admito que é um pouco prazeroso sim usar desse tom com os reacionários da cultura pop. Só que eu também acho que a longo-prazo isso não ajuda em nada. Pelo contrário, isso apenas estimula essas pessoas a dobrarem a aposta e ficarem ainda mais intolerantes à uma nova releitura.

Homem-Aranha no Aranhaverso decide ir na direção oposta para convencer tais detratores e, de forma sincera, o filme busca torná-los mais mente aberta com as eventuais mudanças dessa mídia.

E eu vou mais a fundo nisso, diria que até que e cada uma das versões do Homem-Aranha que aparecem no filme foram intencionalmente escolhidas para reforçar a mensagem em diferentes camadas. Portanto acho que vale a pena dedicar um tópico exclusivo para falar com mais clareza.

O HERÓI DE MIL HQS

Revistas representando várias versões do Homem-Aranha
Nada, nada sutil!

O natural aqui seria falar do primeiro Peter Parker que aparece em Homem-Aranha no Aranhaverso, o que seria considerado o “original”. Porém ele é melhor para concluir o raciocínio desse tópico então iniciaremos pelo Peter B. Parker.

Essa versão é representada como sendo um Peter mais velho que suas demais contrapartes. Algo curioso já que a figura do Homem-Aranha é mais associada a adolescentes e jovens adultos. Por isso que muitos dos conflitos do Peter Parker geralmente circundam os dramas e preocupações típicas de um público mais novo.

Todavia, ao colocar esse Peter num estágio da vida mais avançado, você abre espaço para novas discussões e temas que podem ser abordados com esse personagem. Ali você vê um Homem-Aranha menos piadista e mais sarcástico, cansado de ser super-herói e profundamente amargurado. Você nota que os grandes problemas da vida dele não são mais os vilões e bandidos e sim o fato dele ter que lidar com a morte dos seus parentes, as dificuldades no casamento, problemas financeiros, insegurança em iniciar uma família, etc.

E não somente isso, você consegue atingir novos públicos, até um mais velho, que se identifique mais com os problemas enfrentados por esse personagem. E nisso podemos trazer aqui a Gwen Stacy, a Mulher-Aranha desse Aranhaverso que é bem diferente da outra Mulher-Aranha que também teve suas várias encarnações com Jessica Drew, Julia Carpenter, Mattie Franklin, etc.

Assim como o Peter B. Parker nos permite olhar o mito desse super-herói na perspectiva de um adulto, a Mulher-Aranha nos permite abordar os temas, conflitos e dramas sofridos pelo Homem-Aranha com uma visão feminina. A sua capacidade de se identificar com os problemas sofridos por um personagem independem do seu sexo e gênero, mas existem narrativas que ganham todo um leque de possibilidades dependendo de quem será nosso ponto de vista. Assim, a versão da Mulher-Aranha da Gwen Stracy também amplia as discussões que podemos tirar desse super-herói ao nos fornecer uma nova perspectiva.

Por fim temos o trio do Peter Porker, Peni Parker e o Homem-Aranha Noir que podem parecer que estão em Homem-Aranha no Aranhaverso apenas para um alívio cômico já que não tem muito texto para eles. Contudo todos esses personagens nos servem para mostrar o quão vasto é o alcance dessas reinterpretações.

Peter Porker está obviamente no campo da paródia que sempre esteve presente na arte e é muito explorada por diversos artistas. A comédia é uma ótima ferramenta para brincar com a figura desses super-heróis de maneira descontraída. Eu estava pronto para usar Teen Titans Go aqui como um exemplo, mas podemos ir mais longe e falar da série dos anos 60 do Batman com o Adam West que lá trás já adaptava super-heróis para esse formato cômico.

Agora a Peni Parker aqui nos mostra a possibilidade te contextualizar um personagem não apenas num período diferente, mas também em uma nova cultura. Com isso você pode experimentar novas convenções, referências e estilos artísticos que ampliam os horizontes culturais da sua audiência. E algo parecido pode-se dizer do Homem-Aranha Noir que é essencialmente um throwback na própria histórias dos quadrinhos, levando o Peter Parker para a era das revistas pulp onde personagens como Flash Gordon e o Sombra serviriam de inspiração para o surgimento dos super-heróis.

Várias versões do Homem-Aranha
Homem-Aranha no Aranhaverso mostra todos os potenciais que o personagem pode alcançar

E por fim chegamos no Peter Parker. O supostamente Peter Parker “original”. Mas quando a gente presta atenção vemos que ele não é o Homem-Aranha de, por exemplo, The Amazing Spider-Man. E ao mesmo tempo ele também não é o Peter Parker do Ultimate Marvel. Esse Peter Parker é na verdade uma amálgama das várias adaptações que o personagem já passou. Tanto é que na sua introdução existem diversas referências aos filmes live action do Sam Raimi, a série dos anos 60 e os próprios quadrinhos.

E aí quando o personagem fala que ele é o único Homem-Aranha o filme está sendo irônico, porque nos minutos anteriores ele acabou de te mostrar o tanto de versões desse personagem que já existiram. Por isso que é uma ideia tão ridícula pensar que há uma versão correta dele. Seis décadas depois que o Steve Ditko criou o Homem-Aranha, o personagem já passou por centenas de mãos. Artistas, arcos, revistas, versões alternativas, adaptações pra TV, para o cinema, para os jogos.

Pode até dizer que existem elementos essenciais para o Homem-Aranha, mas a fórmula correta é só um mito. Tanto é que aposto que grande parte dos fãs hoje nem conheceu ele pela sua revista original. Posso falar por mim, a primeira versão que eu tive contato foi a série dos anos 90 então muito do imaginário que eu tive por um longo tempo do personagem foi alimentado por ela. Da mesma forma que outras pessoas virão conhecê-lo talvez pelos filmes, talvez pelos jogos, talvez até mesmo por uma versão alternativa.

Por isso que você não precisa encarar uma releitura do personagem como a nova norma. A esse ponto não existe uma. Pode haver até um Homem-Aranha original, que começou lá na décima quinta edição de Amazing Fantasy. Mas uma versão “correta”? Isso não é uma realidade do personagem até mesmo antes da gente nascer!

O PESO DA MÁSCARA

Miles Morales em frente a lápide de Peter Parker
Substituir um herói não é tarefa fácil. Pra ninguém!

O último tópico que eu quero discutir com vocês também serve como uma conclusão para o texto. Como eu acabei de mencionar, o personagem do Homem-Aranha já passou por dezenas e mais dezenas de artistas diferentes dos seus criadores ao longo de toda sua história de publicação.

De certo modo a jornada do Miles comenta, indiretamente, sobre isso. Assumir o manto de um super-herói não é só uma dificuldade para o personagem, nós podemos observá-la até fora da realidade do filme indo para o contexto de produção de alguma obra.

Meses atrás eu escrevi um texto chamado Pluto: A arte (e pressão) de reimaginar um clássico. Ele fala sobre a releitura de Naoki Urasawa de um dos arcos mais famosos de Astro Boy: The Greatest Robot on Earth, criado por Osamu Tezuka. Naoki não é qualquer mangaká. Ele é um dos artistas mais consagrados da atualidade no Japão e conta com vários mangás aclamadíssimos na sua carreira. Mas até mesmo sendo um inegavelmente habilidoso mangaká, o próprio Naoki teve suas preocupações ao fazer Pluto. Afinal ele reconhece o peso que não apenas o personagem, como também a obra do Osamu Tezuka, representa para a história cultural do Japão.

Pode até ser muito fácil para um produtor ou um dono de um estúdio ou de uma editora de HQs determinar que seja feito uma nova versão, um reboot, um remake, o que quer que seja com um personagem ou propriedade intelectual estimada pelo público. Mas para o artista no qual vai recair a responsabilidade de executar esse trabalho é totalmente o oposto. E eles estão cientes do terreno perigoso no qual vão entrar. Muitos vão ter dúvidas, tal como o Miles Morales, se estão aptos para tal.

E ao meu ver é por isso que eu acho que Homem-Aranha no Aranhaverso vem com essa abordagem conciliadora, porque ele também pensa em como essas reações afetam os próprios artistas.

O filme conhece o quão importante aquele personagem, naquela forma, é importante para seus fãs. Ele sabe que não dá para você simplesmente substituir um pelo outro. E é por isso que o Miles Morales nem ao menos tentar ser o Peter Parker ou um Homem-Aranha tão bom quanto aquele Peter era. No final de Homem-Aranha no Aranhaverso o Miles diz que está muito distante de ser o um e único Homem-Aranha e o seu alívio vem quando ele percebe que ele não precisa tentar substituir o seu antecessor. O que ele faz é tentar ser a melhor versão que ele pode ser de um Homem-Aranha, tal como os demais personagens (e artistas) tentam fazer.

Então, o filme não pede que você aceite esse personagem de imediato e nem que o veja como a nova e definitiva versão do Homem-Aranha. Ele só pede que tente manter a mente aberta e tenha um pouco de paciência para entender o que os artistas buscaram com essa nova abordagem.

Assim, tendo um pouco mais de boa-vontade com esses personagens, eventualmente a máscara vai servir!

Stan Lee em Homem-Aranha no Aranhaverso

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