Não dá para separar J. K. Rowling de Harry Potter

Foto da autora J. K. Rowling lendo Harry Potter e a Pedra Filosofal, seu primeiro livro, na Casa Branca

Ontem, quarta-feira, a Justiça do Reino decidiu que a definição legal de mulher terá como base o sexo biológico. Essa decisão foi comemorada pela transfóbica mais famosa do mundo, J. K. Rowling, que por ventura também escreveu os livros de Harry Potter. Para quem está familiarizado com as “opiniões” da autora na última década, isso não foi nenhuma surpresa. Para mim, menos surpresa ainda foi ver as mesmas postagens sobre separar o autor da obra seguindo a notícia. E, bom, eu meio que estou de saco cheio de ver essa expressão sendo jogada por aí. Porque não dá para separar autores de suas obras, ainda mais se a autora em questão for a J. K Rowling.

Quero acreditar que boa parte das pessoas que ainda utilizam esse argumento fazem isso com uma honestidade inocente. É a forma que possuem de lidar com o abalo emocional causado quando os autores de obras que elas adoravam se mostraram pessoas terríveis. Porém no contexto da internet, eu sinto que esse pessoal segue batendo nessa tecla por medo de uma dinâmica oriunda das redes sociais. Já há muito tempo que existe essa mentalidade de que para você ser uma das Pessoas Boas™ você deve consumir apenas as Obras Boas™. E não no sentido da subjetiva qualidade e sim no da moral. Claro que esse é um comportamento promovido pelo lado mais escandaloso dessas redes, que abrange de reacionários à progressistas. Porém, mesmo que seja apenas um pequeno séquito de histéricos, eles gritam alto o suficiente para deixar outras pessoas receosas.

Creio que não preciso falar, mas farei mesmo assim. Eu acho isso uma tremenda de uma besteira, coisa de gente que só quer disputar quem é o mais puro e mais iluminado da internet. Ninguém vira racista porque, por exemplo, leu alguns livros do H. P. Lovecraft. Você passaria ser racista se concordasse com as visões dele, algo que provavelmente já era e não porque os livros te influenciaram. Não existe problema nenhum em consumir algo considerado problemático, ou então cujo autor seja problemático, quando pessoas são perfeitamente capazes de ter pensamento crítico sobre as suas mídias.

Então por que eu ainda discordo dessa ideia de separar o autor da obra? Não é bem que discorde e sim que, ainda que eu achasse que fosse possível, não vejo qualquer utilidade nisso. Não, pera aí! Tem uma sim. Porque, tirando as pessoas que como mencionei tem uma honestidade inocente ao tentar fazer essa separação, eu vejo muita gente falando isso como uma forma de aliviar a própria consciência. É um consumo não através do pensamento crítico, mas sim da negação da realidade tratando a obra como se tivesse surgido no éter.

Vou colocar o meu na reta só para não parecer que estou julgando os outros de uma posição de segurança. Um dos meus filmes favoritos de terror é O Bebê de Rosemary e, caso ninguém conheça o diretor, eu convido vocês a pesquisar “roman polanski 13” e depois voltar aqui. Mesmo sabendo que esse cara deveria estar na cadeia, não posso fingir que desgosto do filme e vou continuar gostando. Lido com esse fato da mesma forma que lido toda vez que abro meu armário e vejo ali a cópia de Coraline e O Mistério da Estrela. É parte da nossa realidade que pessoas ruins podem criar obrar artisticamente boas.

Então não tem que ficar perdendo tempo mentindo para si mesmo que existe o autor e existe a obra. Uma veio do outro e sempre será uma parte dele. Sandman sempre terá sido escrito pelo abusador Neil Gaiman. Samurai X sempre terá sido escrito pelo pedófilo Nobuhiro Watsuki. Harry Potter sempre terá sido escrito pela transfóbica J. K. Rowling. Como os fãs irão lidar com isso, vai de cada um.

Só que existe uma particularidade nestes três casos que leva a uma ação que aí sim eu acho muito justa. Todos esses três autores estão vivos e continuarão lucrando com suas obras. Logo a decisão de não consumir mais suas obras não é mais uma questão de evitar autores problemáticos. É uma decisão de não apoiar financeiramente, direta ou indiretamente, pessoas terríveis que cometeram crimes e/ou usam ou vão usar do seu dinheiro e influência para prejudicar grupos ou indivíduos.

Nesse âmbito, o caso da J. K. Rowling fica ainda mais especial. Porque a autora não é apenas preconceituosa, ela milita em cima do seu preconceito tentando se justificar que a luta dela é pelas mulheres. Voltando rapidamente à decisão que a Justiça do Reino Unido fez sobre a definição legal de mulher. Isso ocorreu depois de uma extensa campanha de um grupo chamado For Women Scotland que há seis anos se mobiliza contra o direito de pessoas trans. Grupo este que recebeu a bagatela de 70 mil libras de ninguém menos que a J. K. Rowling.

Qualquer um aí pode tentar argumentar que não existe nada intrinsecamente transfóbico nos livros de Harry Potter. Também qualquer um aí pode dizer que gosta dos livros, porém repudia veementemente as “opiniões” da sua autora. Por fim, qualquer um aí pode falar qualquer coisa para seguir consumindo todos os produtos derivados dessa franquia. O que qualquer um aí não deveria fazer é fingir que não sabe para onde seu dinheir está indo. Se você não se importa com a causa trans, ok, não tem nada que a gente possa fazer. Agora uma pessoa que se diz uma aliada, mas quer continuar dando dinheiro pra J. K. Rowling porque gosta tanto desse universo ela só está sendo hipócrita e irresponsável.

E vejam bem, não é sobre deixar a J. K. Rowling mais rica. Dado o fenômeno que Harry Potter foi e continua sendo, a mulher não precisa fazer mais nada pra ter uma vida abastada pelo resto dos seus dias. Ninguém espera que ela vá morar de aluguel em Xique-Xique, Bahia. As pessoas só não querem que o dinheiro delas seja usado para tornar a vida de pessoas trans, seja no Reino Unido ou em qualquer lugar do mundo, mais difícil do que já é.

Então se você é um desses aí que acha que consegue separar a autora da sua obra, pare. Não está enganando ninguém além de você mesmo. Você só quer achar um subterfúgio para livrar sua alma da culpa de estar ajudando um pouquinho a financiar a transfobia da J. K. Rowling.


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