Você acorda num quarto pequeno e sujo. Sem nada para fazer ali, você desce até o primeiro andar passando por corredores igualmente sujos de uma casa em ruínas. Ao longe se escuta o barulho de uma TV ligada. Um homem gordo, careca, vestindo uma camisa aberta no peito e óculos escuros exala um forte cheiro de álcool. Ele está sentado num sofá velho, de costas para a escada, então você passa por trás dele sabendo que caso ele te veja você será mandada de volta ao seu quarto.

Agora do lado de fora você se depara com uma estrada de terra. Sem pensar duas vezes, você corre por entre as árvores tentando se afastar o máximo possível daquele lugar.

Pouco depois a paisagem muda. A estrada fica vermelha, igual sangue. Talvez seja sangue mesmo. Uma estranha ponte aparece na sua frente. Você não sabe onde ela irá te levar, mas mesmo assim a atravessa. O barulho da TV volta a ecoar nos seus ouvidos. Você olha para baixo e no abismo encontra centenas de milhares de cópias daquele homem te observando. O barulho fica mais alto. A ponte some, mas você continua em frente andando sobre o ar.

Para sua surpresa lá está aquele homem de novo, bloqueando a sua passagem. “Você está tentando fugir de mim, não está?”, ele te pergunta. “Você não pode correr para sempre!”. Então que o pesadelo começa de verdade!

Esses são os primeiros minutos de LISA: The First, um jogo do RPG Maker 2k3 publicado em 2012 por Austin ‘Dingaling’ Jorgensen. Pois bem, esse pequeno jogo se tornou o primeiro capítulo de uma trilogia composta também por LISA: The Painful (2014) e LISA: The Joyful (2015). As sequências tem uma ambientação e uma jogabilidade de um RPG pós-apocalíptico, contudo LISA: The First é diferente. A sua gameplay é marcada por elementos de aventura e terror psicológico com ênfase na exploração e que tem uma clara inspiração em outro conhecido título de RPG Maker 2k3, Yume Nikki.

Essa semana a Epic Games Store decidiu distribuir gratuitamente a versão LISA: Definitive Edition que reúne os dois capítulos finais da trilogia e isso me motivou a conhecer o início da série. Eu já estou bem familiarizado com o histórico de jogos de terror no RPG Maker e no seu primo Wolf RPG Editor, afinal é o gênero que eu mais gosto de explorar dentro dessa ferramenta.

Os mapas de LISA: The First sempre refletem o estado mental da sua protagonista

Para mim eles são um dos melhores exemplos – tal como jogos ao estilo da série de To The Moon, do Kan Gao – do poder narrativo dessa plataforma que sinto ser muito subestimado. Vejam bem, eu disse “subestimado” e não “pouco explorado” porque a realidade é o exato oposto. Existe uma longa tradição de jogos não-RPGs feitos no RPG Maker, mesmo que a plataforma seja vista como uma ferramenta para fazer versões redux de RPGs famosos do Super Nintendo e Mega Drive.

LISA: The First, assim como outros títulos antes dele, serve para nos mostrar como o RPG Maker é um lugar para se contar as mais diversas histórias em tantos diferentes contextos e tons. Tanto é que como jogo ele tem pouco dos desafios que você esperaria desse tipo de gameplay. Tem duas seções no máximo que dá para dizer que o jogo constrói uma sequência de puzzles convencionais, mas na maior parte do tempo você está atravessando o mapa em busca de itens que te ajudam a progredir.

O foco desse jogo é contar uma angustiante história de uma garota tentando fugir das memórias do seu pai abusivo. É fácil reconhecer o subtexto do jogo com suas estátuas com um buraco na virilha e um personagem com design e nome bem sugestivo, que “adora explorar cavernas e ama fricção”. Inclusive agora eu percebo a horrível coincidência de falar desse jogo no meu quadro chamado de Rapidinhas.

A protagonista LISA tenta fugir desesperadamente das memórias do abuso que sofreu nas mãos do seu próprio pai

Tudo isso é contato de forma não-linear e críptica, onde você interpreta os elementos surreais ao seu modo para formar uma história compreensível. Não que seja um mistério tão difícil de se resolver, você entende que a protagonista sofre abusos constantes do seu pai nas primeiras interações com o mapa. Como eu disse, LISA: The First não é nada sutil em relação aos seus temas. Até porque se tratando de violência – física, psicológica e sexual – a narrativa precisa dessa linguagem bruta e impactante para ilustrar o estado mental da garota.

As imagens não chegam a ser tão chocantes. Tem até alguns designs macabros que surgem a partir da metade do jogo, mas o maior efeito vem do que essas imagens simbolizam. Mesmo sem descrever ou mostrar explicitamente o que aconteceu com a garota, você fica desconfortável por ter uma noção clara do que acontece naquela casa. Conforme o personagem do pai vai aparecendo mais e mais vezes em praticamente todos os mapas, você também passa a se sentir incapaz de fugir daquela memória.

Não há muito que eu possa me aprofundar aqui. Não por falta de conteúdo. Mesmo sendo um jogo bem curto, dá para zerar numa única noite, LISA: The First tem uma história bem complexa. Eu não posso me aprofundar porque a graça, se é que dá para usar graça nesse contexto, está em você fazer sua interpretação dos eventos da história. Não quero poluir a leitura de ninguém por enquanto, deixa isso para quando eu cobrir a trilogia inteira.

LISA: The First traz consigo um enorme poder narrativa para fomentar várias discussões e esse é o tipo de qualidade que faz muito bem para o RPG Maker. Na verdade para jogos de qualquer plataforma, porém eu gosto de puxar a sardinha para essa ferramenta porque infelizmente ela segue muito subestimada.


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6 thoughts on “O poder narrativo do RPG Maker em LISA: The First”
  1. Não só você: “Eu já estou bem familiarizado com o histórico de jogos de terror no RPG Maker e no seu primo Wolf RPG Editor, afinal é o gênero que eu mais gosto de explorar dentro dessa ferramenta.” Mas diversos jogadores gostam do gênero. Mesmo com limitações… eu prefiro os jogos de RPGs antigos baseados nos clássicos jogos de RPGs da era dos 8 e 16bits, mas meu último trabalho foi mesclar o RPG clássico com as explorações dos jogos de Horror/terror. Estou lendo vários livros sobre, no momento lendo e fazendo várias anotações sobre o excelente livro – Arte de Game Design Jesse Schel. Desisti das comunidades e canais do youtube, mas vou dedicar mais tempo no seu blog, pois seu trabalho é fenomenal. Uma pergunta, por favor não se ofenda, mas você finaliza o jogo antes de escrever sobre o mesmo?

    1. Fala, Bento! Que isso, pode me fazer perguntas sem problemas hahaha. Sim, sempre finalizo o jogo antes de fazer um texto. Eu ia deixar para cobrir LISA assim que terminasse os 3 jogos, porém tava precisando dar uma movimentada no blog então resolvi fazer algo rápido sobre o primeiro.

  2. Terror, ainda mais nessa linha psicológica, deve ser o estilo
    De jogo que menos tive contato. Mas também pudera, quem me fez curtir esse tipo de arte foram os plataformas coloridos de SNES. Mas a tua resenha me deixou bastante interessado, alguma outra recomendação nessa linha?

    1. O RPG Maker (e Wolf RPG Editor que é uma engine parecida) tem uns interessantes. Vou listar aqui os que lembro de cabeça: Corpse Party, Ib, Witch’s House, Mad Father, Ao Oni, Misao e Yume Nikki.

      Tem uma série também chamada The Strange Men Anthology que eu recomendo bastante também e um antigo jogo brasileiro que pouca gente conhece chamado Vila do Nevoeiro que se inspirou muito em Silent Hill. Esses dois últimos tem texto aqui no site então linkei no meu comentário

  3. Rapaz, jogo com tema sério é cabreiro. Enfim, jogos de RPG Maker tem essa magia de contar histórias com elementos simples: o jogador somente anda pelo cenário e toda uma narrativa é construída diante dos seus olhos. Bom texto!

    1. E no que tange os jogos de terror no RPG Maker, a galera sabe construir muito bem atmosfera. É uma pena que seja uma engine tão subestimada mesmo com alguns títulos mais conhecidos como o To The Moon, Omori, etc

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