Um dos textos que eu mais me diverti escrevendo esse ano foi Dragon Quest: o Bom, o Mau e o Feio. Nele eu como foi a minha jornada com os três primeiros jogos de uma das maiores franquias do JRPG existentes que forma a trilogia Erdrick. E o que mais gostei em escrever esse texto foi fazer algo diferente do que eu me condicionei nesses últimos dois anos.

Eu costumava dividir o as minhas impressões sobre os jogos que zerei lá no Twitter no formato de threads. Esse era um formato ideal para eu conseguir me comunicar de maneira mais direta e sem enrolação. Titan Quest fica aqui como exemplo do que eu fazia. Já no blog eu tomo mais liberdades para divagar sobre qualquer coisa que eu ache interessante, algo que eu fazia antes no Medium. O que ficou ótimo para analisar aqueles três jogos em que minhas reações sobre cada um deles foram bem diferentes uma das outras.

Pouco tempo depois de terminar essa experiência com Dragon Quest me vi embarcando numa segunda jornada. Dessa vez foi numa série de jogos completamente diferente: The Strange Men Anthology. Essa série é uma criação da game designer indie japonesa conhecida na internet como Uri. Eu já conhecia um dos jogos dela, The Crooked Man, de muitos anos atrás. Foi na época que frequentava fóruns de RPG Maker e comecei a me interesse pelo gênero de terror.

The Crooked Man, primeiro jogo da série The Strange Men Anthology
The Crooked Man foi um dos primeiros jogos de terror de
Wolf RPG Editor que conheci

Em algum ponto de 2021 eu me lembrei do jogo e me deu com vontade de revisitá-lo. Jogando o nome no Google acabei indo ler um pouco mais sobre a Uri. E foi assim que fiquei sabendo que nos últimos anos ela expandiu o universo de The Crooked Man. De 2012 até 2017, a Uri criou mais três jogos, compondo a série The Strange Men Anthology. Essa nova informação despertou minha curiosidade. Eu lembrava tinha curtido o primeiro jogo e assim quiser ver como a Uri evoluiu nas sequências.

Numa dessas promoções de Steam consegui adquirir o bundle completo de The Strange Men Anthology e joguei cada título um do outro. A princípio eu não tinha pretensão de fazer um texto sobre a antologia, porém ali pelo terceiro jogo uma ideia pintou na minha cabeça. Percebi que dava para analisar cada um dos jogos na perspectiva de um gênero diferente dentro da ficção de terror. E essa será a abordagem de hoje.

Mas antes de passarmos para os jogos tem uma pergunta a ser respondida:

 O QUE É THE STRANGE MEN ANTHOLOGY?

Os quatro jogos de The Strange Men Anthology: The Crooked Man, The Sand Man, The Boogie Man e The Hanged Man
Da esquerda para direita: The Crooked Man, The Sand Man, The Boogie Man e The Hanged Man

The Strange Men Anthology é uma série de quatro de jogos de aventura desenvolvidos pela supracitada Uri. Todos os jogos foram criados com Wolf RPG Editor, que é um primo não tão popular do RPG Maker aqui no Brasil. Cada título é uma história fechada com um protagonista diferente, mas todas dividem o mesmo universo. Além disso, os personagens principais do jogo anterior sempre aparecem como coadjuvantes nos seguintes.

Os jogos tem muitas características similares, tanto nos temas quanto na jogabilidade que foca na resolução de puzzles em cenários sombrios variados. Elementos de terror estão presentes em menor e maior grau em cada um dos títulos da série e as narrativas se concentram na vida de cada um dos protagonistas. Elas exploram seus medos e traumas que fecham num arco de superação. Se você conseguir o Good Ending, é claro!

Outra característica comum são os títulos de cada jogo. Cada um faz referência ao antagonista da vez: o Homem-Torto, o Homem-de-Areia/João-Pestana, o Bicho-Papão e o Enforcado. Nesse último caso, o título é mais simbólico, sendo a presença do Enforcado inexistente por 90% do jogo. Mas falaremos mais disso quando chegarmos na vez dele.

Acho que o contexto foi o suficiente para te situar na série, caro leitor. Então não vou tomar mais do seu tempo e ir para o que interessa:

THE CROOKED MAN (2012)

Aparição do Homem-Torto em The Crooked Man
O Homem-Torto em The Crooked Man

Antes de 2012, Uri desenvolveu dois outros jogos, Insanity e Paranoiac. Ambos foram lançados no mesmo ano, período no qual a autora ainda estava criando a sua “assinatura”. Dessa forma, The Crooked Man serve como um esqueleto não somente para o que The Strange Men Anthology viria a ser. O jogo serve como uma origem para a filosofia de game design da própria Uri.

É curioso observar que ela já chega em The Crooked Man sabendo trabalhar de maneira muito competente com um dos pilares essenciais do terror: atmosfera. E conforme veremos nesse texto, em cada jogo dessa antologia a Uri consegue dar uma atmosfera particular que os destaca dos seus companheiros.

Na minha visão, esse The Crooked Man se encaixa na forma mais simples do gênero de terror. Mais especificamente do terror japonês que foi popularmente conhecido como J-Horror. Porém esse não é um gênero per se. Hoje o termo é utilizado para descrever um movimento de filmes de terror catapultados nos anos 90 e 2000.

A popularização do termo foi graças a produções japonesas da época que ficaram mundialmente (re)conhecidas. Muitas delas até receberam remakes ocidentais. Dentre os exemplos podemos citar Ringu (que foi adaptada como O Chamado em 2002), Ju-on (que virou O Grito em 2004) e, meu pessoalmente favorito, Dark Water (adaptado em Água Negra em 2005). De qualquer forma, eu continuo achando válido a utilização de J-Horror para destacar a perspectiva japonesa no que tange filmes de terror. Ela tem fortes influências da sua cultura, principalmente em relação as visões religiosas do budismo e xintoísmo, como também do cinema japonês. Gravem essa última parte porque voltaremos nela já-já.

Dark Water, fantástico filme de terror japonês

Já passou da hora de eu dar uma sinopse do jogo:

Em The Crooked Man nós controlamos David Hoover, recém-chegado ao seu novo apartamento. David passa por um momento difícil na sua vida com o término de um relacionamento e com a hospitalização da sua mãe por conta de um tumor que além de afetar sua memória faz com que ela tenha episódios de agressividade. Ao chegar no novo apartamento, David começar a testemunhar eventos estranhos que parecem estar relacionados com o antigo inquilino que desapareceu há algum tempo. Guiado por algumas anotações deixadas pelo antigo morador, David começa a investigar o seu passado enquanto é perseguido pela figura Homem-Torto que aparenta estar conectado a essa história.

Pois bem, tem muitos temas frequentes dos filmes de terror japoneses presentes em The Crooked Man. O mais óbvio é a figura do espírito vingativo que aqui é representada pelo Homem-Torto. Além disso tem a forma como Uri vai criando tensão até a aparição do personagem, bem como a ênfase no terror sobrenatural que permeia toda a história, misturado com alguns elementos de terror psicológico. Porém o que me faz classificar The Crooked Man como um clássico J-Horror é a forma Uri estrutura o roteiro do jogo.

Lendo o artigo The Skeletal Structure of Japanese Horror Fiction, de Rudy Barret, o autor nos apresenta o conceito de kishōtenketsu. Esse é um estilo conhecido na cultura japonesa de estruturar histórias que usa um modelo de 4 atos em vez do padrão ocidental de 3 atos. O kishōtenketsu se divide em: introdução, desenvolvimento, reviravolta e resolução. Nas palavras de Rudy:

Representação gráfica do conceito kishōtenketsu muito utilizado na roteirização de histórias japonesas

(…) o primeiro ato introduz o tema, ambientação, personagens, etc. O segundo ato elabora essa informação. O terceiro, o evento principal no que tange histórias de terror, introduz uma grande reviravolta que muda a forma como a informação é observada. Finalmente, o quarto ato conclui reconciliando o que foi aprendido com as duas primeiras seções com a chocante nova informação da terceira.

Os primeiros 15 minutos de The Crooked Man são reservados para nos apresentar nosso protagonista David. Essa parte introduz o mistério a cerca do antigo inquilino desaparecido, como também o amigo de longa data de David, Paul Martin. Dentro do kishōtenketsu essa foi a nossa introdução.

O que seria o desenvolvimento se divide em três sequências nas quais David visita três diferentes locais abandonados: um hotel, uma universidade e um hospital. Nesses lugares ele também encontra três personagens diferentes, além do titular Homem-Torto. Em cada uma dessas sequências ocorrem um desenvolvimento duplo de personagem, pois ao mesmo tempo que vamos descobrindo mais informações sobre o inquilino desaparecido nós também descobrimos mais detalhes da vida do protagonista. E o que a Uri faz de interessante aqui é colocar uma história como o espelho da outra que fortalece o tema central da trama.

Diálogo de The Crooked Man
Em suas histórias, Uri foca no desenvolvimento do protagonista através do confronto com seus traumas mais profundos

O twist vem no final da sequência do hospital, mas ele ocorre em dois momentos diferentes. O primeiro é num flashback onde vemos um episódio sombrio da vida de David que acaba “quebrando” o personagem. Por conta disso, por um breve momento nós passamos a controlar o Paul que saiu em busca do seu amigo. E ele é responsável por um segundo twist, relacionado aos outros três personagens que encontramos durante o jogo, redefinindo a nossa compreensão do papel deles nessa trama.

E então finalmente temos a resolução da história. Aqui ela não é sobre a identidade do Homem-Torto, afinal a gente já chega a essa conclusão no meio da história. A resolução é sobre o próprio David, concluindo seu arco através do conhecimento adquirido pela vida do inquilino anterior. Um desfecho bem tocante, diga-se de passagem.

Dentre os jogos de The Strange Men Anthology, The Crooked Man é mais simples no seu gênero. Contudo a Uri trabalha com competência em representar o J-horror no seu jogo. Mas o que eu acho ainda melhor é que, pela relativa popularidade que o jogo teve, a Uri poderia muito bem entrar numa zona de conforto e fazer uma espécie de The Crooked Man 2.0 como sequência. Entretanto o que ela entregou foi:

THE SAND MAN (2014)

The Sand Man, segundo jogo da série The Strange Men Anthology
The Sand Man não chega a ser tão pesado quanto seu antecessor, mas elementos sombrios ainda estão presentes na história

Se The Crooked Man é importante para popularizar os jogos de Uri, The Sand Man, pra mim, é importante para mostrar amadurecimento. E isso que a gente nota muito na Uri em toda sua experiência em The Strange Men Anthology.

The Sand Man é o que eu considero o melhor da série em termos gerais, mesmo não sendo o meu favorito da antologia. Além disso ele inicia uma tendência que será seguida no restante da série onde os protagonistas do jogo anterior reaparecem como coadjuvantes, tendo uma influência de maior ou menor grau na trama.

Uma das características que faz The Sand Man se destacar é o quão diferente em questão de tom ele é dos seus demais companheiros. Definitivamente ele é o mais leve dos quatro jogos, inclusive há toda uma seção bônus em que o jogo vai numa pegada totalmente cômica. Entretanto ainda dá pra destacar alguns elementos de terror dentro dele. Isso é uma consequência do gênero no qual Uri insere essa nova história, mas antes de falarmos disso tenho outra breve sinopse para dar:

Sophie Grundler é uma jovem estudante numa escola católica só para meninas. Ela tem que lidar com alguns problemas no seu dia-a-dia: bullying por parte algumas das suas colegas de classe, um pai ausente e uma terrível insônia que a aflige todas as noites. Depois de mais um episódio em que não consegue dormir, e sentindo que havia algo de errado naquela noite, Sophie se levanta. Ao deixar seu apartamento descobre que todas as pessoas na cidade caíram num sono profundo e ela é incapaz de acordá-las.

Mapa de The Sand Man
The Sand Man é um dos títulos mais diferentes da série, dando muita ênfase nos aspectos mais fantásticos

A princípio o jogo dá a entender que seguirá a mesma estrutura de The Crooked Man com elementos de mistério e terror sobrenatural. Depois da introdução Sophie é levada a três diferentes locais onde encontra três diferentes personagens onde são revelados mais alguns detalhes sobre a sua vida. A diferença é que essas sequências são muito mais curtas que as do jogo anterior. Dessa vez o jogador não passa um tempo explorando o local na busca de informações para descobrir como avançar na história. O jogo deixa bem claro onde se deve ir. E cada objetivo é concluído em questão de minutos.

No primeiro lugar que visitamos, a escola em que Sophie estuda, nos deparamos com um cenário bem típico de um j-horror quando uma das amigas da protagonista é atacada por vários espíritos que a chamam de mentirosa. No segundo há uma mudança: lá Sophie encontra uma amiga que está prestes a ser fuzilada por um batalhão de soldados de brinquedo. E o mais estranho vem no terceiro local quando Sophie se vê sendo perseguida por um dragão. Progressivamente os cenários vão deixando de ter uma atmosfera de terror sobrenatural e assumindo uma qualidade mais e mais fantástica.

Dessa vez o twist vem na metade do jogo quando Sophie encontra um ser místico chamado Lullaby. Ele explica o que está acontecendo: o Homem-de-Areia (ou João Pestana se formos considerar a língua portuguesa), uma criatura do folclore europeu responsável por colocar as pessoas para dormir com sua areia mágica, por algum motivo decidiu colocar o mundo inteiro num sono aparentemente eterno. Sophie é uma das poucas pessoas que conseguiu resistir à sua magia. A protagonista então viaja para o mundo das fadas a fim de confrontar o Homem-de-Areia.

Nesse momento que o jogo mostra a sua verdadeira face, não como uma história de terror, mas sim como um conto moderno de fantasia sombria. Esse gênero comumente é simplificado como “fantasia que incorpora elementos de terror ou um tom mais sombrio”, porém acho isso vago demais. Buscando uma explicação mais elaborada cheguei nessa publicação de uma autora, Lucy A. Snyder, que faz uma divisão que considerei muito boa entre obras de ficção de terror e de fantasia sombria:

Terror é sobre a intrusão do assustador e do desconhecido no universo mundano e cotidiano com o qual o leitor está familiarizado (…) As fantasias sombrias têm um cenário estabelecido que é fantástico ou ‘de outro mundo’

Fiz uma tradução literal de otherwordly porque acho que fica mais claro a ideia que o trecho tenta passar. Pois bem, então algo fundamental para definir uma obra nesse gênero é a existência de um mundo fantástico. Ele pode estar completamente separado da nossa realidade ou então compor uma camada secundária. Aqui podemos citar o clássico moderno do Guillermo del Toro, O Labirinto do Fauno, onde a história se passa na Espanha Franquista. Contudo, teoricamente, há um reino mágico no submundo existindo paralelamente ao nosso.

O Labirinto do Fauno, fantástico filme de fantasia sombria de Guillermo del Toro
O Labirinto do Fauno é um dos maiores destaque da fantasia sombria moderna

Disse “teoricamente” porque o filme trata essa questão com uma certa ambiguidade deixando ao espectador decidir se aceita a existência desse mundo ou se tudo se passava na imaginação da protagonista. Dá pra criar esse argumento também em The Sand Man, considerando que tudo não se passou de um sonho de Sophie. Mas na minha visão, a autora deixa bem claro que o mundo das fadas existe em paralelo ao mundo em que a protagonista vive.

Pois bem, com Sophie indo pro mundo das fadas a história cabe perfeitamente no gênero da fantasia sombria. Ainda mais considerando o tom mais sinistro com o qual a Uri representa esse mundo. Eu também ressaltaria a atmosfera triste que permeia a história, porém isso é uma característica própria dos jogos da autora tal como o tipo de arco que ela gosta de aplicar para seus personagens.

Interessante ressaltar como essa separação entre o que é real e fantasia reflete nos próprios puzzles do jogo. Na primeira metade temos coisas comuns como pegar uma escada para pular um muro, encontrar um cartão para abrir uma porta e encontrar uma senha. Já no mundo das fadas os puzzles se adaptam para um cenário mais fantasioso. Aqui temos coisas como usar uma erva rejuvenescedora para transformar um dente permanente num dente de leite, usar um tronco afunilado para diminuir o tamanho da personagem para entrar num castelo em miniatura e fazer a areia mágica do Homem-de-Areia.

Minigame de The Sand Man
Em The Sand Man temos uma Uri mais criativa nos puzzles do jogo

Não quero entrar em mais detalhes sobre o arco de Sophie e nas revelações que explicam as ações do Homem-de-Areia. Isso estraga um pouco da graça do jogo então vou deixar que experimentem por si mesmos. Concluo dizendo que a Uri fez um ótimo trabalho aqui adaptando seu estilo para um novo gênero de uma forma bem orgânica, sem ter medo de tentar algo diferente do que ela havia apresentado antes. O capítulo bônus também foi uma grata surpresa para vermos a história numa segunda perspectiva.

O melhor é que ela segue com essa coragem, pois no próximo título ela mais uma vez vai por um caminho bem diferente do que seguiu em The Sand Man.

THE BOOGIE MAN (2015)

The Boogie Man, terceiro jogo da série The Strange Men Anthology
Dá pra falar que The Boogie Man é o jogo da série que mais faz referência ao gênero que represeta

Nesse o no próximo jogo de The Strange Men Anthology a gente vai entrar numa zona um tanto nebulosa para definir o gênero. Isso porque em ambos os casos a Uri dá uma ênfase no aspecto psicológico do terror. Eles até marcam presença nos outros jogos da série, mas não estavam no foco. O problema é que quando entramos nesse cenário, tem dois subgêneros muito próximos que às vezes se sobrepõem: o terror psicológico e o thriller psicológico.

Adianto que, ao meu ver, The Boogie Man se encaixa mais no segundo. Só que antes de entrar em mais detalhes vamos a outra sinopse.

Um detetive linha-dura, Keith Baring, é forçado a tirar umas férias pelo seu superior. Então, Keith vai para um tour com sua esposa e um grupo de rostos conhecidos num antigo castelo cujo o proprietário pretende transformar numa atração turística. Porém o que deveria ser umas férias pacatas se transforma numa terrível experiência. Keith e seus companheiros se veem na mira de um psicopata que autointitulado como o Bicho-Papão.

The Boogie Man segue a tradição definida em The Strange Men Anthology, onde os personagens do jogo anterior retornam para a atual história. Aqui tanto Sophie e David aparecem como figuras importantes na trama, como também alguns dos personagens coadjuvantes dos outros jogos. Mas algo que a Uri faz diferente é abandonar, embora não por completo, os aspectos mais fantasiosos de terror para se alinhar mais a ficção policial. Portanto, em The Boogie Man ela passa a inserir explicações racionais que justificam os eventos aparentemente sobrenaturais que ocorrem ao longo da trama.

É importante ressaltar esse ponto porque um dos filtros que comumente é utilizado para diferenciar um thriller de um terror psicológico é justamente a presença de elementos sobrenaturais na trama. Mas, como o artigo na Industrial Scripts aponta, isso não é uma ciência exata então não podemos usar só isso como métrica. E nem precisamos porque The Boogie Man nos dá outros fatores para nos ajudar a classificá-lo.

Aparição do Bicho-Papão em The Boogie Man
The Boogie Man dá uma grande ênfase ao espetáculo das cenas

Em inglês existe a terminologia stock character que se refere a um tipo específico de personagem que aparece com recorrência em determinadas histórias. Nas típicas comédias teen americanas geralmente encontramos esses personagens: a garota popular, o atleta, o delinquente, o nerd e a “garota estranha”. Sim, acabei de citar o elenco de Clube dos Cinco. Esse é um ótimo exemplo de filme que utiliza esses arquétipos para questioná-los e fazer uma avaliação mais profunda de cada um. Da mesma forma, histórias de thriller psicológico tem seus stock characters próprios. Em The Boogie Man temos dois dos mais reconhecíveis: o detetive casca-grossa e o serial killer lunático que se envolvem numa perseguição de gato e rato.

Outra aparentemente influência em The Boogie Man é a dos filmes giallo. Esse não é especificamente um gênero, mas um termo utilizado para definir algumas produções italianas como Profondo Rosso. São, no geral, filmes de terror/suspense com tramas envolvendo temas de mistério e assassinatos violentos. O giallo se destaca muito pela sua cinematografia estilizada, focada no espetáculo e não dando muita importância em ser realista.

Profondo Rosso, um clássico giallo e um dos melhores filmes de Dario Argento
Profondo Rosso, um dos maiores filmes do diretor italiano Dario Argento

O castelo de The Boogie Man foge completamente de padrões que se considerariam normais na sua estrutura. O próprio Bicho-Papão se apresenta muito como um showman que tentando transformar seus crimes num espetacular show de terror do que um “psicopata padrão”.

E algo que eu acho brilhante na forma que a Uri conduz esse jogo é como ela incorpora recursos literários do thriller psicológico na jogabilidade. Por ter narrativas que focam muito no mistério, os autores desse gênero geralmente utilizam os famigerados red herrings, ou pistas falsas, para distrair audiência e fazer que ela assuma conclusões errôneas da trama. E em The Boogie Man a Uri constantemente dá uma pista falsa da resolução de um puzzle para confundir o jogador.

Cena de The Boogie Man
Nos puzzles a Uri usa e abusa de red herrings

Num exemplo simples, em certo momento você encontra um papel com uma senha que você assume ser a necessária liberar as escadas que dão acesso ao próximo nível do castelo. Porém quando você põe essa sequência de números no painel, em vez das escadas cai apenas um papel deixado pelo Bicho-Papão. A senha real tem relação com as capas de CD que estão dispostas numa outra sala.

Por fim, Uri consegue emular também a ação associada a thrillers psicológicos sempre colocando o protagonista numa situação em que ele tem um tempo limitado para salvar determinado personagem, gerando a mesma ansiedade que filmes desse gênero costumam causar.

Eu poderia entrar também nas questões psicológicas que envolvem o estado mental do nosso protagonista, mas pra isso teríamos que entrar no campo dos spoilers. Então, tal como em The Sand Man, esses detalhes da história eu acho melhor que vocês vejam por si mesmos para aproveitarem a trama em sua totalidade.

Agora vamos pular para o último jogo que fecha The Strange Men Anthology:

 THE HANGED MAN (2017)

The Hanged Man, quarto e último jogo da série The Strange Men Anthology
The Hanged Man é, sem dúvidas, o jogo mais maduro da série
em relação ao game design

Chegamos ao quarto e último (até o momento) capítulo de The Strange Men Anthology. Se eu falei que The Sand Man foi uma demonstração de coragem da Uri em tentar algo diferente depois, The Hanged Man é uma demonstração de autoconfiança. Aqui Uri está plenamente confortável, com sua linguagem de jogo e identidade visual bem definidas. Não existe necessidade alguma mais de provar suas habilidades e nem uma tentativa desesperada de “se reinventar”. É apenas mais uma execução muito competente de tudo que ela estabeleceu na sua série.

Como eu falei no tópico anterior, estamos numa área nebulosa aqui em relação ao gênero da ficção em que podemos encaixar esse jogo. Não somente porque os limites entre o thriller psicológico e terror psicológico não são tão aparentes assim, mas também porque ao longo de toda a antologia nós vemos elementos desse tipo de terror sendo inseridos em cada um dos jogos.

Voltando ao que separa o thriller do terror psicológico um comentário no Reddit me chamou a atenção pois ele resumo que ele faz ao final dos seus argumentos:

Basicamente, terror psicológico é sobre sentimentos internalizados se tornando ações externalizadas e thriller psicológico é sobre ações externas se tornando sentimentos internalizados

Em outras palavras, no terror psicológico seus medos, angústias, ressentimentos, etc; ganham forma. Algo como vimos sendo aplicado em toda a franquia de Silent Hill onde cada um dos monstros do jogo tem um significado maior que reflete os demônios internos dos seus personagens. Um dos exemplos mais conhecidos da franquia, o Pyramid Head, manifesta toda a culpa carregada pelo protagonista e sua necessidade de uma punição por seu atos.

Silent Hill 2, um dos melhores survival horror já feitos
Silent Hill é de longe o maior e mais conhecido exemplo de terror psicológicos nos jogos

Seguindo a tradição do texto, vou parar o raciocínio para contextualizar sobre a trama:

William ‘Will’ Morton é um adolescente de 14 anos que foge de casa e é encontrado por um dos seus parentes, David Hoover, o protagonista de The Crooked Man. Depois de fugir também da casa de David, Will vai parar numa prédio abandonado, um antigo hospital psiquiátrico. E aqui é onde David passa a testemunhar diversos eventos sobrenaturais que aparentemente estão relacionados ao passado sombrio do hospital.

Tanto o contexto, quanto o cenário e também a atmosfera do jogo traz uma sensação familiar a de The Crooked Man, porém a muitas diferenças entre um jogo e o outro e muitas delas deriva da nossa percepção sobre o protagonista.

Nos primeiros minutos de jogo Will não fala, o que nos faz crer que esse será um típico caso de protagonista silencioso. E nesses minutos iniciais a voz de William é representada por Pop, um ratinho falante que o garoto carrega consigo. Contudo, depois de chegar no hospital psiquiátrico, alguns eventos fazem Will e Pop se separarem e a partir daí o protagonista passa a falar normalmente e explorar o hospital em busca de Pop. Nesse momento que tanto o garoto como nós, os jogadores, começamos a testemunhar eventos sobrenaturais.

Cena de The Hanged Man
Uri dá um show de atmosfera e cinematografia em The Hanged Man

Aqui é onde reside a principal diferença com The Crooked Man.

No primeiro título da antologia dos Strange Men nós nunca questionamos o que está acontecendo com David. Desde os primeiros eventos no seu apartamento até o último confronto com o Homem-Torto nós sempre aceitamos que os eventos estão acontecendo de fato com o protagonista. Inclusive porque um segundo personagem confirma a ocorrência desses eventos. Por outro lado, em The Hanged Man nós não temos essa mesma certeza.

Desde o momento que Pop surge, ainda mais pelas atitudes de Will no início da história, uma dúvida é posta na nossa cabeça a respeito da sanidade do personagem. Isso fica reforçado conforme prosseguimos no jogo e descobrimos que Pop não é o único amigo imaginário de Will, ele é o mais recente. Will foi relegado ao ostracismo pela maior parte da sua infância por dizer que vê coisas que ninguém mais vê, essas coisas sendo os seus outros amigos imaginários. Como a história é contada a partir do ponto de vista dele, a ambiguidade da real existência desses personagens é muito forte. Assim fica a cargo do jogador interpretá-los como manifestações reais ou fruto da imaginação de uma criança que passou por alguns episódios traumáticos durante a sua vida.

Cartas de tarô em The Hanged Man
Tarô é um importante tema em The Hanged Man

Essa ambiguidade é reforçada num dos puzzles do jogo onde Will precisa organizar um conjunto de cartas de tarô onde cada carta tem um significado diferente de acordo com a sua posição. O titular Enforcado como eu já havia mencionado tem um valor muito mais simbólico do que uma ameaça real ao protagonista. Só vemos um antagonista se estabelecer de fato nos momentos finais do jogo. Isso tudo colabora para criar essa desconfortante atmosfera do jogo onde não temos certeza de nada que está acontecendo e a dúvida torna o terror psicológico tão intrigante para a audiência.

No último capítulo da sua antologia, Uri mostra que sabe lidar muito melhor com a ambiguidade do que no início da sua série e assim ela consegue criar um ótimo exemplo de jogo de terror psicológico para fechar com excelência essa jornada que nos levou a tantos lugares e, principalmente, gêneros diferentes.


Esse vai ser um dos raros casos que deixarei o texto sem uma conclusão mais elaborada. Não tem muita necessidade. As últimas pontuações que tenho para fazer é que dessas vez busquei mostrar o que mais me interessou em The Strange Men Anthology, mais como obras de ficção do que como jogos. Por isso não quis me aprofundar na jogabilidade de cada um dos títulos da série. Mas acho não preciso dizer que recomendo cada um deles, certo? E espero que Uri continue experimentando novos gêneros em seus jogos pois é que faz cada um especial ao seu modo.


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