O tempo em The Friends of Ringo Ishikawa

Enduro, um dos primeiros jogos de corrida feitos

Tempo como uma grandeza física mensurável não é nenhum conceito estranho ao mundo dos jogos. Afinal ele já está atrelado na jogabilidade desde os longínquos anos de Enduro onde você precisava ultrapassar uma determinada quantidade de carros num determinado período de tempo.

Com o passar do errrr… tempo, essa variável foi se tornando mais presente em diversos jogos e se tornando uma mecânica fundamental da sua gameplay. Porém tem um jogo indie que joguei recentemente chamado The Friends of Ringo Ishikawa que eu gostaria de discutir nesse tópico. O jogo me marcou profundamente pela relação que ele me fez ter com o tempo numa perspectiva existencialista.

O TEMPO COMO MECÂNICA EM JOGOS

Where in the World Is Carmen Sandiego? é um clássico jogo educacional dos anos 80

Acredito que, quando pensamos no conceito do tempo aplicado em jogos, geralmente a primeira coisa que vem na cabeça é nesse fator “bomba-relógio”. Nesse caso, gente tem um limite de tempo para alcançar/concluir um objetivo. Caso contrário, sofremos alguma consequência como perder uma vida e ter que recomeçar a fase de novo. Razão pra existir isso é clara: gera uma tensão na jogabilidade e cria uma camada de dificuldade para o jogador.

Um bom exemplo dessa aplicação é no saudoso Where in the World Is Carmen Sandiego. Esse foi um jogo que toda criança dos anos 90 com um HD com pouca memória teve em algum momento no seu computador. Nele tínhamos que rastrear e capturar um ladrão num prazo determinado no começo da “missão”.

Não citei outro jogo antigo apenas porque eu sou um véio paia saudosista, mas também porque tem outro elemento na jogabilidade de Where in the World Is Carmen Sandiego que eu quero destacar: a administração do tempo. Cada ação no jogo “custa” uma quantidade de horas então você precisa ser estratégico na coleta de pistas. O jogador tem que evitar ao máximo os erros para não só encontrar o ladrão, mas ainda ter tempo para emitir o mandato de prisão.

Se formos considerar o tempo como um recurso que precisa ser administrado não tem um exemplo melhor do que a série de simulação de fazenda Harvest Moon. Hoje ela precisou mudar de título para Story of Seasons porque a antiga distribuidora, Natsume, detém os direitos do nome. Contudo eu ainda a trato com o título antigo porque me afeiçoei a ele. Se cuidar de uma fazenda já não é problema suficiente, o jogador ainda precisa se preocupar em como organizar suas plantações. Com isso você estabelecer uma rotina que melhor otimize o uso do tempo para concluir as tarefas do dia-a-dia.

Harvest Moon: Friends of Mineral Town
Ô saudades dessa fazendinha!

Indo mais a fundo no conceito, o tempo também ganha uma qualidade imersiva ao considerarmos, por exemplo, a mecânica dos ciclos de dia-noite que podemos encontrar em RPGs como o primeiro Breath of Fire ou jogos de mundo aberto como Minecraft. Tais ciclos também tem propósitos in-game onde acho que o melhor exemplo que pode ser citado é Pokémon Gold/Silver/Crystal. Prometo que vou parar de falar de outros jogos e entrar no tema logo!

O jogo não tinha apenas o ciclo de dia-noite em tempo real, mas também considerava o dia da semana. Essas mecânicas influenciam fortemente a gameplay, com eventos específicos que são acionados dependendo do período. A passagem dos dias também faz com as árvores deem novos frutos. Além disso, alguns pokémons evoluem para formas diferentes dependendo do horário que você os treina.

Ciclo de dia e noite visto em Pokémon Crystal, também presente em Pokémon Gold e Pokémon Silver
Ciclo de dia e noite visto em Pokémon Crystal

Bom, depois de tantos exemplos acho que agora eu posso falar de The Friends of Ringo Ishikawa. Como mencionado lá trás, esse foi um jogo que me fez ver o tempo num sentido muito mais profundo do que um mero recurso a ser administrado ou um elemento para dar mais imersão do jogo. Nele o tempo é um componente importante da própria narrativa.

UMA BREVE REVISÃO DA JOGABILIDADE DE FRIENDS OF RINGO ISHIKAWA

The Friends of Ringo Ishikawa

Quando começamos The Friends of Ringo Ishikawa, de cara a gente nota a influência da série Kunio-kun. Por isso assumimos que ele será um beat’em up girando em torno de delinquentes japoneses. O jogo já abre no meio de uma briga no trem entre o protagonista, Ringo, e um dos seus companheiros, Ken, contra membros de uma gangue rival. Porém, logo surge um relógio digital no canto superior da tela e notamos que existe um ciclo de dia-noite no jogo.

Quando a gameplay começa de fato, a gente percebe que o jogo tem um pézinho de Harvest Moon. Você divide as horas disponíveis de cada um dos seus dias entre diversas tarefas: assistir as aulas, estudar para os exames, treinar para conseguir novos golpes, ir na academia para aumentar seu HP total, trabalhar na locadora, ir com seus amigos até o bar local para jogar sinuca, ouvir música ou puxar briga com os outros delinquentes. E no final você precisa descansar para que o seu personagem não desmaie no meio da tarde.

Entre essas tarefas você também pode ativar alguns eventos que movem a história de Ringo e seus amigos para frente. Assim o jogo deixa de ser apenas um simulador de delinquente japonês e sim um estudo desses personagens.

The Friends of Ringo Ishikawa

Dentro das ações que o jogo permite seu personagem realizar existem umas particularidades que a princípio não parecem servir a qualquer propósito. São pequenos gestos, alguns com mais de uma variação, como: se apoiar na murada da varanda do Ringo ou na ponte perto do seu apartamento, acender um cigarro, ficar sentado num píer observando o mar ou atirando pedras na água ou então em bancos parado ou lendo um livro, levar um amigo pro restaurante local onde vocês podem pedir alguma coisa ou ficar apenas conversando e prestar atenção no professor ou simplesmente se distrair durante toda a aula.

The Friends of Ringo Ishikawa

De todas essas ações, apenas a de prestar atenção na aula tem alguma função real. Ela aumenta a quantidade de conhecimento que você adquire da matéria, caso você queira investir nos estudos na sua playthrough. Comer no restaurante também ajuda recuperar um pouco de HP, entretanto o custo-benefício com as horas gastas não torna isso muito viável.

Fora isso, todas outras ações não servem pra nada além de dar mais imersão no jogo. Nem mesmo passar um tempo seus amigos tem algum objetivo maior dentro da jogabilidade. Não existe qualquer sistema de amizade que você precisa construir/manter com seus companheiros como em Harvest Moon. Ou como em Stardew Valley que é o que a garotada de hoje em dia curte. Nossa, envelheci uns dez anos nessa última frase! Enfim, passar mais tempo ou não com seus amigos não altera em nada o desfecho do jogo.

Então não apenas não existe um motivo prático em termos de jogabilidade pra você ficar parado no píer ou no banco do ponto de ônibus. Entretanto, essas ações te dão uma uma sensação estranha. Não dá pra explicar (ainda), mas nessas horas o jogo fica um tanto… triste!

MAS (precisa ter um mas, né?) eu não ficaria aqui enrolando por não sei quantas palavras se eu não achasse que existe um motivo mais profundo por trás dessas pequenas ações que o jogo ter permite realizar. Sim, eu acho que eles vão muito mais além de uma simples imersão. Esses detalhes foram adicionados com um objetivo maior que está relacionado com a palavra que eu tenho repetido desde o primeiro parágrafo.

A INESCAPÁVEL PASSAGEM DO TEMPO

No contexto do jogo, Ringo e seus amigos estão no período da transição entre a adolescência e a vida adulta. Depois do time skip de mais ou menos um ano após a intro, toda a trama se passa durante os últimos meses deles na escola. Daí o jogo vai mais a fundo no estilo de vida desse pequeno grupo de delinquentes. Mas ao contrário da série Kunio-kun que aborda o tema de maneira mais leve e caricata, em The Friends of Ringo Ishikawa o tópico é tratado com mais seriedade. Com direito a questões de existencialismo e um forte sentimento de melancolia e descrença com o futuro que impregna a narrativa do jogo.

Tanto Ringo quanto seus amigos são representados na história como não tendo qualquer perspectiva para a vida além do ensino médio. Então eles estão muito presos a essa vida de delinquência. Masaru, o braço direito de Ringo, por exemplo, começa o jogo afirmando que o plano dele para quando se formar é de se juntar a Yakuza. Shiro e Goro também demonstram essa mesma falta de consideração para com a próxima fase de suas vidas. Goro mais ainda pois não sente que tenha qualquer outra aptidão além de brigar. Desse grupo, o único que parece ter alguma aspiração além da vida de delinquente é Ken que tem a chance de seguir uma carreira no boxe. Mas mesmo assim a vida acaba interferindo nesses planos e ele se vê tão sem futuro quanto seus companheiros. O homem planeja e Deus ri.

Nesse clima de desesperança, Ringo tenta a todo custo manter seus amigos unidos, mas também é acometido pela mesma desilusão com o futuro. Com ele fica tudo mais evidente afinal é com o Ringo que controlamos durante o jogo todo, mesmo que ele nem sempre seja o foco dos eventos da história. Quando vemos Ringo se levantando da cama com os ombros caídos, dá pra sentir ele pensando: “*sigh* Mais um dia…”.

The Friends of Ringo Ishikawa

Na verdade, menos um dia!

Veja bem, todo dia no jogo a gente levanta e sai correndo de um lado pro outro, tentando usar as horas que temos na melhor forma possível. Porém nunca parece que existe tempo suficiente pra fazer tudo. Até porque alguns horários entram em conflito e você precisa decidir o que vai priorizar. Para piorar, durante uma dessas correrias ainda tem o risco de algum evento ativar o que interfere totalmente nos seus planos para aquele dia pois podem se passar muitas horas numa única cutscene.

Então chega um momento que você simplesmente cansa, vai pra varanda, acende um cigarro e fica vendo a rua, chama seus amigos para ver um filme e depois ir jogar umas partidas de sinuca.

The Friends of Ringo Ishikawa

Foi nesse meu cansaço de tentar usar todas as horas disponíveis do dia para maximizar o máximo dos atributos do meu personagem que eu finalmente entendi o porquê daqueles pequenos detalhes terem sido adicionados no jogo. E também entendi porque eu me sentia um tanto triste vendo Ringo parado com um olhar meio introspectivo na sua varanda olhando pra rua.

Quando passa uma hora do jogo, não é uma hora a menos para praticar boxe, estudar química ou fazer uma sessões de barra na praça do jogo. É uma hora a menos na vida do próprio Ringo! Você sente que o tempo do protagonista está passando, os tempos de rebeldia juvenil tem seus dias contados, a vida adulta se aproxima. E não tem nada que ele, ou você, possa fazer pra impedir isso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Teoricamente o jogo pode ser infinito se você souber como evitar os eventos scriptados da história progredir, identificando onde e quando eles ativam. Mas isso não muda a sensação o que o jogo te passa. Ou seja, podemos até pausar a progressão da trama, mas a sensação que o tempo do Ringo e seus amigos está passando fica conosco durante toda a gameplay. Porque a gente sabe que uma hora aquilo vai acabar, não se é jovem para sempre. O período letivo chegará ao fim e deixará em seu lugar um futuro incerto.

Por isso que eu entendo porque o Ringo vai até o píer, senta, olha para o horizonte, taca uma pedra no mar, vê ela quicando na superfície até parar e por fim afundar. Porque o tempo é uma briga que ele não pode vencer e não sabe como lidar com isso.

E, convenhamos, quantos de nós sabíamos naquela idade?

Talvez até hoje não sabemos…

The Friends of Ringo Ishikawa

Esse texto foi feito numa série chamada Game Cuts que foca em alguma particularidade bem específica de um ou mais jogos. Iniciei no meu perfil do Medium e resolvi trazê-la para o blog. Eventualmente é possível que eu traga algum dos textos mais antigos como esse aqui de The Friends of Ringo Ishikawa

Atenciosamente, a direção


4 comentários em “O tempo em The Friends of Ringo Ishikawa”

    1. Ele é bem legal. Assim, no começo é um tanto chato de você entender as coisas que tem que fazer porque ele não te dá direção alguma. Mas nada que um guia de internet não resolva. O ponto alto mesmo é a história e como ela vai trabalhando as perspectivas desses personagens sobre a própria vida. O desenvolvedor de The Friends of Ringo Ishikawa tá pra lançar outro jogo, focando na máfia japonesa, que parece que vai ter a mesma pegada: Fading Afternoon

  1. Cara encontrei seu texto em uma busca sobre dicas do jogo. Parabéns, eu estava meio que tentando entender onde esse jogo me pegou, e seu texto me mostrou muito do meu interesse e de uma sensação um tanto melancólica enquanto jogava, não encontrei as dicas mas encontrei ouro com esse seu texto. Abraços

    1. Opa! Fico feliz que tenha gostado do texto, William. Esse texto do Ringo Ishikawa é um dos que eu mais gostei de escrever e é muito bom saber que ainda tem gente encontrando ele.

      Quanto as dicas, em português eu não sei se tem algum detonado, mas na Steam tem vários guias em inglês que podem te ajudar.

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