Na minha vida eu li pouquíssimos mangás. E o superlativo não é exagero. Até pouco tempo atrás eu só tinha lido quatro obras completas: Hellsing, Vitamins, Devilman e Ashita no Joe. Não tentem entender o porquê de especificamente essas obras porque nem eu sei qual foi meu processo seletivo. Pois bem, essa situação mudou nos últimos meses já que decidi me aventurar pelos quadrinhos japoneses que eu ignorei por tanto tempo. Agora nessa lista existem mais 14 itens. Dois deles eu adicionei recentemente, Astro Boy e Pluto.
Quem já está por dentro do universo de mangás e animês provavelmente está familiarizado com a relação entre essas duas obras. Mas para os leigos de plantão eu explico.
Astro Boy, Atom ou Mighty Atom, como você prefira chamar, é um mangá da década de 50 escrita por Osamu Tezuka. Esse é ninguém menos o autor que recebeu as alcunhas de Pai dos Mangás e Walt Disney Japonês. Eu vou entrar em mais detalhes sobre ele e sua obra nos tópicos seguintes, mas aqui vale pontuar que Astro Boy é considerado, assim como seu autor, um dos trabalhos mais influentes da história dos mangás. É obra mais famosa do Tezuka que inspirou dezenas de mangakas da sua época e também da atualidade.
Entre esses autores se encontra Naoki Urasawa, um dos maiores nomes das últimas décadas. Em 2003, junto com seu ex-editor Takashi Nagasaki, ele criou o mangá de Pluto. Essa é uma reimaginação de um dos contos mais famosos de Astro Boy, The Greatest Robot on Earth, que adaptado mais de uma vez nas séries animadas.
Já na sua versão, o Naoki transforma a história original numa narrativa de mistério e assassinato – o bom e velho murder mystery – recheado de suspense. Tem uma atmosfera que não diria que mais “madura”, porém definitivamente menos lúdica que as das obras do Tezuka. Ao contrário do original que já começa revelando seu antagonista, em Pluto a identidade do vilão é revelada aos poucos conforme os personagens vão juntando informações. Assim há uma ênfase maior no mistério em volta do próprio elenco.
Nessa história, um sultão robô manda que seu principal cientista crie um robô tão poderoso para receber o título de rei dos robôs chamado Pluto. Para isso, Pluto tem que enfrentar os sete robôs mais avançados do mundo e vai derrotando cada um deles até que finalmente Astro o impede.
É um arco muito icônico que mostra a habilidade do Tezuka em criar histórias com personagens memoráveis. Ele tem um alto senso de aventura, ação e bom humor. Nas entrelinhas ele também aborda um dos seus temas mais clássicos sobre a natureza beligerante da humanidade, mas falaremos disso mais tarde.
Então, ainda que eu não fosse um leitor de mangás, esses nomes não me eram estranhos. Eu já sabia da influência que o Osamu Tezuka tinha na história da mídia. Também já tinha ouvido algumas coisas sobre alguns mangás do Naoki Urasawa. Por isso que busquei ler duas obras de cada um nesse final de ano. Comecei com Kimba the White Lion do Tezuka, por ser muito mais curta que Astro Boy que era meu plano incial. Já do Naoki eu escolhi 20th Century Boys por curiosidade de tanto que eu ouvia recomendarem esse mangá. Semanas atrás eu comecei a ler os volumes de Astro Boy e uma vez terminados eu parti para o Pluto.
Ambas as obras me fascinaram bastante. Em Astro Boy foi onde pude sentir o amadurecimento do Tezuka como autor em contraste com o que tinha lido em Kimba. E em Pluto eu enxerguei toda a admiração que o Naoki tem pela obra original que o influenciou a seguir sua própria carreira. Indo um pouco mais além, no caso específico de Pluto o que mais me fascinou é a coragem em tocar no que consideram um clássico dos mangás e tentar reimaginá-lo. Uma tarefa que não é fácil pra ninguém. Pergunta aí pro Denis Villeneuve se foi tranquilo filmar uma sequência para Blade Runner? Melhor ainda, pode perguntar para o próprio Naoki. Ele vai te contar sobre toda a pressão que recai em você ao tocar em uma obra tão consagrada.
Para mim o Naoki Urasawa não apenas conseguiu mostrar um tremendo carinho e respeito pela obra original, mas como também engrandecê-la. E não naquele sentimento de “eu posso fazer isso melhor”. Ele veio com a cabeça de um fã que quer criar a sua própria versão de uma história que significou e ainda significa tanto para ele.
E depois de uma longa introdução, vamos a uma crítica/ensaio sobre o que eu achei de Pluto!
O “MESTRE” E O “APRENDIZ”
Na minha crítica sobre Return to Monkey Island eu bato constantemente na tecla de como o criador da série, Ron Gilbert, é uma peça chave para se entender o jogo. Da mesma forma, para se entender melhor Pluto é necessário compreender a relação do seu autor com a obra do Tezuka. Seguindo o padrão, para se entender melhor Astro Boy ajuda se você conhece um pouco sobre o seu autor.
Osamu Tezuka nasceu em 1928, quando a desenhos animados estavam em ascensão. Assim durante a sua infância ele vivenciou a chamada Era de Ouro da Animação. É, portanto, que os trabalhos do Walt Disney e de seu principal competidor, Fleischer Studios, tiveram uma enorme influência no desenvolvimento criativo do Tezuka. Eles o ajudaram a estabelecer esse charme lúdico de desenho matinal do seu traço. Não é nem de se surpreender que de todos os cartunistas ao redor do mundo o Tezuka foi desenvolver uma forte amizade com o nosso Maurício de Sousa.
E outra importante influência em Tezuka vem de um pequeno evento que ele testemunhou na sua adolescência chamado de Segunda Guerra Mundial. Em seu livro, The Astro Boy Essays: Osamu Tezuka, Mighty Atom, and the Manga/Anime Revolution, o autor Frederik L. Schodt conta como ter passado pela Segunda Guerra Mundial afetou profundamente o modo de pensar de Tezuka:
Em vez de recuar num completo cinismo ou ódio pelo mundo exterior, no caso de Tezuka, o resultado de tudo isso foi a repulsa pela guerra, tema que permearia quase todas as obras que ele criou depois. Além disso, ele desenvolveu um interesse ao longo da vida sobre a complexidade da natureza humana, uma profunda crença na necessidade de comunicar com outras culturas e no poder dos mangás e animações para ajudar a fazer isso
Frederik Schodt; The Astro Boy Essays: Osamu Tezuka, Mighty Atom, and the Manga/Anime Revolution, p. 30
Achei esse trecho importante porque Astro Boy parece incorporar todos esses elementos ao longo dos seus 16 anos de publicação. Feito como uma série de histórias independentes, a obra do Tezuka expõe mensagens anti-guerra, a necessidade (e dificuldade) da convivência pacífica e uma reflexão filosófica sobre o que nos torna humanos. Astro Boy carrega um otimismo no futuro da humanidade, representando valores do avanço não necessariamente tecnológico, mas sim moral. Mais do que um robô, o personagem representa aquilo que o Tezuka acreditava que nós, na nossa condição humana, deveríamos aspirar a alcançar.
Com seu carisma e o espírito de heroísmo, Astro Boy cativou uma legião de jovens leitores. Junto com o restante das obras de Tezuka, ele inspirou muitas pessoas a buscar uma carreira no mundo dos mangás e da animação. Dentre esses jovens leitores estava Naoki Urasawa que tem o Osamu Tezuka não apenas como uma figura de inspiração, mas também como a de um herói. The Greatest Robot on Earth em especial foi importantíssimo para o Naoki, como ele próprio cita no primeiro volume de Pluto:
(…) Osamu Tezuka, um mangaka por quem eu nutro um tremendo respeito, criou a série de Astro Boy. Um clássico atemporal que foi lido inúmeras vezes fãs desde quando foi criado nos anos 50 até hoje. Quando criança, o arco de “The Greatest Robot on Earth” foi o primeiro mangá que eu li que me marcou e me inspirou a me tornar um mangaka.
Naoki Urasawa; Pluto, vol. 1
Essa reverência que o Naoki vem no nível professional e também passional. Astro Boy não é apenas um mangá que ele admira pela sua contribuição para a história dessa mídia. Essa é também uma obra pela qual ele tem uma imensa afeição desde a infância. E ao termos conhecimento de todo esse carinho que ele tem pelo original, podemos entender e apreciar melhor a sua abordagem em Pluto. Naoki consegue manter a essência de Astro Boy enquanto coloca seu próprio estilo na história a fim de expandi-la. E é isso que iremos discutir nos próximos tópicos.
A ESSÊNCIA DE ASTRO BOY
Se me perguntassem se é necessário ler Astro Boy antes de ler Pluto eu responderia: em termos práticos? Não! Em termos morais? Sim!
Existe uma leve continuidade em algumas histórias da obra original do Tezuka. Mas no geral você consegue ler qualquer uma delas numa boa apenas entendendo o contexto do personagem. No caso da reimaginação do Naoki, ele recria todo o world-building de Astro Boy de forma que se você nunca leu uma das histórias você consegue se inteirar perfeitamente no universo da obra. Então conhecendo ou não Astro Boy, ou até mesmo a história específica de The Greatest Robot on Earth, você não terá problema em se situar.
Só que desse modo fica mais difícil perceber como o Naoki conseguiu capturar e representar a essência da obra do Tezuka no seu próprio mangá.
Logo no começo da história nós já uma demonstração bem clara de como o Naoki entende aquilo que é de mais importância para Astro Boy. Logo no começo um robô-patrulhador acaba destruído durante uma operação policial. Então um dos personagens principais, o detetive Gesicht; que coincidentemente é um dos robôs mais avançados do mundo sendo propriedade Europol, vai até a casa da esposa do robô para avisar da morte do seu marido. Nessa sequência nós vemos a robô ter uma reação profundamente humana, ainda que ela não tenha as mesmas expressões que nós. E também vemos a reação que isso produz no próprio Gesicht. Nessa rápida, porém impactante passagem observamos um robô experimentando a dor de perder um ente querido enquanto um segundo sente empatia pela sua situação.
Já logo no seu primeiro capítulo, Pluto traz o elemento da humanização dos robôs uma característica fundamental em praticamente todas as histórias de Astro Boy. Naoki entende que por mais que a palavra robô é repetida sucessivamente nessa obra, o que Tezuka não fala sobre autômatos. Ele fala sobre seres humanos, emoções humanas, relações humanas. De tal forma, os robôs em momento algum parecem ser máquinas. Eles tem famílias, sonhos, pensamentos próprios, experimentam sentimentos que não são apenas fruto das suas linhas de códigos. Quando um dos personagens robôs “morre”, não vemos uma mensagem robótica de “FALHA NO SISTEMA”, nós vemos ele relembrando dos seus entes queridos. Tal como em Astro Boy, os robôs de Pluto conseguem ser tão, senão mais, humanos quanto nós mesmos.
E embora Pluto seja uma reimaginação de um único arco, o Naoki puxa vários outros aspectos de outras histórias de Astro Boy para incorporar na sua versão. Não me refiro aquelas referências mais pontuais que servem como uma piscadinha para o fã. Tem um pouco disso como quando mostram brevemente um desenho do carro de polícia com design de cachorro. Contudo eu me refiro aos temas e até linhas narrativas trabalhadas em outras edições.
Um grande exemplo é a inclusão do grupo de supremacistas anti-robôs que é um tema recorrente de vários arcos de Astro Boy. Porém no arco específico de The Greatest Robot on Earth ela não estava presente. Naoki traz esse elemento para dentro da sua versão do arco primeiro por uma questão de world-building, discutindo os impactos que a existência de robôs causariam na sociedade. Contudo a principal contribuição é a de enfatizar mais uma das questões que Tezuka considerava tão importante discutir nas suas obras. Aqui ele fala sobre a discriminação que se perpetua através das estruturas e grupos políticos da sociedade.
Nessas adições, temos também uma extensão do uso do personagem do Dr. Tenma. No quadrinho original ele cai meio que de paraquedas na trama com o intuito de atualizar Astro e deixá-lo mais forte já que ele é o cientista responsável por criar o robô. Ele tem função específica na história e uma vez que é concluída ele vai embora tão rápido quanto entrou. Para fins narrativos desse arco isso basta. Mas para quem não conhece a história de Astro Boy acaba ficando com a impressão que a relação deles é bem amigável.
Muito pelo contrário!
A origem de Astro Boy é marcada por muita tragédia, tanto do lado do criador quanto do lado da criação. Dr. Tenma desenvolveu o Astro ao perder seu único filho, Tobio, num acidente de carro como uma forma de minimizar a dor do luto. Mas o efeito que o robô causa é o oposto, pois acaba servindo como um lembrete que seu filho não está mais ali. O robô nada mais é que uma cópia autômata que não substitui aquilo que já se foi. Assim o Dr. Tenma começa a nutrir um ressentimento pela sua própria criação e numa explosão de raiva acaba vendendo-a para o circo. Eventualmente ele mostra arrependimento pela forma que tratou o Astro. Por isso que em The Greatest Robot on Earth parece que tudo está bem entre eles.
Naoki toma a oportunidade na sua versão de expor um pouco desse passado trágico entre os dois personagens. Em rápidas passagens, ele discute mais a relação entre os seres humanos e os robôs. Ela varia de uma afeição genuína até um profundo ressentimento que quebra essa barreira entre o homem e a máquina. Assim ambos são tratados como iguais através das emoções.
Então o que o Naoki faz em Pluto não é apenas pegar esses outros elementos de Astro Boy apenas para tornar a sua história mais diferente, ou até mais política como iremos ver logo a seguir, que o arco original. O que autor pretende com isso trazer mais da essência do conjunto da obra de Tezuka que acaba se diluindo nas suas dezenas de histórias independentes. Assim ele consegue mostrar ao público tudo que torna Astro Boy um trabalho tão significante.
Aí vem outra função importante da visão de Naoki sobre o Astro Boy. Porque não é que ele esteja tentando reinventar The Greatest Robot on Earth. Ele está na verdade complementando a história com tudo aquilo que ele leu e aprendeu sobre o personagem e sobre as mensagens que o Tezuka tentava passar para seus leitores. Mas é claro que apenas adicionar mais coisas não é motivo o suficiente para retocar esse clássico. É aqui que o Naoki toma liberdade de melhorar aquilo que o clássico já tinha de bom.
REIMAGINANDO (E COMPLEMENTANDO) UM CLÁSSICO
The Greatest Robot on Earth é uma história em quadrinhos com menos de 200 páginas. É um bom tamanho para se construir uma narrativa que tenha um começo, meio e fim. Ainda que você não consiga desenvolver suficientemente todos os seus personagens.
Claro que tendo diversos robôs na sua trama, o Tezuka não chega a se aprofundar muito neles. O benefício é que ele tinha um enerome talento para construir personagens memoráveis. Tirando o antagonista Pluto, que de fato tem um arco de personagem bem definido, se o único personagem um pouco mais trabalhado é um dos últimos robôs da histório, Epilson. Os demais são essencialmente plot devices, eliminados tão rápido quanto são apresentados. Porém isso consegue ao menos dar uma sensação de urgência para a história original.
Sendo assim, uma das coisa que o Naoki faz na sua versão é aproveitar a maior quantidade de espaço que uma série dividida em múltiplos volumes lhe dá para fazer esses personagens crescer. Ele também inverte as posições. No original o antagonista aparecia muito mais do que qualquer outro membro do elenco e aqui ele passa 90% do tempo. nas sombras. Com isso há mais espaço para que os outros personagens tenham o seu destaque merecido.
Brando, por exemplo, um robô que chega em The Greatest Robot on Earth para se vingar da morte do seu amigo e é destruído poucos quadros depois. Já em Pluto ele ganha todo um background como um ex-combatente, apresentam sua família na história e suas relações com os demais personagens ganham mais desenvolvimento. Todos os outros robôs, Montblanc, North No. 2 e Hercules recebem o mesmo tratamento onde todos viram veteranos de guerra. Atom, relembrando que esse é o nome original de Astro Boy, e Epilson também tem essa ligação com a guerra, porém ambos vaziam parte de um grupo pacifista.
Essa mudança que o Naoki faz na sua versão muda os personagens que antes eram meros plot devices e os conecta melhor a trama principal que agora se aprofunda mais no tema da guerra.
Mesmo mirando num público infanto-juvenil, traços de geopolítica podem ser apontados ao longo de toda a publicação do Astro Boy. Numa de suas histórias do arco de Once Upon a Time – Astro Boys Tales, por exemplo, onde ele volta no tempo, Tezuka põe seu personagem num embate direto contra exército americano ao proteger uma aldeia durante a Guerra do Vietnã. Eventualmente, quando Astro já não tem mais energia para proteger as pessoas, o exército retorna e massacra toda a aldeia que não apresentava qualquer ameaça a eles.
Você tem um pouco dessas questões sendo pinceladas no subtexto de The Greatest Robot on Earth que, como Naoki descreve, vai além de um robô do bem derrotando o robô do mal e nos mostra como a guerra é um ato vazio, algo que é perfeitamente desenhado nos momentos finais da história original:
O tema é expandido em Pluto, uma vez que todos os eventos da história não são causados por um sultão com sede de poder e tem suas raízes numa guerra que se dá nesse universo. Na história ela é chamada de 39ª Guerra do Oriente Médio, ocorrendo quando os Estados Unidos de Thracia invadem a República da Pérsia sob a alegação que haviam armas de destruição em massa sendo construídas no país. Hm, me pergunto se o Naoki estaria referenciando algum evento histórico real que aconteceu na época de publicação do mangá?
Colocando a trama sobre esse contexto, Naoki consegue ir mais a fundo em temas relacionados a guerra tanto no nível macro como os interesses geopolíticos que motivam esses conflitos, bem como no nível micro/individual ao olhar para as vidas que são afetadas (e perdidas) ao longo da guerra. E ainda que a maior parte dos embates que nós os leitores vemos no mangá são entre robôs, ainda existe aquele elemento pungente e trágico da natureza beligerante dos seres humanos que, como já destaquei várias vezes, o Tezuka colocava na sua obra e o Naoki desenvolve o mesmo talento em reproduzir.
Um momento perfeito para evidencia isso ocorre durante um flashback quando Hercules fala da sua experiência na guerra contando o caso de quando ele viu um dos seus companheiros robôs lavando as mãos sem parar enquanto repetia “não quer sair! Não quer sair!”, representando ali o estresse pós-traumático que muitos soldados enfrentam ao serem obrigados a matar dezenas de pessoas numa guerra de interesses escusos.
E por fim temos Gesicht que pra mim é, sem sombra de dúvidas, a melhor das mudanças que o Naoki faz na história original.
Por não haver nenhum mistério em The Greatest Robot on Earth, uma vez que o vilão e suas motivações já são reveladas logo de cara, a figura de um robô detetive não traz muita coisa para fortalecer a narrativa. Diferente de Pluto onde ao termos uma mudança de gênero para um típico murder mistery, Gesicht tem muito mais a oferecer como personagem. Tanto é que ele quem assume o papel de protagonista por grande parte do mangá, sendo o Atom apresentado apenas no final do primeiro volume e tendo longas passagens na qual ele fica completamente ausente.
Gesicht desempenha um importante papel em conectar todos os personagens enquanto carrega também um forte núcleo emocional para narrativa no tema da humanização dos robôs. Enquanto no original ele é apenas mais um dos robôs a serem derrotados, em Pluto ele é o motor que faz a trama girar e nos serve de um veículo para conhecer todos os detalhes desse universo no mesmo passo em que os mistérios vão se desenrolando.
Os elementos que Naoki resgata de outras histórias de Astro Boy, mais as mudanças de papéis e adições próprias que ele injeta em Pluto trabalham perfeitamente em simbiose para fortalecer em muito a história original.
MAS ENTÃO, VALE A PENA LER PLUTO?
Vamos por de lado a existência de Astro Boy para este último tópico e considerar unicamente Pluto como uma obra que se sustenta por si só.
O Naoki consegue fazer um ótimo world-building que mistura os temas de transumanismo com questões políticas e sociais contemporâneas e que ainda se mantém relevantes quase vinte anos depois que o primeiro capítulo foi lançado. O ritmo da sua trama flui num passo perfeitamente desenhado e que hoje, tendo a obra completa a nossa disposição, deixa a leitura muito mais agradável.
Há também uma melhoria na narrativa do autor se compararmos com uma das suas obras anteriores, 20th Century Boys. Mesmo sendo uma história muito boa e intrigante, ainda existe uma frustração na sua narrativa causada pela necessidade do Naoki em esconder informações constantemente para manter o mistério vivo. Em Pluto ele consegue transmitir melhor a sensação constante de descoberta de forma que nos sentimos parte da investigação e não sendo enganados, ou tendo informações intencionalmente omitidas, por 80% do tempo.
Também acho interessante o uso que ele faz dos dois protagonistas, Gesicht e Atom, porque ambos executam seus papéis em momentos distintos de acordo com o tom necessário para história. Quando estamos sob uma atmosfera de investigação policial, Gesicht assume a dianteira pelas suas capacidades analíticas e de dedução além de adicionar uma nova camada de mistério a trama pelo seu passado um tanto nebuloso. E quando a história começa exigir um super-herói ao entrar numa clássica narrativa de “o mundo está sob ameaça” é Atom que brilha e traz consigo todo espírito de aventura que Astro Boy tinha embutido em si.
Ops, disse que era para esquecermos por um tempo o original, mas acaba sendo impossível falar de um sem mencionar o outro!
Mas não quero gastar elogios só aos protagonistas, porque todo o elenco satélite também é bem utilizado ao longo dos capítulos, bem amarrados a trama principal e trazendo contribuições temáticas relevantes para o que se discute na história. Ainda que todos sofrem os mesmos destinos que na história original, Naoki cria algumas surpresas que tornam o mistério mais intrigante e não tão previsível assim para quem já está familiarizado com The Greatest Robot on Earth. Quanto ao antagonista que dá nome ao mangá, Pluto não tem o mesmo carisma da sua versão original porque isso requer o talento distinto que Tezuka tinha para criar seus personagens. Contudo Naoki consegui aproveitar muito a tragédia existencial que o personagem possui e é tão vital para os temas da história.
Entretanto não vou dizer que tudo é perfeito, pois existe uma linha narrativa que não fica tão bem desenvolvida quando poderia ser e ao tentar concluí-la nas páginas finais deixa a sensação que foi uma inclusão apressada e forçada para o único objetivo de dar um fim a história que foi aberta. Também quem estiver esperando uma história com mais ação e porradaria entre robôs irá se decepcionar. Esse lado de Astro Boy fica quase pro inteiro omitido no mangá, pois Naoki enfatiza muito mais os diálogos e discussões que os personagens levantam. É só mais pro final quando há uma clara mudança no tom da história que passamos a ter uma ação mais presente.
Mas enfim, para responder a pergunta que eu mesmo fiz: sim! Vale muito a pena.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
The Greatest Robot on Earth e Pluto, duas obras diferentes em tom, mas que pra mim funcionam maravilhosamente bem juntas para você observar o estilo de cada um dos autores. Não vou cair naquele erro comum de querer classificar uma das duas obras como a melhor, pois não vejo necessidade para tal comparação. Cada uma segue muito bem dentro das suas propostas e não acho que ninguém deveria escolher entre uma delas.
Tanto o original do Osamu Tezuka (e Astro Boy como um todo) quanto a reimaginação de Naoki Urasawa não só merecem e como também devem ser lidas em conjuntos para produzir uma experiência completa. Naoki consegue transmitir todo o carinho e respeito que tem pelo trabalho de Tezuka que foi tão fundamental para seu desenvolvimento pessoal e profissional. Não é sempre que se vê um fã tendo a oportunidade de retrabalhar a obra do seu ídolo e fazê-lo com tanto esmero e qualidade, então não se privem dessa experiência e deem uma chance para ambas as versões!
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