Eu já falei aqui sobre qual é a minha relação com jogos antigos. Um dos pontos principais desse artigo era como essa relação não vem necessariamente de um lugar de nostalgia. Boa parte desses jogos mais antigos que eu tenho zerado nos últimos anos eu nem cheguei a ver na minha infância. Então, para resumir bem o porquê de eu fazer o que faço: eu gosto de explorar a história dos jogos e como essa mídia foi se desenvolvendo ao longo dos anos.

Tengay Makyou: Zero, um belíssimo RPG do Super Nintendo

Nesse esquema, eu volta e meia me deparo com algumas franquias e/ou jogos individuais que eu só conhecia por nome que se acabam por se tornar favoritos meus. O maior exemplo é o da minha atual franquia de survival horror favorita que é Fatal Frame. Meu contato com o primeiro jogo da série veio só em 2020 e foi daí pra frente que eu me afeiçoei a ela. O mesmo se aplica a trilogia Mother. O primeiro jogo foi lançado no final da década de 80 e eu fui jogar apenas no ano passado. Hoje Mother é uma das séries de RPG que eu mais gosto.

Isso não se resume apenas a esses títulos que são, em devidas proporções, bem conhecidos e comentados pelo público gamer. Eu também vivo me deparando com gratas surpresas de jogos incríveis que eu não poderia nem imaginar que existiam. Alguns são passaram completamente despercebidos pelo meu radar e outros porque nunca foram lançados fora do Japão. É o caso de Tengai Makyou: Zero. Esse é um JRPG de 1995 com um dos gráficos mais impressionantes que eu já vi, tanto no Super Nintendo quanto nos jogos em geral. Até hoje não houve qualquer lançamento oficial no ocidente e só poucos anos atrás saiu um patch de tradução. Foi graças a recomendação do SNES drunk que tive a oportunidade de conhecer esse jogo e ficar apaixonado na sua direção artística.

Mas é claro que nem tudo são flores. Eventualmente eu acabo me decepcionando com alguma coisa. Siren era um jogo que sempre ouvi comentários positivos e quando fui finalmente jogá-lo esse ano a gameplay me frustrou por demais. Nesse cenário também há um outro caso que costuma acontecer quando eu vou jogar alguma coisa com mais duas décadas de idade. Às vezes o jogo até me agrada bastante, porém eu vejo que ele não tem muito apelo com alguém que não esteja particularmente interessado na experiência de jogos antigos. É o que vi recentemente em Quest 64. Calhei em classificá-lo como uma obra que, por conta da passagem do tempo e evolução dessa mídia, acabou perdendo a sua “função social”.

UM BREVE RESUMO DE QUEST 64

Introdução de Quest 64
Assim começa a grande aventura de um pequeno mago

Antes de entrarmos no tema do texto acho que seria bom apresentar o jogo para quem nunca ouviu falar dele. O que deve ser o caso da maioria aqui.

Também conhecido como Holy Magic Century, Quest 64 foi produzido e lançado pela Imagineer em 1999. Seu lançamento até conseguiu gerar alguma expectativa pois ele foi um dos primeiros RPGs a serem lançados para o Nintendo 64. A plataforma que não chegou a receber tantos títulos desse gênero, ainda mais se comparado ao seu console anterior. Dá para contar nos dedos os jogos de RPG do Nintendo 64 que são conhecidos. E não vamos entrar na discussão de se The Legend of Zelda é ou não RPG aqui. A história se passa num cenário típico de fantasia onde controlamos o aprendiz de feiticeiro Brian. Ele parte numa aventura em busca de seu pai que está perseguindo o ladrão que o roubou o Livro de Etale.

Quest 64 é um RPG no mínimo curioso. Talvez possamos até dizer que para sua época ele foi um pouco fora do convencional dado algumas escolhas de jogabilidade. Em vez do padrão combate por turnos aos moldes de Final Fantasy ou Dragon Quest, ele vai por uma linha quase que de RPG de ação. Ênfase no quase. Isso não é bem algo inovador porque desde os anos 80 que existem RPGs de ação. São as particularidades de Quest 64 que o tornavam singular. Você podia de fato controlar Brian nas batalhas, apesar da mobilidade dele ser limitada, e executar ações como ataque, magia ou itens. Porém, o jogo ainda possui turnos. O controle nas batalhas alterna entre Brian e os monstros e cada um só pode executar uma ação por vez.

O sistema de batalha e evolução de atributos de Quest 64
Uma batalha em Quest 64

Outro elemento diferente da jogabilidade de Quest 64 é que o jogo não possui um sistema monetário. Em vez de comprar, você recebe os itens diretamente dos NPCs, os encontra em baús ou tem chance que sejam dropados de algum monstro.

Além disso, em vez do clássico sistema de level up, cada atributo de Brian aumenta de acordo com seu sucesso em executar uma ação. Algo que já havia sido tentado em Final Fantasy II, contudo Quest 64 executou bem melhor. Receber dano faz melhorar sua defesa, usar magia aumenta seu MP e por aí vai. Além disso, para aprender magias Brian tem que distribuir pontos entre os 4 elementos básicos: água, terra, fogo e ar. Você ganha pontos através de Espíritos encontrados pelo mapa e também ao utilizar muitas magias consecutivamente.

O sistema de magia de Quest 64
Supremacia elemento terra!

Quest 64 não é um jogo muito complexo, porém também não é tão simples assim. Para crianças dos anos 2000 ele podia ser um ótimo convite para o gênero de RPG, sobretudo com elementos voltados para ação. Porém mais de duas décadas já se passaram depois daquele período e hoje, como falei, Quest 64 se encontra sem sua “função social”.

A “FUNÇÃO SOCIAL” DE UM JOGO

Castlevania: Symphony of the Night e Super Metroid, os jogos responsáveis por estabelecer o que hoje chamamos de metroidvania
As melhores introduções possíveis ao gênero de metroidvania

É óbvio que quando eu uso esse termo eu falo brincando. Não acho que jogos tem algum papel tão fundamental assim para nós como sociedade. Eles tem sim sua importância cultural tanto como cinema, teatro, literatura, etc. O que eu acho na verdade é que jogos, pequenos ou grandes, exercem funções relacionadas a sua própria mídia. Nesse aspecto, eu atribuo a alguns jogos a “função social” de servir de porta de entrada para jogadores mais novos. Tanto em relação a idade mesmo ou então novos a um determinado estilo de jogo ou franquia.

Se alguém quisesse conhecer o gênero de metroidvania eu recomendaria ela começar ou por Castlevania: Symphony of the Night ou então Super Metroid. Não é só porque eles que criaram os pilares no qual o gênero se sustenta até hoje, mas porque tem características atemporais e que servem como uma boa introdução para metroidvanias em geral. Ou então, se alguém está a fim de conhecer o gênero de point and click eu posso recomendar sem hesitar o clássico Secret of Monkey Island. Tenho fortes evidências (anedóticas) que o jogo conseguiu introduzir pessoas ao gênero muitos anos depois do seu lançamento. No caso, eu!

Mas também ser um ponto de partida não é a única “função social” de jogos mais antigos. Eles também podem servir como o marco histórico de uma determinada franquia ou, tal como nos exemplos acima, de todo um gênero de jogo. Quando eu falei sobre os primeiros jogos de Dragon Quest, eu estava bem ciente que alguém crescido nas gerações mais recentes dificilmente seria capaz de pegar um desses jogos uma vez que hoje eles são bem antiquados tendo em vista o padrão da atualidade. Até mesmo o Dragon Quest III, que eu acho um RPG perfeitamente jogável, não conseguiria ter tanto apelo. Fora que existem exemplos antigos bem melhores para apresentarmos as gerações mais novas, como Chrono Trigger que também possui qualidades atemporais.

Porém esses jogos tem um certo privilégio. Como Dragon Quest é uma franquia que se mantém ativa até os dias de hoje e continua gerando novos fãs anos após anos, algum deles eventualmente terão a curiosidade de explorar o passado da série e conhecer suas origens. Sendo assim, os primeiros jogos do Nintendinho ainda podem desempenhar esse papel de mostrar as atuais gerações de fãs como a franquia amada deles começou.

E dá pra aplicar isso até a jogos que não pertencem a uma mesma série. Resident Evil está aí relevante no ramo dos survival horrors desde o final dos anos 90. E tudo isso começou inspirado por um pequeno RPG de 1989 chamado Sweet Home. Tanto um fã de survival horror quanto um fã de Resident Evil pode jogar pela mesma curiosidade de querer ver como um gênero e uma franquia nasceu a partir deles.

Sweet Home e Resident Evil, precursores do survival horror nos vídeo games
Pai e filho lado a lado

Enfim, eu gosto de acreditar que todo jogo por mais antigo que seja ainda tem algum papel a desempenhar dentro dessa mídia. Mas claro que na prática as questões que eu descrevi acima não irão se aplicar a grande parte dos jogadores. E para o caso de Quest 64, entra o questionamento:

PARA QUE QUEST 64 SERVE HOJE?

Algumas cenas de Quest 64
Narrativamente falando, Quest 64 é bem simples no que tange a trama
e desenvolvimento de personagens

Por mais diferente que Quest 64 fosse, ele não chegou a sobressair nenhum dos que são considerados como clássicos do Nintendo 64 como Super Mario 64, The Legend of Zelda: Ocarine of Time, Banjo-Kazooie, GoldenEye 007, Donkey Kong 64 e por aí vai. Todos esses são jogos que se você digitar “best games nintendo 64” em qualquer ferramenta de busca estarão no topo da lista. Sendo assim, Quest 64 não foi um jogo que carregou muito impacto para os títulos que vieram após seu lançamento, nem mesmo para o próprio console.

Ele nem conseguiu vingar numa franquia, mesmo tendo gerado lucro suficiente para a Imagineer considerar fazer uma sequência. O jogo apenas recebeu um demake para Game Boy Color e um spin-off que não chega a ter mais que um parágrafo na sua página wiki.

Mas é claro que não ter um grande impacto na indústria ou de não fazer parte de uma franquia de longa vida não são motivos para se deixar de jogar qualquer coisa. Afinal existem muitos jogos que são muito bons por si só e fazem valer a pena a experiência única deles. Dá para citar Brave Fencer Musashi, Legend of Legaia e Alundra – ironicamente todos os três tiveram sequências que não levaram a série pra frente de forma que a maioria das pessoas só conhece o primeiro jogo – que são três ótimos jogos da época do PlayStation 1. Contudo esse fator também não se aplica em Quest 64 porque não há nada de muito marcante no jogo.

Tanto a história dele quanto a sua estrutura do jogo não tem nada de muito interessante ou criativo. Você vai pra cidade X, descobre que tem vilão Y na dungeon Z, derrota ele e parte pra próxima cidade reiniciando o ciclo até chegar no último mapa para enfrentar o último chefão. Até existe um forte espírito de aventura em Quest 64, reforçado pela trilha sonora, mas as lutas excessivas e repetitivas acabam deixando a gameplay monótona. E o sistema de magias não é bem balanceado porque chega num momento que você percebe que é só por seus pontos em magias de terra e água que consegue ir até o fim do jogo sem muitas dificuldades.

O triste é que eu consigo ver que esse seria um RPG perfeito pra eu ter jogado na infância. Foi nessa época que descobria o gênero com títulos como Phantasy Star IV, Secret of Mana e já citado Legend of Legaia. Essa simplicidade de Quest 64 o torna uma ótima porta de entrada para RPGs. Qualquer criança – e talvez até um público mais velho que não tivesse contato com esse estilo de jogo – poderia começar a jogar sem nenhum contratempo. Elas seriam imediatamente capturadas pela atmosfera fantasiosa meio lúdica que Quest 64 tem e não precisariam se preocupar em estar perdendo a história, afinal não tem muito que se absorver de fato.

Uma das dungeos de Quest 64
A magia do mundo de Quest 64 é bem cativante para um público infantil

Mas as crianças e os jovens das últimas gerações tem um cardápio muito mais variado, e até melhor, de RPGs dos quais elas podem escolher para ingressar nesse universo. Um jogo de Nintendo 64 simplesmente não vai ter muito apelo a não ser que os pais ou algum parente mostrem esse lado do retro gaming para ela. Como eu disse, gosto de acreditar que todo jogo ainda pode desempenhar um papel, por menor que seja, no “histórico gamer” de qualquer pessoa. Infelizmente, na prática não é bem assim que a banda toca.

Quest 64 está fadado a se tornar um jogo que tem apelo para uma parcela bem ínfima da comunidade gamer: aqueles que tiveram algum contato com ele na infância ou gente como eu que gosta de buscar essas referências mais antigas para entender a história e evolução dos jogos, independente se o título teve ou não algum impacto na indústria. Ou seja, dez pessoas no máximo. Tá, vinte pra fazer caridade!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quest 64 é um jogo pura e simplesmente agradável. E infelizmente, quando falamos de video games, isso acaba virando um demérito porque o gamer é um fresco. Sem nenhuma característica marcante além de um sistema de batalha pouco convencional, ele acaba indo no mesmo destino para qual muitos outros jogos são reservados: o de próximo do esquecimento.

Ao perder a dita “função social” de um jogo, Quest 64 não consegue ter muito apelo para além daqueles que nutrem alguma memória nostálgica por ele. Até mesmo dentro do retro gaming você vai conseguir encontrar uma gama maior de obras daquele período nas quais pode investir seu tempo. E a cada nova geração surgem mais jogos que servem ao mesmo propósito, e até o executam melhor, de apresentar os jogadores mais jovens e inexperientes ao seu gênero.

Então aqui jaz Quest 64. Um jogo humilde, marco de uma época mais simples, e que infelizmente não encontra muito espaço num mundo de mecânicas mais polidas e gráficos da última geração que dominam o mercado a atiram jogos como esse cada vez mais fundo no limbo das gerações passadas fadadas ao esquecimento quando não existe uma forte nostalgia para segurá-las no imaginário popular.

2 thoughts on “Quest 64: um jogo que perdeu a sua “função social””
  1. Coincidentemente trombei com esse jogo numa Nintendo World aleatória semanas atrás e ele me passou uma sensação parecida com a que tu descreveu. Tem um cheiro de filme de aventura de sessão da tarde, daqueles que você vê num domingo meio tedioso acompanhado de pipoca.

    1. É, infelizmente o ponto mais forte de Quest 64 é o que o torna com menos apelo para o público em massa. É um jogo tranquilaço, perfeito pra quem só quer curtir uma jogabilidade simples sem ter que se preocupar com 500 mecânicas diferentes. Porém hoje o gamer fica esperando algo cada vez mais grandioso, aí vai olhar pra Quest 64 e apenas ver um “jogo datado”

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