Tempos atrás soltei lá no Medium – e agora está aqui no blog – um texto falando sobre a última adaptação de Resident Evil para os cinemas. Não é uma crítica estruturada a respeito da qualidade (inexistente) do filme. Meu foco foi falar no excesso de referências que essa adaptação faz aos jogos originais. Isso é algo que me incomoda, até mais do que deveria, pois eu enxergo tais referências como pura picaretagem. É uma forma de enganar os fãs da franquia, fazendo parecer que essa adaptação tem algum respeito pelo material original e distraí-los de todos os problemas do filme.
Acho que cobri praticamente todas as referências, pelo menos as mais relevantes no texto. Porém teve uma específica que eu decidi deixar de fora:
Caso tenha alguém que não assistiu o filme – primeiramente meus parabéns, continue assim - vou contextualizar. A cena em questão é quando os personagens da Jill e do Wesker estão explorando a Mansão Spencer. Nela o Wesker toca a Sonata ao Luar que revela uma passagem secreta que leva ao laboratório secreto da Umbrella. Essa é uma referência direta a um dos puzzles do primeiro jogo de Resident Evil. Você precisa encontrar a partitura da composição para conseguir tocar o piano e revelar um quarto secreto que contém um item necessário para se avançar no jogo.
Guardei essa referência porque senti que ela seria um exemplo melhor para o assunto que eu vou abordar aqui: a tentativa de representar os elementos da jogabilidade da obra original dentro do roteiro do filme mesmo que isso não seja em prol da narrativa. Dificilmente isso dá um resultado positivo e acaba sendo apenas uma referência boba, ou vazia como eu prefiro falar, aos jogos.
O PROBLEMA DAS REFERÊNCIAS
Então vamos lá, qual o problema dessa cena em particular? Para isso eu vou citar uma cena de um outro filme: Os Goonies (1985). Esse é um clássico da Sessão da Tarde, que também envolve os personagens tocando um instrumento para revelar uma passagem:
Notem que é uma cena duplamente tensa. Ao mesmo tempo que os vilões estão alcançando os protagonistas, eles tem tentativas limitadas para acertar a ordem correta das teclas senão o chão irá desabafar. Para piorar, a única pessoa que tem o mínimo conhecimento para tocar o órgão já não se lembra muito bem das aulas. Então, quando eles finalmente conseguem abrir a passagem e escapar em segurança é tremendamente satisfatório para nós, a audiência. Não apenas por nos importarmos com esses personagens mas também porque sentimos que eles mereceram essa vitória e conseguiram superar um desafio.
Agora contraste a sequência dOs Goonies com a cena de Bem-Vindo a Raccoon City onde o Wesker simplesmente chega na sala com o seu palmtop – perguntem aos seus pais a respeito dessa tecnologia ancestral – que lhe mostra exatamente o que ele precisa fazer para revelar a passagem secreta.
Não há nenhuma emoção nessa cena, nem o menor sentimento de conquista porque o personagem recebeu tudo de mão beijada. E o motivo disso que é o filme, ao contrário dOs Goonies , não está tentando criar tensão ou nos fazer importar com o triunfo dos personagens. Afinal não teve desafio algum. O objetivo deessa sequência é recriar um pedacinho da gameplay de Resident Evil e te lembrar de quando você resolveu o puzzle no jogo. Assim o filme espera que você projete nele os mesmo sentimentos que você tem sobre o original.
O problema reside no fato de não haver qualquer satisfação pessoal em ter descoberto a resolução do puzzle porque você não está controlando as ações do personagem. Fica apenas uma cena carente de qualquer sentimento e por isso que eu uso a expressão “referências vazias” para me referir a esses momentos.
E infelizmente essa é uma característica que perdura nesse tipo de adaptação desde os tempos de Cabral. Afinal como não esquecer das botas de propulsão no filme de Super Mario Bros, de 1993, para tentar reproduzir os pulos do Mario e do Luigi nos jogos? Ou a tentativa de adicionar o Abobo no filme de Double Dragon, 1994, já que ele é uma figura tão popular da franquia?
Tá certo que esses filmes tem dezenas de outros motivos para serem considerados não somente péssimas adaptações mas também filmes horríveis. Contudo ambos servem para ilustrar essa armadilha de achar que uma mecânica ou personagem que compõe a jogabilidade do título original precisa necessariamente aparecer na sua adaptação.
Eu não sou nenhum militante antirreferências, isso nem é novidade no campo das adaptações. Se feitas com o devido respeito intelectual ou carinho pela obra original eu acho que é um aceno bacana para se fazer aos fãs. Para o caso das adaptações de jogos, a minha crença é que são feitas apenas para atrair e distrair o fã mais emocionado.
UMA MUDANÇA NOS PARADIGMAS
Desde Super Mario Bros. nós tivemos quase três décadas de sucessivos fracassos, em termos de qualidade e algumas vezes bilheteria também, de adaptações de jogos. Passamos por mãos terríveis como as de Paul W. S. Anderson e Uwe Boll (esse consegue ser um fracasso artístico e financeiro). Eles ajudaram a aumentar o estigma das pessoas e não apenas fãs dos jogos originais com esse tipo de produção. Basta a reação inicial extremamente negativa da série da Netflix de Resident Evil. O público já está condicionado a detestar a mera existência de uma adaptação.
Entretanto recentemente tivemos alguns raios de esperança que esse histórico de fracassos intermináveis possa mudar. Os dois principais exemplos são Detetive Pikachu (2019) e Sonic — O Filme (2020). É discutível se esses duas novas tentativas configuram bons filmes. Pessoalmente eu acho Sonic muito abaixo da média, mas como os fãs dessa franquia já sofreram demais lhes darei essa colher de chá. Contudo acho que podemos concordar que, comparado com aquilo que vimos nos anos 90, a coisa já melhorou bastante.
E antes mesmo desses dois filmes terem sido lançados, no longínquo ano de 2014 no Japão, tivemos outra produção que apesar de não ser bem uma adaptação de jogos, eu acredito que dá lições valiosas sobre como fazer essa transição da mídia dos videogames para as telas de cinema ou da televisão. Então, depois enrolar muito, (eu realmente me empolguei nesse texto) vamos finalmente falar sobre o tema do texto que é Fatal Frame: The Movie.
APRESENTANDO FATAL FRAME: THE MOVIE
Fatal Frame, ou Zero, é uma franquia de jogos do gênero survival horror muito popular no Japão e que conseguiu conquistar fãs no Ocidente também. A série gira em torno de personagens investigando uma maldição misteriosa que assombra uma determinada região. Todos os jogos compartilham alguns elementos em comum. Você tem majoritariamente protagonistas femininas, muita inspiração no folclore japonês e a ambientação em zonas rurais isoladas do interior do Japão. E o aspecto mais popular dessa franquia é a forma como as personagens combatem os monstros dos jogos tirando fotos dos fantasmas com a Câmera Obscura.
Fatal Frame hoje conta com 5 jogos na sua linha principal, um spin-off e algumas adaptações para outras mídias. Isso inclui o supracitado Fatal Frame: The Movie. Mas como eu mencionei, não dá pra dizer que essa é uma adaptação de um jogo para o cinema. Ele na verdade é uma adaptação de um livro. Fatal Frame: The Movie, da diretora Mari Asato, é baseado no romance escrito por Eiji Ohtsuka que foi lançado próximo a estreia da película. Ambos foram produzidos pelo de conglomerado de mídia Kadokawa. E pela proximidade do lançamento dessas obras, acho que é seguro teorizar que foi um projeto pensado em conjunto.
PS: quem tiver interesse no romance, existe uma tradução feita por fãs para o inglês. São cerca de 284 páginas no formato impresso, o online faz parecer que é uma leitura mais rápida. Pessoalmente achei Fatal Frame: The Movie MUITO melhor, então só recomendo o romance para quem estiver muito curioso. Tem algumas informações que podem te ajudar a apreciar melhor a adaptação.
Acredito que talvez esse seja um dos fatores que ajudaram Fatal Frame: The Movie a ser um filme mais efetivo. A “ponte” criada pelo romance facilitou a tradução de uma mídia para outra já que o cinema tem um largo histórico de adaptações, boas adaptações, de obras literárias. Então, apesar de não ser uma adaptação direta, eu vejo que o filme tem lições que eu acredito serem fundamentais para conseguirmos ter boas adaptações de jogos para o cinema.
A mais simples é colocar o projeto em boas mãos e não com diretores incompetentes como o Paul W.S. Anderson e Johannes Roberts ou charlatões feito o Uwe Boll. Recentemente eu tive chance de assistir outro filme da diretora Mari Asato, Under Your Bed, e posso atestar que ela é alguém que sabia o que está fazendo.
Claro que “contratar um bom diretor” é uma lição muito óbvia ao se falar da produção de um filme. Então vou explorar outros caminhos em que eu considero importantes para se fazer uma boa adaptação com base no que observei em Fatal Frame: The Movie. Eu vou falar mais do filme que do romance já que pra mim é o superior. Porém a premissa de ambos é a mesma para a maior parte das duas obras. É mais pro final que as duas versões começam a destoar uma da outra significativamente. Mas, enfim, bora para as lições de Fatal Frame: The Movie.
LIÇÃO #1: SAIBA O QUE VOCÊ É
Um problema que eu percebo em muita dessas adaptações é que elas se enxergam primeiramente como um “filme de jogo”. Assim a preocupação maior é usar o nome da marca em vez de entender o que essa obra representa. Por isso temos bizarrices que fogem completamente do escopo das suas obras originais como no caso de Super Mario Bros. Era uma aventura lúdica que vira uma ficção científica distópica bizarra no cinema. Ou então Double Dragon, literalmente o jogo mais fácil de se adaptar do mundo todo. Ele deveria ser um filme de artes marciais num contexto urbano bem direto mas a adaptação vai lá e insere uns elementos místicos e, novamente, de distopia que não condiz em nada com a essência do seu original. Sem contar que toda a ação desse filme é horrível, mas eu divago.
Detalhe que eu não estou falando, pelo menos ainda não, de coisas como personagens e trama. Falo de coisas como atmosfera, tom, temas e especialmente o gênero. Por a gente associar tanto jogos exclusivamente com a jogabilidade e os gêneros que surgem a partir dela (plataforma, survival horror, FPS, estratégia em tempo real, etc) que se esquece que eles também são expressões de outros gêneros da ficção. Por exemplo, antes de ser um survival horror, Silent Hill é uma obra de terror psicológic. Da mesma forma, Fatal Frame é uma expressão do terror rural.
Pessoalmente eu prefiro usar o termo em inglês, folk horror, porque acho que ele transmite melhor o conceito. Pois bem, o folk horror é um subgênero do terror que utiliza muito elementos do folclore local para estabelecer o horror das suas histórias. Geralmente utiliza-se ambientações rurais para trazer o sentimento de isolação e também temas relacionados a natureza e “religiões populares”. Tanto o cinema de terror do Sudeste Asiático quanto do Japão possuem fortes raízes no folclore da sua cultura. No Ocidente também já tivemos alguns exemplos desse gênero, inclusive recentemente com filmes como A Bruxa (2016) e Midsommar (2019).
Se eu puder meter uma sugestão aqui, e posso porque esse perfil é meu, procurem O Homem de Palha, o original de 1973 e não aquele remake odioso de 2006, que é uma perfeita introdução ao gênero para quem se interessar.
Pelas características que eu citei anteriormente sobre Fatal Frame e suas inspirações no folclore japonês e a ambientação em localidades do interior do país. A influência desse folk horror também fica muito visível por uma figura que sempre marca presença nos jogos de Fatal Frame é a do folclorista. Ele é um personagem que estuda os mistérios relacionados as tramas de cada título da série e compõe um elemento fundamental da jogabilidade ao guiar o jogador pela história através de notas deixadas pelo mapa.
O romance de Fatal Frame chega a inserir versões modernas dessa figura do folclorista — principalmente na reta final de maneira bem porca, diga-se de passagem — dando mais espaço para esse lado do folclore na sua história. Já Fatal Frame: The Movie é mais sútil nesse aspecto, reservando o papel de folclorista exclusivamente para a personagem da Senhora Mary. Ela é uma nativa da região que conta para as protagonistas, e nós por extensão, sobre a história daquele local e as origens da lenda que dá um pontapé para a trama.
Além disso a cinematografia do filme faz um ótimo trabalho em construir a atmosfera de uma cidade pacata, bem longe da realidade de uma metrópole como a de Tóquio que tanto associamos ao Japão. Isso traz a tona o sentimento de isolação e distanciamento da civilização (urbana) que é tão intrínseco ao folk horror.
Isso nos mostra que o filme tem uma noção muito boa do que ele precisa ser para executar a sua história com as mesmas sensações que o jogo transmite. Mas que obviamente se ajustam a sua nova mídia e com a mensagem que essa obra quer passar. Ao que nos leva para a segunda lição que podemos tirar do filme.
LIÇÃO #2: DEFINA O SEU TEMA
Mas para, para, para tudo (referência ao João Kléber adicionada com sucesso) porque antes de entrar nesse assunto eu me toquei que até agora não falei da premissa de Fatal Frame: The Movie. Ela é essencial para o que vamos discutir agora.
A história de Fatal Frame: The Movie se passa numa escola católica só para garotas aonde uma turma está prestes a se formar. E nessa escola circula um rumor sobre um suposto encanto em que uma menina pode lançar sobre a outra. Se uma beijar a foto da outra próximo da meia-noite, isso supostamente faria que essa pessoa se apaixonasse pela primeira. Depois que uma das estudantes, Aya, se tranca no seu quarto e uma menina, Kasumi, desaparece dias depois te tentar fazer o encanto, novos boatos passam a cercar o colégio sobre uma maldição que vai causando novos desaparecimentos. É então que uma das amigas de Kasumi, Minchi, decide investigar. Com a ajuda de Aya, as duas vão atrás das origens desse rumor que ambas acreditam ser a fonte dessa tal maldição.
Voltando ao tópico, uma vantagem que eu identifico nos jogos em relação a filmes em geral é que as histórias deles não precisam necessariamente sobre qualquer coisa. Hoje em dia não tanto, mas bem lá trás na história dos jogos a premissa servia mais para dar contexto para a gameplay. Pega Super Mario World como exemplo. Ele é considerado, e com razão, um dos melhores jogos já feitos e a história dele toda se resume a “Bowser capturou a Princesa Peach… de novo!”. Não existem nada a mais na sua narrativa pois é um jogo que sustenta através das suas qualidades técnicas (jogabilidade, level design, controles, etc) e artísticas (visuais e trilha sonora).
Porém quando o assunto é filme a gente não dá, pelo menos não na maioria dos casos, o benefício da obra não ter um tema. Ou seja, uma ideia/mensagem central que o autor deseja que o público entenda. Claro que a gente consegue relevar isso com maior e menor grau em alguns tipos específicos de filme. Entretanto nós absorvemos e ficamos muito mais emocionalmente investidos numa obra quando ela nos oferece algo a mais.
Até mesmo jogos já entendem isso há bastante tempo, abordando diferentes temas na sua gameplay. Podemos observar essa mudança na própria franquia de Fatal Frame.
No primeiro jogo temos um mistério que envolve o desaparecimento do irmão da protagonista e o passado de uma mansão mal-assombrada. Não existe ali o compromisso de passar quaisquer mensagem. Começa a surgir alguns temas ali no segundo jogo da série, Crimson Butterfly, pela relação das duas irmãs. Mas é no terceiro, The Tormented, onde vemos a série de fato estabelecer sua história em volta de uma tema central. Sim você ainda tem todo o mistério em relação a Mansão do Sono e a Sacerdotisa Tatuada. Porém indo mais a fundo o jogo aborda um tema bem maduro sobre luto através da sua protagonista, Rei Kurosawa, que é atormentada pela síndrome da culpa do sobrevivente desde o falecimento do seu noivo num acidente de carro. E o quarto, Mask of the Lunar Eclipse, mantém a tradição com temas sobre perda de memória e identidade.
Fatal Frame: The Movie também vai um pouco além de um simples história de um colégio só para garotas mal-assombrado. Ele escolhe trabalhar um tema que, pela premissa que eu descrevi uns parágrafos atrás, acho que ficou bem óbvio qual é. E caso não tenha basta pensar que o título do romance que inspirou o filme se chama: Uma Maldição Que Afeta Apenas Garotas. Sutil!
Então, eu diria que até melhor que o romance, o filme de Fatal Frame aborda alguns temas LGBT+. Ele rodea os estigmas e perseguição velada, no sentido que embora essas pessoas não sejam atacadas elas não conseguem expressar sua sexualidade publicamente, que casais homoafetivos, e mais especificamente mulheres lésbicas, passam na sociedade japonesa. Acho interessante usar Fatal Frame para abrir esse tipo de discussão. A adaptação acaba utilizando uma característica comum dos jogos, o fato das protagonistas serem majoritariamente mulheres, e o alinha com o tema central da história.
Até vou abrir um parênteses aqui para comentar que um dos principais fatores para o filme ser superior ao romance é temos uma visão feminina do tópico. A Mari Asato tem uma compreensão bem mais íntima do que se passa com essas personagens. O romance, por outro lado, parte de uma visão masculina pelo autor Eiji Ohtsuka que tem uma perspectiva mais de outsider do tema. Isso aqui não é um argumento sobre lugar de fala, só um reconhecimento que uma visão feminina é vantajosa pra essa história específica.
Agora se o filme trabalha bem com esses temas LGBT+ são outros quinhentos. Já me deparei com pessoas dizendo que tem alguns elementos problemáticos, mesmo que esse seja um termo tenha virado uma buzzword, e dá pra reconhecer os argumentos deles nas escolhas que o filme faz. No meu ponto de vista, é mais para ilustrar como a repressão da sexualidade afeta essa comunidade no Japão. Mas tudo está aberto a debate e não compete a mim comentar sobre.
Eu acho importante uma adaptação de um jogo inserir alguns temas na sua história. Não apenas para aprofundá-la, mas para oferecer um algo a mais relevante que justifique essa nova versão. Porque veja bem, adaptar um jogo para dar uma pegada mais cinematográfica poderia ser uma justificativa válida ali pelos anos 80 até meados dos anos 90. Só que hoje já estamos nos 25 anos de Final Fantasy VII e praticamente todo AAA tem uma linguagem mais cinematográfica. É desnecessário uma adaptação só para ter “cara de filme”. Então para mim o diferencial que você pode adicionar nas adaptações de jogos para justificar sua existência é utilizá-las como veículos para discutir novos temas e perspectivas diferentes. Principalmente quando você pode alinhá-los as características do original.
LIÇÃO #3: BUSQUE CONHECIMENTO NOVAS REFERÊNCIAS
Nesse e no último tópico voltaremos para o que foi comentado no início. Se tratando do material original, existem duas referências óbvias ao jogos no filme e no romance e, por extensão, no filme. A primeira são as duas personagens que recebem seus nomes diretamente das protagonistas de Fatal Frame II, Aya e Maya. E a segunda é a aparição da Câmera Obscura, embora nenhuma das duas adaptações a cite nominalmente. No romance ela é até descrita como sendo uma câmera especial, mas no filme ela apenas existe.
E é isso. Pode até ter alguma outra referência posicionada sutilmente no plano de fundo. Ou algum nome que eu não captei porque nem fodendo que eu vou ficar gravando outro nome japonês além de Akira Kurosawa. Mas até onde eu sei essa são as únicas referências que você consegue encaixar naquele meme do Leonardo DiCaprio de Era Uma Vez Em… Hollywood.
Por outro lado, você consegue identificar referências externas ao universo dos jogos dentro dessa adaptação, literárias, folclóricas e cinematográficas. A mais fácil de identificar é figura de Ofélia, a personagem da peça de Hamlet que tem um destino trágico. Ela aparece constantemente ao longo de todo o filme. No romance o uso de Ofélia é bem escancarado. Praticamente todo capítulo tem uma menção da personagem e ela está ligada a maldição que gera o conflito da história. No filme a presença dela também é muito marcante, desde a clássica pintura do seu afogamento que aparece ao fundo das cenas, tal como na Canção da Ofélia. No romance, a canção tem uma importância maior para trama e no filme é usada mais simbolicamente. Além disso, o imagem de Ofélia é evocada novamente quando algumas personagens sofrem o seu mesmo destino.
Em ambas as adaptações Ofélia vira um motif que reflete os temas de amor trágico que envolvem essa história e assim toda vez que ela é citada Ofélia fortalece a narrativa de Fatal Frame.
A segunda referência que o filme faz mais a frente é ao fazer uma clara representação do akai ito. Esse é o fio vermelho do destino, originário de uma lenda chinesa que se tornou uma crença comum em todo o Leste Asiático. Aqui ele é usado para representar o forte laço que as duas personagens criaram.
A última referência que vou mencionar talvez seja um pouco forçação de barra minha, mas pra mim faz sentido. Me refiro a semelhança dos fantasmas que aparecem em Fatal Frame: The Movie aos fantasmas da franquia Ju-on. A diretora Mari Asato foi responsável por um dos filmes de comemoração de dez anos desse projeto, Black Ghost, que junto com Ring (1998) foi um dos responsáveis pelo boom dos filmes de terror japoneses nos anos 2000.
O que se deve tirar de importante nessa lição é evitar de ficar dependente apenas de referências ao material original. Porém me refiro as referências que nada acrescentam a adaptação a não ser fingir que existe qualquer forma de respeito ou fidelidade ao original. E aproveito isso para fazer um gancho para última lição.
Eu gosto de Fatal Frame: The Movie, porém hesito em recomendá-lo para pessoas que são fãs da franquia. Sinto que há uma grande probabilidade do filme gerar reações de como ele “não tem nada a ver com os jogos”. E essa afirmação está um pouco certa, porém muito errada.
De fato o romance no qual o filme foi baseado não adapta a história de nenhum dos quatro jogos que tinham sido lançados até aquela época. Então quem for pra esse filme esperando ver a Miku, o Vilarejo de Todos os Deuses, o Ritual da Empalação ou a Síndrome da Luna Sedata com toda certeza irá se decepcionar. Só que uma história original cabe totalmente dentro do formato da série afinal todos os jogos são independentes, até mesmo o terceiro que conta com a participação das protagonistas dos títulos anteriores.
E mais do que isso, o filme tem todos os marcos narrativos dos jogos anteriores, porém adaptados para uma linguagem diferente de mídia. Para mostrar como a adaptação tem suas similaridades, vou focar num exemplo. Existe um padrão nas histórias de todos os jogos de Fatal Frame que é a trama girar em torno de uma maldição nascida de um ritual fracassado. A única diferença é a natureza dos rituais. Nos jogos eles são feitos para impedir que uma força maligna escape para o nosso plano de existência. Já nas adaptações o ritual está mais atrelado aos temas de amor trágico e repressão dos casais homoafetivos.
Apesar disso o que acho que vai mais incomodar alguns fãs da franquia ao assistirem o filme é o fato que em momento algum uma das personagens usa uma câmera para exorcizar algum espírito. Aí entra a nossa quarta, última e possivelmente mais longa lição.
LIÇÃO #4: SEPARE O QUE É IMPORTANTE PARA A JOGABILIDADE DO QUE É IMPORTANTE PARA O ROTEIRO
Um argumento que eu vejo bastante contra essas adaptações é sobre como é impossível adaptar um jogo porque eles tem dezenas, às vezes centenas, de horas de duração. Portanto não tem como comprimir isso tudo num filme de duas horas e pouco. Em relação ao argumento, então… não! Se você é uma das pessoas que ainda repete esse argumento peço encarecidamente que pare porque ele não tem o menor fundamento. Ok, darei o braço a torcer e admito que isso pode até se aplicar a um RPG recheado de texto. Porém não se aplica a um jogo que tem lá suas 15 até 20hs de duração. Arrisco a dizer que também não se aplica há muitos jogos que tem o dobro ou o triplo desse valor.
Isso porque ter dezenas de horas de gameplay não significa que ele tem essa mesma quantidade em relação a história. Grande parte desse tempo é gasta explorando mapas, enfrentando inimigos, conversando com NPCs aleatórios entre outras ações disponíveis. Os momentos que avançam de fato a história são uma parcela bem menor da duração total do jogo. E não apenas isso, nem todo texto de um jogo, sequência de ação ou mapa é tão necessário para a grande narrativa que ele conta.
Outra vantagem que os videogames tem em relação as outras mídias é que você pode deixar sua audiência perdendo 2 horas numa sidequest qualquer que nada acrescenta pra trama principal sem que isso prejudique o andar da carruagem. Isso não tem a menor chance de acontecer num filme! Eu vejo filmes como a otimização da narrativa/storytelling. Ou seja, tudo tem que ser pensado em benefício do roteiro. Foca-se no que é de mais importante para a história que se quer contar sem perder a atenção da audiência ou deixar o sentimento de que algo não ficou bem explicado. Portanto, quando alguém vai adaptar qualquer obra para as telas de cinema é necessário enxugar muita coisa.
Dragon Quest: Your Story, uma animação que adapta a história de Dragon Quest V, é um bom exemplo . Nota: o exemplo é bom, o filme por outro lado é ruim de doer. Ele serve para ilustrar tanto o caso de remover elementos que não ajudam a narrativa quanto de deixar partes da gameplay que além de não beneficiar o roteiro ainda atrapalham o filme.
No Dragon Quest V original o jogador precisa encontrar 4 equipamentos lendários para enfrentar o grande vilão: o Escudo, o Elmo, a Armadura e a Espada de Zenithia. Isso é algo que sempre marcou presença em todos os jogos da franquia daquele período. Já no filme o personagem só pega a espada. Jogos permitem que você gaste um tempo numa fetch quest gigante, até certo ponto, viajando pelo mundo atrás de equipamentos. Num filme isso é muito menos viável e assim a animação toma uma decisão correta em reduzir para um único item.
É por isso que usamos o termo adaptação pois é necessário ajustar o original para a nova mídia e nesse processo muita coisa tem que ser removida para que a obra funcione numa linguagem diferente. O cinema já faz isso há décadas adaptando livros e peças de teatro para suas telas então jogos não deveriam ser diferente. Porém, não é qualquer cineasta e roteirista que dispõe da habilidade para fazer esse tipo de transposição. Muitos desses projetos são atirados no colo de um diretor que não tem a competência para assumir a tarefa ou cacife suficiente para não ceder a pressão dos produtores que nem sempre tem as melhores das ideias na cabeça.
E aí vem o momento em que o filme tropeça ao deixar a personagem da Nera. No original do SNES, num determinado ponto da história o jogador tem que escolher com quais das personagens ele quer casar, Bianca ou Nera, para avançar a trama.
O filme inclui ambas as personagens e o protagonista tem um pequeno conflito para decidir com quem ele vai ficar. Isso nos faz perder um tempo valioso com esse dilema que no final não acrescenta nada para a trama. O tempo gasto representando essa parte da gameplay no filme não faz o menor sentido, pois o roteiro tem que se comprometer com uma única história. Assim o filme sacrifica os minutos em que se poderia investir no desenvolvimento da relação do protagonista com seu interesse amoroso só pra olhar pra audiência e perguntar “vocês lembram dessa parte no jogo?”.
É claro que dá pra argumentar que ter deixado essa escolha faz sentido por conta do reviravolta no final do filme. Mas como essa reviravolta é uma das coisas mais estúpidas e forçadas que eu já vi adicionarem num roteiro, dava pra facilmente ignorar essa parte e fazer o mínimo de esforço para desenvolver ao menos um personagem nessa bagunça de filme que capitaliza de maneira patética em cima da nostalgia dos fãs desse jogo. E por isso não tenho o menor respeito por qualquer um que tente defender uma tentativa tão cínica de ganhar dinheiro numa IP popular fingindo que tem qualquer respeito ou carinho pelo seu legado. Simpatizo e concordo 100% com o vilão do filme!
…
Tá, peço perdão por ter perdido a compostura no último parágrafo, mas é que ultimamente eu peguei um ódio por essas tentativas de usar nostalgia pra tirar dinheiro de man child. Mas agora que já extravasei meu ódio pelo filme, de volta pra Fatal Frame.
Como dito, a Câmera Obscura não tem uma participação muito grande assim na história das adaptações. Mas isso não significa que ela deixa de ser importante. O que acontece é que você não precisa dela da mesma forma que você precisa no jogo, onde a câmera serve como uma arma para que você se defenda dos fantasmas e também como uma ferramenta para resolver os puzzles e obter pontos extras tirando fotos de algumas aparições. As adaptações removem esse aspecto “bélico” da Câmera Obscura afinal ele é importante para jogabilidade, nem o romance e nem o filme precisam que as personagens enfrentem hordas de fantasmas pois não existe interação aqui.
Mas para não remover completamente a câmera da história, ela é transformada num plot device, do tipo positivo, pela sua capacidade de captar fantasmas pelas suas lentes e o conflito que impulsiona a trama nasce justamente de uma foto tirada pela câmera.
O filme, tal como o romance, faz a escolha acertada em deixar de fora todos os aspectos que são fundamentais para a jogabilidade de Fatal Frame e assim foca seus esforços no que pode ser mais útil para a sua narrativa.
Perde-se um pouco da fidelidade ao material original? Com certeza. Mas honestamente eu acho que essa fidelidade que é muito advogada pelos fãs é um tanto supervalorizada por se focar demais em questões superficiais. Por isso que mais se discute é a cor da pele de determinado personagem, o corte de cabelo e a sexualidade, que sim pode ter um peso na construção desse personagens, mas que há muito exagero sobre o quão isso é necessário. Warcraft (2016) tenta ser fiel ao seu material original, mudando alguns pontos do lore como toda adaptação precisa fazer, mas isso nada impediu de ser um filme com uma construção de universo apressada e meia-boca, com um desenvolvimento pífio de personagens e que no final ficou parecendo um Senhor dos Anéis da série B.
Os fãs querem ver as história originais transcritas para as telas e isso é uma exigência válida até certo ponto. Porém há algumas obras em que isso é impraticável e em outras é desnecessário. RPGs são exemplos para os dois casos. Não dá pra você colocar tudo do jogo num filme e nem mesmo uma série, não só por uma questão de quantidade como também porque muito dos roteiros dos jogos podem criar determinadas situações e ir por determinados caminhos exclusivamente por serem jogos. E ao mesmo tempo você não precisa colocar tudo que tem no jogo porque ele não é tão importante assim para obra como um todo, mas sim para o fã que é obcecado por cada detalhe dada forte (e às vezes patológica) conexão emocional que ele tem com o material original.
Outra coisa que precisa levar em consideração é que, para a jogabilidade funcionar, jogos acabaram desenvolvendo a sua lógica própria que permite que nós consigamos “aceitar” muitas das coisas que acontecem neles, Via de regra, temos um grau de suspensão de descrença muito maior com jogos do que filmes e shows de TV e isso permite que eles criem cenários que só funcionam dentro dessa mídia. Acho que não tem um exemplo melhor para esse caso como o Phantom Train de Final Fantasy VI. E nem estou me referindo a clássica piada do suplex no trem, me refiro ao fato que durante toda essa luta contra a maria-fumaça espiritual os personagens estão correndo na frente do trem, uma coisa que se acontecesse num filme a gente lançaria uma típica frase de mãe: “ah lá, começou a mentirada!”.
Deixar de lado todo o aspecto de exorcizar fantasmas com uma câmera fotográfica é necessário para não perder a audiência. Afinal esse é um elemento que beneficia exclusivamente a jogabilidade e não adiciona muita coisa em termos de narrativa que é o que o filme requer. E assim eu termino a última lição que dá para tirar da adaptação de 2014 de Fatal Frame.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Só mais um parágrafo porque quem chegou nessa parte do texto deve estar cansado. Mesmo estando longe de ser um filme perfeito, Fatal Frame: The Movie é muito bom em criar atmosfera e adaptar os elementos mais importantes do material original para as telas de cinema. E mesmo que ele não seja uma adaptação direta de jogo para cinema, ele abre mais um precedente que dá sim para fazer um bom “filme de jogo” se você colocar o projeto em mãos competentes e não se preocupar em tentar representar a jogabilidade do original na adaptação, sabendo escolher quais elementos fortalecem a sua narrativa e não ficar dependendo de referências vazias para agradar meia dúzia de fã emocionado.
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