Acredito que não preciso explicar quem é Akira Toriyama, certo? Só um humilde mangaká que fez um mangázinho aí que talvez as pessoas já viram. Um tal de Dragon Ball. Conhecem? Pesquisei aqui é parece até que as adaptações tem acompanhado gerações de otakus por mais de três décadas. Doideira, né? Ok, vamos falar sério agora. Todo mundo em algum momento da vida já ouviu falar de Dragon Ball, dentro ou fora da “otakusfera”. Mas hoje estou aqui para comentar sobre uma obra do Toriyama que de fato poucas pessoas conhecem. É um mangá curto de 14 capítulos, compilado num único volume, ali do início dos exatos anos 2000: Sand Land.
Contudo até tem uma chance maior desse nome ser familiar, porque após duas décadas o mangá finalmente recebeu uma adaptação para o cinema. E não obstante, há também um jogo de Sand Land previsto para sair a qualquer momento. Foi por esse segundo anúncio que eu vim a conhecer o nome e as duas coisas que me chamaram atenção foi a ambientação e o estilo. Afinal você bate o olho e pensa automaticamente que “é coisa do Toriyama”. Fui atrás então de mais informação, descobri o mangá original e, vendo que era bem curtinho, decidi lê-lo duma vez em preparação para o jogo. Foi facilmente uma das minhas leituras favoritas desse ano!
Assim como muitos, o meu contato com o Toriyama é exclusivamente através de Dragon Ball. Eu até estou ciente da atuação dele no design de personagens em jogos conhecidos, o que inclui um dos meus RPGs favoritos. Porém é sempre com Dragon Ball, tanto o clássico quanto o Z, que eu o associo. Então o que me surpreendeu foi ver como Sand Land é uma completamente diferente da sua obra principal numa questão de escopo. É uma aventura muito mais simples, se passando numa única região, com elenco e ação bem moderados.
Há alguns tópicos interessantes que dá para discutir sobre essa curta história, porém decidi não mergulhar neles para manter este aqui também um curto texto. Mas quem tiver curiosidade, o Ilha Kaiju – aquele que mencionei no meu texto de Kamen Rider Black – tem um vídeo recente discutindo as noções de patriotismo e nacionalismo através do mangá.
A história de Sand Land, como o nome já deixa bem evidente, se passa numa terra desértica. Segundo conta, a região ficou assim depois que o seu principal rio secou misteriosamente. A única fonte restante que se sabe existir é controlada pelo Rei e seu exército, que vende a água a preços exorbitantes para uma população que vive numa constante condição de miséria. Nesse cenário que conhecemos Beelzebub, o jovem príncipe dos demônios que saqueia veículos do governo com sua gangue para obter água.
Um dia, um velho xerife de uma cidade das redondezas, Rao, vai até a terra dos demônios com uma proposta. Ele tem razões para acreditar que existe uma segunda fonte de água desconhecida no deserto e decidiu partir em busca dela. Ele pede ajuda dos demônios e então Beelzebub e seu amigo Thief são escolhidos para acompanhar o xerife. Mas obviamente que não demora muito para eles se tornarem alvos do governo que visa impedir que eles alcancem o seu objetivo.
Depois de terminar de ler Sand Land eu estava muito a fim de falar dele, porém não sabia exatamente do que. É um mangá tão curtinho, acho que não levei mais do que 2 horas pra terminar, que não tinha certeza se valia pena dedicar todo um texto sobre ele. E ficou assim até eu perceber que é o fato dessa ser um mangá pequeno, porém eficiente, que justifica se falar dele.
Eu passei a descrever Sand Land como dotado de uma precisão matemática na sua produção. O Toriyama não desperdiça um capítulo sequer e não há elemento ali que não seja necessário para história que ele vai contar. Estamos tão acostumados com essa ideia de mangás gigantescos, que ficam em publicação por anos e talvez décadas, que chega ser um alívio ver uma história, uma boa história, ser perfeitamente desenvolvida ao longo de um único volume. Nesse meu último texto falando sobre The Hug, eu cito como sua eficácia se encontra no fato dele não se alongar além do limite que o conceito exige. O mesmo se aplica a Sand Land, cujo world-building se limita a apenas aquilo que é de mais essencial para história funcionar.
Por exemplo, a única vez que vemos o Belzeebub interagindo com um civil é no início do primeiro capítulo. Ele vê uma criança e resolve deixar uma caixa de água para ela e sua família. Com esse único detalhe o Toriyama já estabelece que os demônios desse universo não são malignos. Fora o lar dos demônios, nós chegamos a ver, bem por longe, uma única cidade. Dá nem tempo dos personagens a explorarem direito. Isso porque ela está ali apenas para levá-los até o tanque que será um elemento essencial dessa aventura. As lutas também são muitíssimo pontuais que servem para deixar evidente as habilidades marciais – e também táticas no caso do Rao – que, quando não acabam no mesmo capítulo, terminam no seguinte. É tudo muito bem calculado para não tomar muito tempo do leitor e seguir para o próximo ponto da história.
Isso é importante ressaltar, porque em Sand Land o Toriyama não dá muito espaço para criar um mistério na trama. Na primeira metade do mangá todos os seus principais elementos são apresentados. Até mesmo importantes reviravoltas acontecem cedo.
No capítulo 5, por exemplo, a gente já aprende que: Rao na verdade é um ex-comandante do exército, Shiba, que fingiu sua morte 30 anos atrás após a destruição de uma cidade que levou ao genocídio da tribo dos Picchis.
Nesse mesmo capítulo vemos Rao descobrir por Thief que os Picchis não estavam criando uma arma de destruição em massa e sim uma máquina capaz de criar água, porém o governo criou uma narrativa para justificar o ataque e assim não perder seu monopólio hídrico.
Além disso, nós temos a indicação que o Belzeebub tem algum poder interno que virá a ser necessário lá para o final do mangá na última luta antes do grande desfecho.
Essa precisão toda de Sand Land também se reflete no seu elenco. Cada personagem está ali para representar uma função específica que faz mover a trama. Aliás, aqui eu queria adicionar um comentário sobre o que falam dos design dos personagens do Toriyama serem sempre iguais. Entendo até certo ponto a reclamação, porém ultimamente eu vejo que isso se tornou um dos aspectos mais fortes da arte dele, pois essa familiaridade nos faz criar uma simpatia quase que instantânea pelos seus personagens. Mas voltando a Sand Land: se tratando dos personagens secundários, todos tem uma contribuição também pontual na trama.
Para alguns pode até parecer que falta um desenvolvimento maior seja desses personagens ou seja do universo do mangá como um todo. E eu discordaria 100% de uma afirmação desse tipo. Toriyama desenvolve tudo que ele precisa para sua história até a medida correta. Não existe desperdício, cada segmento tem sua significância exata para o mangá. Então é muito fácil considerar que Sand Land é uma obra sem profundidade só pelo seu tamanho e acho que isso é porque as pessoas tendem a enxergar volume como um sinônimo de qualidade. Para mim isso é o contrário.
A gente nota o verdadeiro talento de storytelling quando o autor consegue contar tão perfeitamente uma história num espaço tão limitado. Se o Toriyama quisesse ele poderia encher Sand Land de criaturas, personagens e lutas mirabolantes que todos sabemos que a sua mente criativa é capaz de fazer. Porém ele não o faz porque nada disso iria fortalecer de fato a pequena aventura que ele queria contar ali. Seria um desperdício de tinta transformar Sand Land no seu battle shounen padrão com centenas de capítulos, quando em apenas 14 o Toriyama é capaz de executar sua ideia com tamanha excelência de um mangaká experiente como ele.
É com muito pesar que na madrugada de 08 de março de 2024 o mestre Akira Toriyama veio a falecer. Com uma obra que atravessou gerações e influenciou diversos artistas – seja nos mangás, na animação e até mesmo nos vídeo games – o legado dele será para sempre lembrado e reverenciado. Obrigado por tudo, Toriyama!
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