Sleeping Dogs: subestimado ou apenas mundo aberto?

Protagonista do jogo Sleeping Dogs - selecionado para a Jogospectiva 2024 - está de pé com labaredas de fogo ao fundo. Ele tem o rosto machucado e veste um terno branco

Um dos últimos títulos a entrar para minha Jogospectiva 2024 foi Sleeping Dogs. O nome não me era estranho porque de vez em quando eu ouvia sussurrarem-no pela internet. Nessas ocasiões, eu reparei que o adjetivo ‘subestimado’ costumava acompanhar as menções ao jogo. Isso despertou a minha curiosidade. Um amigo já tinha me dado um voto de confiança em relação a Sleeping Dogs e, inclusive, também me deu o jogo. Depois de zerá-lo, estou até inclinado a concordar que o jogo é um pouco subestimado. Inclinado, porém não convencido.

Durante a minha gameplay me surgiu a seguinte questão: e se talvez o problema de Sleeping Dogs é que ele é apenas um jogo de mundo aberto?

Antes de continuar, acho que um pouco de transparência será útil para o texto. Ao longo dos últimos anos eu cansei quase que totalmente dessa estrutura de mundo aberto. Nada contra, tenho até uns amigos (não muito próximos) que gostam. Desde Batman: Arkham Knight eu passei a dar mais valor a jogos focados em estruturas lineares, permitindo uma gameplay muito melhor direcionada e que não se perde – pelo menos não tanto assim – no meio de centenas de colecionáveis e desafios ou missões genéricas e repetitivas. É um dos motivos que me levou a abandonar The Elder Scrolls: Skyrim pela metade e também parte do que me fez se distanciar de Assassin’s Creed.

Mas, para fins de criar conteúdo para o blog, eu decidi abrir uma exceção para Sleeping Dogs e assim colocar todos aqueles comentários que ouvi a respeito do jogo à prova.

A história se passa numa versão fictícia de Hong Kong onde controlamos policial Wei Shen. A família de Shen foi para os Estados Unidos quando era mais jovem, mas anos depois ele pede transferência para sua terra natal para integrar uma operação secreta contra uma das tríades locais, os Sun On Yee. Para isso, Shen se infiltra na organização se passando por um pequeno traficante que é preso após um negócio dar errado. Tudo fazia parte para colocá-lo em contato com um dos seus velhos amigos, Jackie, que trabalha para os Sun On Yee. Ele apresenta Shen para Winston, um dos líderes de uma das facções menores da tríade, e aos o policial consegue subir na hierarquia. Contudo, viver entre esses dois mundos passa a criar uma imensa pressão psicológica em Shen que já tinha questões pessoais por trás das suas motivações.

Pela ambientação é fácil associar Sleeping Dogs a uma certa franquia um tiquinho famosa. Contudo, o jogo tem mais a ver com outra série tentaram engatar nos anos 2000, True Crime, nome este que talvez hoje seja nostálgico para alguns poucos e desconhecido para alguns muitos. Desenvolvido pela Luxoflux e publicado pela Activision, apenas dois títulos foram lançados sob o selo True Crime: Streets of L.A. (2003) e New York City (2005). O primeiro vendeu bem e teve uma recepção positiva, garantindo uma sequência que não alcançou as mesmas expectativas e deixou o futuro da franquia incerto.

Anos depois, a Activision resolve se aproximar da recém-formada United Front Games com a proposta de um terceiro jogo de True Crime sob o título de Hong Kong. O estúdio assumiu o projeto, que chegou a ser apresentado ao público em 2009. Contudo, não tendo confiança da capacidade do jogo em competir no mercado da época, a Activision optou por cancelá-lo em 2011. Assim, True Crime: Hong Kong ficaria sem a ver a luz do dia… até que a Square Enix resolveu entrar na jogada. A empresa comprou os direitos de publicação, renomeou o jogo para Sleeping Dogs e o lançou em 2012.

E tudo teria terminado bem se não fosse 2013…

Aquele ano marcou o lançamento de um pequenino jogo que causaria um certo rebuliço. Talvez vocês tenham ouvido falar dele. Um negocinho chamado Grand Theft Auto V. Ok, para ser justo, GTA V não atrapalhou tão diretamente Sleeping Dogs assim pois eles têm um ano de distância um do outro. Apesar das críticas positivas que recebeu, as vendas de Sleeping Dogs não chegaram a cumprir as expectativas da Square Enix. Algo que hoje é uma afirmação um tanto vazia já que a empresa parece falar isso para todos os seus lançamentos. Mas eu trago essa informação para mostrar que qualquer perspectiva de um ganho de público a longo prazo para Sleeping Dogs acabou no momento que o mais novo GTA da sua época saiu.

Desde os anos 2000 a franquia GTA é uma titã na mídia dos vídeo games. Se tratando de jogos de mundo aberto, especialmente aqueles que envolvem a temática do crime organizado, ela não é apenas uma referência. GTA é A referência! Seus jogos são um do títulos mais reconhecidos por gamers de diferentes nichos, a franquia angariou uma fanbase insuportável enorme e se tornou um sucesso garantido de vendas. Somente GTA V detém a marca de mais de 200 milhões de unidades vendidas, superada apenas por Minecraft.

Acho que agora fica até mais compreensível porque a Activision não teve muita fé em True Crime: Hong Kong, né? Qualidade à parte, fosse ele marromenos ou uma obra de arte, o jogo não teria cacife para disputar espaço num cenário dominado pela Rockstar. O próprio Streets of L.A já teve essa dificuldade, dado que ele descaradamente aproveitava a onda que GTA III gerou. Porque, para além de ser a principal referência, a Rockstar também detém o que eu chamo de “monopólio criativo”. Mas antes de entrar nesse assunto, vamos comentar brevemente sobre a jogabilidade..

Sleeping Dogs, como podem imaginar, segue uma estrutura de mundo aberto, dando liberdade ao jogador para explorar Hong Kong enquanto completa missões, ora para os Sun On Yee, ora para polícia, ora para NPCs. Dependendo do seu desempenho em cada missão, Shen ganha experiência de três tipos diferentes: Triad, Police e Face. Cada nível conquistado em um desses grupos habilita novas habilidades para o personagem. Além disso, Shen pode roubar e pilotar carros, motos, barcos, nadar, eventualmente utilizar armas. Ao engajar em atividades criminosas, o personagem também pode alertar a polícia que irá persegui-lo até que ele consiga sumir de vista. Existem outras particularidades da jogabilidade que são importantes, contudo eu prefiro discuti-las mais a frente quando for pertinente.

Notem que com exceção do sistema de experiência, eu não citei nada que não fosse muito diferente de mecânicas que GTA implementou previamente nos seus jogos. Sleeping Dogs replica até o mesmo modelo engessado de missões que a Rockstar está presa há mais de décadas. Soa derivativo e em boa parte é mesmo. Diabos, o Shen tem até mesmo um celular como o do Niko Bellic em GTA IV. Contudo eu pergunto, o jogo tinha alguma opção?

Todas essas mecânicas acabaram por se tornar padrões que a comunidade se condicionou a exigir por conta da hegemonia de GTA. Aí entra essa questão do “monopólio criativo”. Eu odeio comparações não porque acho que sejam péssimas ferramentas de análise. No seu devido contexto são até muito úteis. Eu não gosto de comparações porque acredito que elas concedem mais poder para uma marca. Quando um jogo ou uma franquia se tornam muito grandes, eles passam a ditar as regras do que os seus competidores “precisam” fazer.

A gente já viu isso acontecer no gênero de survival horror onde Resident Evil tem o seu império de longa data. Recentemente eu joguei Alone in the Dark: The New Nightmare, cuja franquia já foi um dos grandes nomes do terror nos vídeo game. Inclusive o Alone in the Dark original desempenhou um importante papel de influência no desenvolvimento do primeiro Resident Evil. Enquanto eu jogava The New Nightmare eu me surpreendia – e me decepcionava – com o quanto o jogo teve que sacrificar da sua própria personalidade para se adequar a gameplay mais associada ao survival horror da sua época. Algo parecido aconteceu com Parasite Eve 2 em que a Square Enix, naquela época ainda Square, tentou fazer um meio-termo entre o jogo original e um Resident Evil tradicional.

Isso colocou Sleeping Dogs numa posição bem ingrata, sabendo que precisa apresentar um nível de qualidade que não tem a menor possibilidade de entregar. São poucos os estúdios capazes de fazer o mesmo que a Rockstar faz com GTA, porém não é porque ela tem um talento especial que outras empresas não possuem. A Rockstar tem três fatores ao seu favor: tempo, recursos e marketing. Ela pode se dar o luxo de polir cada detalhe besta que o gamer foi convencido que é fundamental para experiência de jogo e gastar o tempo que for nesse processo. Ela já tem uma marca forte o bastante para manter um hype constante ao seu redor e ter um retorno de investimento garantido.

Logo, Sleeping Dogs acaba sendo obrigado a implementar determinadas mecânicas porque é aquilo que o público espero. Ao mesmo tempo, isso torna as comparações inevitáveis e que ainda farão o jogo ser visto não como Sleeping Dogs, mas sim como o “GTA em Hong Kong”. Mais do que isso, um GTA piorado!

Shen se esconde atrás de uma mesa vermelha, no meio de um grande salão branco, enquanto vários criminoso escondidos por trás de vasos, pilastras e outros móveis atiram contra ele

Olhemos para a polícia, que é uma das mecânicas mais mal implementadas no jogo. Por várias vezes você se questiona se existe algum policial no jogo, dado as poucas vezes que você os encontra patrulhando as ruas. Além disso, nas poucas vezes que você acaba entrando em conflito com os policiais, chega ser ridículo de quão fácil é se livrar dele. Basta você chocar seu carro duas vezes contra qualquer viatura e pronto.

Fora que existem os calcanhares de Aquiles natural de todo jogo de mundo aberto e Sleeping Dogs herda vários deles. Temos uma cidade imensa, contudo apenas em extensão. Para além dos locais abertos, o que você tem a sua disposição são lojas e umas poucas boates. Os únicos edifícios que você é capaz de entrar são seus próprios esconderijos e uns que visivelmente farão parte de alguma missão futura. O mapa também é repleto de colecionáveis que só servem para te distrair que não há nada de muito interessante para explorar naquele mundo. Side quests e desafios se repetem a rodo também, com pouquíssima criatividade posta no seu design. Se contei direito, tem um NPC que aparece umas três ou quatro vezes com o mesmo tipo de missão de fuga.

Podemos nos questionar então se nesse cenário havia alguma chance real para um jogo como Sleeping Dogs e a resposta é um simples… sim! Bastava ver o que uma franquia que se solidificou no Japão e vem conquistando mais espaço no Ocidente, Yakuza. É um jogo de mundo aberto, também centrado na temática de máfia, porém dificilmente seria reduzido a um “GTA no Japão”. E se você ver algum fazendo essa comparação, sinta-se na liberdade de chamá-lo de besta. Yakuza construiu sua assinatura própria ao longo de duas décadas, através dos seus personagens recorrentes, sua jogabilidade, o tom da franquia e suas referências no cinema japonês de filmes de mafiosos.

Sleeping Dogs poderia muito bem ser o início de algo desse tipo. Dá para notar que existia uma perspectiva própria para levar o falecido True Crime por um novo caminho. Ao contrário da maioria dos clones de GTA, o jogo começa enfatizando combate corpo-a-corpo, já que além de um policial infiltrado o Shen é também versado em artes marciais. É um combate bem fluido que lembra a franquia Batman Arkham, permitindo que você altere seus alvos com rapidez, use golpes finalizadores e consiga contra-atacar facilmente se tiver um bom tempo de reação. E quando as armas de fogo entram na equação, o jogo ainda segue por uma linha de filme de ação com o Shen podendo desarmar oponentes saltando de obstáculos e fazer “car hijacks” ao saltar de um veículo para outro.

Temos também alguns brilhos dentro de algumas missões quando o jogo não segue o passo-a-passo da Rockstar de ir do ponto A ao ponto B, bang bang bang, volta do ponto B para o ponto A ou vai para o ponto C. As missões que envolvem investigar um caso para polícia são os momentos em que geralmente o jogador tem algo mais interessante para fazer.

Até narrativamente havia essa oportunidade de fazer algo bem diferente de GTA, ao criar um conflito interno no protagonista. Em várias cutscenes é visível como ter que manter as aparências como um criminoso afeta o Shen mentalmente. O problema é que esse conflito permanece apenas em momentos específicos da narrativa e nunca afeta a jogabilidade. Salvo diminuir os pontos de experiências que você ganha nas missões, machucar os civis ou matar brutalmente os inimigos – desde empalações até enfiar a cabeça deles em hélices – não cria qualquer repercussão negativa para o jogador. A ideia de um policial infiltrado existe na história de Sleeping Dogs, mas na prática você só está jogando com um protagonista de GTA que sabe artes marciais.

Não é à toa que, para mim, a melhor parte do jogo não estava nem na campanha principal e sim numa das suas DLCs. Zodiac Tournament é uma expansão que habilita uma nova missão na qual o Shen vai para uma ilha participar de um torneio de luta promovido por um milionário excêntrico. É um arco bem linear e que foca 100% no combate, também adotando um tom diferente do resto do jogo ao se inspirar nos filmes de artes marciais da década de 70. É impossível não pensar em Operação Dragão do grande Bruce Lee e Sleeping Dogs nem disfarça que essa é a principal referência da DLC.

Mas é isso, apenas uma DLC. O restante do jogo continua sendo uma tentativa de replicar a fórmula de GTA num novo contexto. Tanto que assim que você habilita as armas de fogo, Sleeping Dogs passa a priorizar tiroteios nas suas missões principais e até em alguns dos desafios como tomar um dos pontos de tráfico das outras tríades. É um jogo que não quer ser apenas mais um clone de GTA, porém não consegue pisar muito fora da sua sombra.

Sleeping Dogs pode até ser de fato um jogo subestimado. Pessoalmente eu me diverti mais com ele do que com outros GTAs porque o tema de artes marciais conversa muito mais comigo do que tirinho genérico. Contudo, também não consigo negar que no final do dia é só mais outro jogo de mundo aberto repetindo os mesmos erros dos títulos passados (e incluo nessa lista os da própria Rockstar).


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