Para comemorar o ano novo, minha família decidiu alugar um sítio na cidade ao lado. Passamos uns seis meses e pouco juntando dinheiro para o aluguel e assim conseguimos ficar a última semana de 2022 afastados do caos urbano. Sabendo que durante aqueles dias eu não teria muito o que fazer lá a não ser jogar conversa fora, lavar louça e vigiar minha cachorra briguenta, eu decidi levar algo para assistir. Então coloquei no meu pen-drive alguns animês de robôs gigantes que eu estava interessado em assistir como Mazinger Edition Z: The Impact! (que aliás tem texto aqui no blog) e umas OVAs de Mobile Suit Gundam.

Ícone dos robôs gigantes: Mazinger Z

Pois bem, depois de chegar no sítio, desfazer as malas e tomar café eu dei uma olhada nas TVs. Tinha 4 aparelhos ao todo e conferir quais tinham entrada USB. Umas estava embutida na parede então não tinha como usar a entrada. Dos 3 que sobraram apenas um reproduzia vídeos, o da cozinha que era integrada com uma segunda sala. Como não havia ninguém usando essa TV, eu conectei meu pen-drive, abaixei o volume para não atrapalhar as conversas pós-café e dei play num episódio de Mazinger Edition Z.

Tudo ia bem até que uma das minhas tias finalmente olhar para TV e ver o que eu estava assistindo. Segundos depois veio uma pergunta direcionada a minha pessoa: quantos anos você tem?

Naquele momento eu suspirei porque antes de responder eu já tinha toda a conversa se desenrolando na minha cabeça. Parte da conversa era fácil de imaginar porque eu já havia tido uma anos atrás, só que com jogos, com a minha prima. Depois de eu responder, veio a segunda pergunta que era alguém da minha idade, 29, “não tinha vergonha de ver essas bobeiras?”.

Ao contrário da reação que eu tive anos atrás, dessa vez eu apenas respondi que não tinha vergonha alguma e voltei a assistir meu desenho de robôs gigantes. Nos dias que se seguiram eu continuei fazem a mesma coisa sempre que a TV estava disponível. Como a cozinha é aquele espaço compartilhado, eu me limitava a ver um ou dois episódios no máximo. Depois deixava ela disponível para os meus tios fingirem que estavam assistindo jornal e reprise de novela da Globo. Meu primo então me avisou que as outras TVs estavam conectadas a Chromecasts. Daí conseguimos fazer uma gambiarra com o browser do Chrome e o notebook da minha mãe para eu assistir Mazinger Z nos outros cômodos.

De qualquer forma o assunto “Belmonteiro assiste desenhos de robôs gigantes” ainda voltou a se repetir algumas poucas vezes mais durante cafés e almoços. Os comentários em si não me afetam, embora admito que o tom de deboche nas falas é bem irritante às vezes. Não minto que já chegaram a me afetar sim. Coisa de uns dez anos trás quando eu buscava validação da família e/ou colegas. Mas hoje eu já sou bem resolvido com isso e não carrego qualquer vergonha de assistir e gostar imensamente de desenhos em geral. Com robôs gigantes ou não!

Pois bem, então qual é a razão do texto? É que numa dessas vezes que o assunto voltou à tona num dos cafés eu resolvi dar uma alfinetada na minha tia só para ver qual seria a reação dela. Quando ela mais uma vez tentou julgar o fato de eu assistir desenhos eu falei: e você assiste doramas, e aí?

Pode até parecer, contudo eu juro que não estava tentando ofendê-la. Até porque eu não tenho nada contra doramas tanto quanto eu não tenho contra os novelas que ela vive assistindo. Tirando A Travessia porque, por favor, né? Eu quero mais é que as pessoas busquem produções além das americanas, tanto é que sempre que tenho oportunidade eu tento recomendar um filme estrangeiro não-estadounidense ou britânico. Ainda sinto que existe um preconceito, pelo menos entre pessoas mais velhas, com obras de outros países sobretudo os asiáticos.

Eu só queria ver o que ela iria falar já que a família ouviu. Em sua defesa o que ela disse foi que tinha visto apenas uma. Estava claro pela cara dela que a minha tia ficou constrangida por ter recebido esse exposed e eu até me arrependi um pouco da alfinetada porque sei como é estar do outro lado. E isso que me levou a uma reflexão.

Eu sei que ela gostou do dorama, porque eu estava na casa dela no dia que ela estava assistindo a série, tanto quanto eu gosto dos meus desenhos. A única diferença entre mim e a minha tia é que eu não fico com vergonha de admitir que os assisto. Então eu fiquei tentando entender a raiz desse constrangimento, já que eu mesmo o senti durante um tempo na minha vida. Aqui eu entro num campo de achismo, portanto meu chute vai ser nas diferenças de geração.

Minha tia tem mais que o dobro da minha idade. Nasceu numa época muito diferente da que eu nasci. Econômica, social e culturalmente! Qualquer indicador que você preferir. Mas eu vou focar apenas nos dois últimos aspectos.

Minha tia viveu a transição da adolescência para vida adulta numa época em que a sociedade esperava que você tivesse tudo organizado aos seus vinte e tantos anos. Educação, moradia própria, uma carreira, estabilidade financeira, casamento e filhos. Hoje a gente olha pra essa e lista e pensa: sendo otimista, acho que realizo dois desses aí! Mas enfim, considerando ainda que ela é mulher, o que já põe uma cobrança ainda maior sobre as costas dela, era esperado que ela amadurecesse muito rápido.

E aí que entra o xis da questão.

Amadurecer é um conceito que como tudo na história humana vai se alterando ao longo das suas épocas e culturas. Mas se formos tentar ter algum aspecto mais universal, algo que eu vejo sendo muito reproduzido nas redes sociais por algumas pessoas é que ser adulto envolve falar as ditas Coisas de Adulto™️. Política, economia, trabalho, notícias do mundo, etc; esses são alguns dos tópicos que se espera que um adulto fale e não sobre qual das Três Espiãs Demais você queria ser (no meu caso é a Sam).

Então para minha tia em que cresceu numa época que isso era muito mais reforçado do que hoje, é um tanto estranho para ela me ver assistindo um desenho japonês quando na minha idade ela já estava casada e no seu segundo filho. É um choque de geração e diria também que cultural já que desenhos japoneses, para quem não cresceu com eles, ainda é relativamente estranho para algumas pessoas. Talvez até desenhos como todo.

E esse é outro elemento que eu acho importante porque acho que tem muito a ver com a história da produção cultural no Brasil. Apesar de ser riquíssima – nós temos um dos primeiros filmes experimentais da América Latina no nosso portfólio – deixou a desejar em alguns pontos. E animação é uma delas. Vamos ser sincero, se tirar Turma da Mônica que outro desenho brasileiro o cidadão médio consegue citar? Sendo muito otimista talvez alguém conheça Irmão do Jorel. Desenhos estão presentes na TV há décadas com os curtas de Tom & Jerry, Looney Tunes, Pica-Pau, etc. Mas em termos de obras produzidas aqui, o país ainda engatinha mesmo com tanta gente talentosa disponível por aí.

Aí você compara com o Japão. Robôs gigantes (e os menorzinhos também) não são nenhuma novidade lá. A primeira adaptação de Mazinger Z, por exemplo, já estava nas telas das TV desde o início dos anos 70. E ele nem foi o primeiro. Go Nagai, autor do mangá original, cresceu assistindo as adaptações de Astro Boy e Tetsujin 28-go que foram ao ar pela primeira vez em 1963. Desenhos, séries e filmes animados estão integrados a cultura japonesa há anos e por isso lá é tão normal você ver adultos não apenas consumindo, mas como também carreiras de longa data nesse tipo de mídia.

Versão de 1963 do ícone dos robôs gigantes, Mazinger Z

Saindo um pouco dos desenhos, quando séries como Spectreman – tá, fui um pouco longe nessa! Eu não conheço tantos robôs gigantes assim – passaram a circular nos meados anos 80, a minha tia estava grávida da primeira filha dela. Quando o Brasil chegou a ter o magnífico TV Colosso – nada a ver com robôs gigantes, mas precisa ser citado – ela já estava criando o meu primo. Então acho que, e reforço novamente que é só um achismo meu, na cabeça dela essas não eram o tipo de mídia que ela deveria assistir porque era o que seus filhos assistiam. Ela tinha que ver as Coisas de Adulto™️.

Mas obviamente isso não é um consenso e existem muitos casos que contrariam essa visão. Vou focar nas minhas evidências anedóticas materna e paterna. Minha mãe, que é apenas alguns anos mais nova que minha tia, ao chegar nos seus cinquenta e tantos anos percebeu que ela adora filmes de super-heróis. A ponto que hoje ela já está atualizada com o MCU e eu só fui ver Doutor Estranho: Multiverso da Loucura porque foi dirigido pelo Sam Raimi. Sem contar que lembro bem como ela adorava assistir Caverna do Dragão com ou sem minha presença quando eu era criança. E do outro lado do meu DNA, tem o meu pai cuja uma das suas grandes alegrias é assistir as reprises do Pica-Pau que ele tinha gravadas numa penca de DVDs que ele tem na casa dele.

Ambos adultos e que estão felizes da vida em assistir coisas que não foram feitas com eles como público alvo.

E outro evidência, anedótica e irônica, vem dessa minha própria tia que fez o comentário sobre os desenhos japoneses. De longa data os gostos dela pra filmes, séries, novelas, etc; se limitavam a dramas familiares e de época, romances e histórias de guerra. A ficção mais puxada pra fantasia medieval ou então a ficção científica, no geral, ela desprezava com aquela argumentação de velho “é tudo mentirada”. E terror então nem se fala. Mas adivinha qual se tornou a série favorita dela?

Pôster da primeira temporada de The Walking Dead

E quando eu digo favorita, é favorita MESMO. A ponto que ela já assistiu: Fear the Walking Dead, World Beyond, Tales of the Walking Dead e está ansiosa para as três novas séries que estão para ser lançadas. Se tornou tão fã que meses atrás ela me perguntou sobre as HQs originais e se eu sabia de um site em que ela podia lê-las, um formato de mídia que assim como os desenhos japoneses que eu tão alegremente assisto ela achava que só deveriam ser consumidos por crianças.

Por isso, pra mim, a verdadeira bobeira é querer se limitar as coisas que você ACHA que deveria estar consumindo e deixar de experimentar o tanto que o mundo tem a oferecer em formas de entretenimento. Eu nunca fui chegado ao gênero dos mechas, ou robôs gigantes como eu fico chamando, e de alguns meses atrás para cá eu estou me tornando um fã de Mobile Suit Gundam. Vergonha pra mim é deixar de ser feliz porque está com medo do que os outros vão pensar de você.

Mas no final das contas há esperança! Quem sabe um dia pessoas como a minha tia percebam que não tem motivo para ter vergonha de gostar de desenhos depois de adulto. Ou qualquer outro formato de mídia que te interessa. Se algo te faz feliz e não prejudica ninguém a sua volta, vai fundo. Torço que pouco a pouco elas vão quebrando esse preconceito que acabou sendo instalado na cabeças delas por conta da época ou então meio em que cresceram.

Só não assiste A Travessia, pelo amor de Deus. Tudo tem limite!


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2 thoughts on “Um fim de ano com a família e robôs gigantes”
  1. Excelente texto, Belmonteiro! Já fui muito criticado por ler quadrinhos de super heróis, desde os 13 ou 14 anos – o que é engraçado, já que essa é justamente a faixa etária para a qual esse tipo de mídia normalmente é produzida. O que eu observava muito, na época, é que muitos daqueles ao meu redor tentavam desesperadamente crescer e parecer adultos, o que, paradoxalmente, os fazia parecer mais infantis. Com isso, eles menosprezavam o que consideravam “coisa de criança”, mas não amadureciam em responsabilidade ou em autonomia – o que, modéstia a parte, eu fazia. No final das contas, o “infantil” era mais responsável e estudava com muito mais afinco que os “adultos” de 14 anos 🙂

    1. Aqui eu via muito a acontecer com vídeo games, desenhos não tanto porque todo mundo adorava Dragon Ball Z na Globo, que tinha um pessoal que te olhava torto por você gostar. Ironicamente isso acabou mudando quando esse pessoal ficou mais velho e se viu curtindo jogos também com o boom que foi o PS2. Quadrinhos que eu queria ver se mudou um pouco essa percepção depois que os filmes da Marvel se tornaram tão populares

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