O Mal Que Nos Habita, filme terror argentino fenomenal num mundo em que casos de possessão se tornaram essencialmente uma epidemia
O Mal Que Nos Habita, 2023

Apenas quatro anos nos separam de 2020, porém a sensação que eu tenho é de ser quase uma outra vida. Muitas coisas aconteceram nesse intervalo, e não das mais positivas. Dentre elas esteve uma das piores pandemias da história da humanidade: a COVID-19. Não apenas pela quantidade de mortos, que hoje soma mais de 7 milhões confirmados, mas também pela forma como impactou o mundo que não se via há gerações.

Quando eu estava na metade do Ensino Médio passamos pelo evento da gripe suína. E eu uso o verbo ‘passar’ porque essa foi a minha experiência, dos meus amigos e dos meus familiares naquele período. A gripe suína veio, a gripe suína foi embora e, para nós, foi como se a gripe suína nem tivesse ocorrido. O único contato que tivemos foi através das notícias nos jornais. O mesmo não pode ser dito da COVID-19, não é mesmo? Porque nós vivemos a COVID-19! Todos os santos dias por mais de dois anos.

Ali, quando falo ‘nós’, já não falo no mesmo sentido de eu, meus amigos e familiares. Ali eu falo do mundo. Sociedades racharam. Economias quebraram. A COVID-19 foi pesadelo que parecia não ter fim que trouxe à tona um sentimento de desilusão com o futuro que já vinha se formando há um bom tempo. Ainda hoje estamos lidando com as sequelas – físicas, psicológicas e sociais – oriundas da pandemia. Então é mais do que óbvio que a arte também iria explorar toda a dor, todo o desespero, toda a desesperança que enfrentamos coletivamente. Tenho para mim que, até o momento, nenhuma obra conseguiu capturar melhor esse sentimento pós COVID-19 do que O Mal Que Nos Habita (Cuando acecha la maldad, 2023).

O filme é uma coprodução da Shudder, um serviço de streaming americano que tem um grande foco em terror, e dois estúdios argentinos, a Aramos Cine e a Machaco Films. A direção ficou nas mãos do diretor argentino Demián Rugna. Coincidentemente já cheguei a ter contato pelo seu filme Aterrorizados (Aterrados, 2018), um bom terror sobrenatural mas que não chega aos pés da experiência visceral de O Mal Que Nos Habita. Geralmente eu trago essas informações apenas como curiosidade, contudo nesse caso particular o fato de ser uma produção argentina é integral para a história.

O Mal Que Nos Habita se ambienta numa comunidade isolada e decadente do interior argentino. Assim, logo de início, já temos uma certa melancolia embrenhando a atmosfera do filme. Isso reflete o espírito de uma população aflita que se vê há mais de década assombrado por uma crise econômica que foi piorada pela pandemia. Portanto é fácil identificar e se identificar com a desilusão que boa parte dos personagens apresentam. Esse pessimismo com o futuro, o distante e próximo, é algo que eu vejo dominar tanto a minha geração, a anterior e também as seguintes.

A trama centra-se em dois irmãos, Pedro e Jaime, que uma noite escutam tiros ao redor da fazenda da família. Na manhã seguinte eles encontram a metade do corpo de um homem na floresta e resolvem investigar. Os dois chegam a um casebre onde vivem uma mulher e seus dois filhos. Lá dentro eles descobrem que o mais velho, Uriel, se tornou um Apodrecido. Depois de recorrer às autoridades legais para que alguma providência seja tomada, coisa que não ocorre, Pedro e Jaime vão até Ruiz, dono das terras em que a família vive. Então os três decidem resolver a situação por si mesmos, uma escolha que acaba por condenar todo o povoado.

Se eu joguei algumas informações importantes casualmente sem dar muitas explicações é para ilustrar como o filme trata desses detalhes dentro da sua narrativa. O famigerado lore é jogado de forma bem natural, o que nos causa um certo estranhamento a princípio. Mas isso não é uma tentativa de quebrar as convenções do gênero de terror que geralmente constrói o mistério passo a passo. É algo maior do que apenas quebrar os moldes. O Mal Que Nos Habita vai por esse caminho para nos colocar na mesma perspectiva que os personagens tem naquele universo onde o sobrenatural, por mais terrível que seja, já se tornou uma parte normal daquele universo.

Quando você assiste uma certa quantidade de filmes de terror, fica inevitável tentar adivinhar o que vai acontecer com base nas convenções e clichês com os quais você se familiarizou. O Mal Que Nos Habita quebra essa expectativa ao jogar já nos seus instantes iniciais boa do que, via de regra, aconteceria ali pela metade do filme. Por exemplo, o Apodrecido seria algo que esperávamos surgir ali pelo segundo ato, ou pelo menos no final do primeiro. Aqui ele vem antes dos primeiros dez minutos.

Ah sim, mas o que diabos é esse tal de Apodrecido?

Apodrecidos são pessoas possuídas por algum demônio. Quando isso ocorre, o corpo vai inchando e se cobrindo de pústulas. O Apodrecido se torna um receptáculo para o nascimento desse demônio no nosso mundo. Com o tempo a possessão ganha mais força e animais e algumas pessoas próximas passam a sofrer influência do demônio. Inclusive os mortos!

Algo curioso é que quando Pedro e Jaime encontram o Uriel já num estado avançado de Apodrecimento eles ficam devidamente enojados. Porém eles tem a reação que tomaríamos por mais lógica: eles não ficam horrorizados. Porque, como eu falei, a ideia de demônios possuindo o corpo de pessoas já virou um acontecimento mundano em O Mal Que Nos Habita. Terrível, mas mundano.

Tanto Pedro quanto Jaime já tinham ouvido todas as histórias sobre os Apodrecidos e por isso eles entendem o que deve ser feito. Existem um conjunto de regras como, por exemplo, jamais matar o Apodrecido com uma arma de fogo. Isso faz com que a possessão fique mais forte e se espalhe, infectando animais, os mortos e então os vivos. Quase como um vírus. A única solução é recorrer a um Limpador, uma pessoa que conhece a forma correta de eliminar o hospedeiro e impedir o nascimento do demônio sem que o “vírus” seja transmitido.

Pedro e Jaime então concluem que o homem que encontraram morto na floresta devia ser o Limpador que a família chamou. Então o irmão mais novo de Uriel revela que eles já haviam reportado para as autoridades há mais de um ano e só agora que tiveram algum retorno. Os irmãos correm para a polícia para saber porque nada foi feito e aqui rola outra quebra de expectativa. O mais natural de se supor é que os policiais irão achar que os personagens estão doidos, porém não é exatamente isso que fazem. Eles até tentam descredibilizar o relato de Pedro e Jaime, mas não porque não acreditam no Apodrecido e sim porque não querem ter que lidar com esse problema.

Os policiais falam com uma malemolência de quem não está querendo sarna pra se coçar. Eles dizem que irão acionar a Saúde Pública e mandam os irmãos deixarem a cidade enquanto isso. Sem outra escolha, os irmãos vão até Ruiz que é o dono das terras onde todos vivem. Ao saber que o Apodrecido já está lá há um ano e que as autoridades estão fazendo vista-grossa, ele fica irritado. Ruiz acredita que o Apodrecido foi plantado ali pelo próprio Estado para ficar com as terras dele e assim ele vai ficando paranoico.

Naquele mesma noite, durante um jantar com a esposa grávida, Ruiz tem um acesso de raiva. Ele vai até o casebre e quase mata Uriel com seu rifle. O demônio fala através de Uriel, tentando Ruiz a disparar a arma. Apesar disso, ele consegue resistir e na manhã seguinte convence Pedro e Jaime a seguirem com um plano alternativo. Os três botam o Apodrecido na caçamba da caminhonete de Ruiz e dirigem para longe para abandoná-lo o corpo na cidade vizinha.

Porém no meio da viagem o corpo de Uriel cai da caminhonete e desaparece. Ruiz também lava suas mãos e fala para Pedro e Jaime voltarem para a casa e dar o problema como resolvido. Passado um dia, ele descobre que uma das suas cabras também foi possuída. Apesar da esposa gritar para que não atire no animal já que aquilo só pioria a situação, Ruiz a ignora e puxa o gatilho. Então que a mulher o acerta com um machado e se mata logo em seguida!

É uma cena não tão gráfica, mas brutal pelo quão instantânea ela é. Contudo seu impacto não está exatamente no choque da morte e sim pela ambiguidade da cena. Podemos interpretar de dois modos: Ruiz ter desobedecido uma das regras deu mais força ao demônio que conseguiu possuir sua esposa de imediato ou ela mesmo matou os dois no desesperado, temendo o que viria pela frente. Ambas as leituras cabem perfeitamente dentro da atmosfera que o filme construiu até esse momento.

Essa cena também continua um tema que irá se repetir ao longo do filme todo, mas antes de explorar mais esse assunto eu gostaria de voltar aos nossos protagonistas. Temendo toda a desgraça que está prestes a recair sob o povoado, Pedro convence Jaime que a melhor opção deles é abandonar a fazenda e fugir para outra cidade. Então enquanto Jaime vai buscar a mãe deles, Pedro vai para a zona residencial buscar seus dois filhos – Jair, o mais velho e autista, e Santino, o mais novo – na casa da sua ex-esposa Sabrina.

Além de uma acalorada discussão com Sabrina, que acha que o ex-marido está bêbado e veio criar confusão na casa dela, um segundo problema acontece. Até então Pedro não tinha trocado as roupas que ele usou na manhã em que mexeram com Uriel. Inclusive o estopim para o bate-boca com Sabrina é porque ele simplesmente entra na casa dela e começa a se despir no meio da casa gritando para que lhe tragam roupas novas. Enquanto Sabrina, o seu atual marido e Pedro discutem, o cachorro da família fareja e lambe uma gosma que ele encontra nas roupas. Esse pequeno erro nos leva a uma das cenas que é meu pesadelo no dia-a-dia e também inicia uma sequência de eventos que terminará na morte de vários personagens.

Um tempo atrás, antes de eu começar a escrever o texto, meu amigo PChost do Fora do Controle e que me deve um certo episódio (nenhuma pressão, PC!) – comentou que tinha acabado de assistir O Mal Que nos Habita e me perguntou se eu não fiquei frustrado com os personagens durante o filme. Ele não falou isso na forma de uma crítica, pelo contrário, o PC estava reproduzindo a exata reação que a experiência que essa história quer causar. Porque todos os conflitos, com exceção da possessão inicial de Uriel, são fruto de algum personagem agindo com imprudência ou tomando uma escolha errada em meio ao desespero.

Vemos muito isso em Pedro, que de longe é quem toma as piores decisões consecutivamente. Ele quem decide ajudar Ruiz a abandonar Uriel em outro canto, ele que vai para casa da esposa com as roupas infectadas que ele já deveria ter trocado, ele – assim como Jaime – se recusa a ver os sintomas de possessão em Jair, justificando que é o autismo do garoto, até mesmo quando Mirtha, um Limpadora aposentada amiga de seu irmão, lhe diz isso. Sem contar no final, fiquem tranquilos que não irei spoilar, ele faz uma coisa que certamente levará alguns de vocês a sacudir a TV gritando “o que você está fazendo, seu imbecil?!”.

Tais ações não são nenhum defeito de O Mal Que Nos Habita. Então para aquela turminha que adora caçar furos de roteiro para se sentir mais esperto que a mídia, já adianto que qualquer análise da falta de lógica nas escolhas dos personagens é só atestado de não conseguir interpretar uma história para além das informações que ela te apresenta. Agora sim eu acho que dá para eu traçar um paralelo mais forte com o período em que tivemos que conviver com a COVID-19.

Lembrem-se de toda aquela histeria coletiva nas primeiras semanas de pandemia em que as pessoas correram até os supermercados esgotando os estoques de papel higiênico. Depois pensem naqueles que ativamente ignoravam o isolamento social e outras medidas de precaução recomendadas pelo Ministério da Saúde e cientistas. Também recordem-se de quando não havia vacina, teve gente tomando cloroquina achando que ela combatia o vírus. Até vermífugo algumas pessoas tomaram. Muitas delas incentivadas, ironicamente, por um verme que chegou à presidência.

Um dos pontos centrais de O Mal Que Nos Habita é mostrar como que em situações desesperadoras nós tendemos a abandonar a racionalidade e agir por pura emoção. E vamos lembrar que o medo é uma emoção, uma fortíssima que influencia bastante nossas ações. Praticamente toda escolha tomada pelos personagens centrais da trama é em menor e maior extensão afetada pelo desespero que os consome. Isso contrasta com as personagens femininas que servem como contraponto a passionalidade dos homens nesse contexto.

Pedro completamente desolado ao final de O Mal Que Nos Habita

Um comentário que peguei na internet foi de um usuário dizendo como ele achou que o filme falava também sobre o machismo, já que todas as mulheres de O Mal Que Nos Habita acabam sofrendo um cruel destino por conta das atitudes do elenco masculino. Isso não se manifesta apenas como no caso mais extremo da esposa de Ruiz, pois essas personagens também têm suas opiniões constantemente ignoradas pelos homens. Nem mesmo a mãe dos protagonistas escapa de receber um cala boca quando ela está tentando entreter os netos durante a fuga deles.

Porém eu não acho que machismo seja um tema de fato do filme, apesar de compreender a possibilidade dessa leitura. Eu acho que é mais uma consequência pelo fato das mulheres aqui representarem a “voz da razão”. Sendo assim, elas acabam sendo fagocitadas, metafórica e até literalmente, pelas ações inconsequentes e desesperadas das suas contrapartes masculinas.

O Mal Que Nos Habita é certamente um dos grandes filmes, não apenas de terror, de 2023 e é um que eu acho que vale muito a pena conferir. O cinema de horror nas terras latinas pode sempre contar com ajuda de um boca-a-boca digital já que o gênero ainda é muito monopolizado pelas referências norte-americanas. Como eu disse, é uma das obras que melhor captura o sentimento pós-pandemia e ele te deixa com uma agonia que te acompanha para muito além das horas que você passa assistindo-o. E lembrem-se sempre: NÃO ATIRE NA DROGA DO POSSUÍDO, PELO AMOR DE DEUS!!!


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