Eu tenho péssimos hábitos. Deixo para fazer as coisas na última hora, como biscoito compulsivamente, vou dormir muito tarde e, por fim, entro em subreddits gamers. Por conta disso, volta e meia eu esbarro em alguma publicação que me faz sentir sentimentos e reagir reações. Nem sempre muito positivas!
Recentemente, cometi esse erro de novo. Navegando entre alguns posts genéricos, umas discussões interessantes e uma tier list que não vale a pena prestar atenção (se é que existe alguma que vale), eu encontrei uma postagem em que o OP perguntava o que as pessoas gostariam de ver em jogos nacionais. Naquele momento eu simplesmente soube. Eu tinha a absoluta certeza que se eu abrisse aquela publicação e fosse para os comentários eu acabaria irritado porque lá encontraria meu velho inimigo: o vira-latismo gamer.
Então o que eu fiz? EU LI OS COMENTÁRIOS!
Estou ciente que eu sou a razão das minhas próprias infelicidades.
O complexo de vira-lata é uma expressão que o dramaturgo Nelson Rodrigues cunhou, descrevendo um sentimento de inferioridade dos brasileiros em relação a outros países. Ele teria observado esse “trauma” com a derrota da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1950, porém o conceito não se limita apenas aos campos de futebol. Nas palavras do próprio Nelson:
Por “complexo de vira-lata” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima.
Então esse tal vira-latismo se manifesta em vários outros setores da vida cotidiana brasileira, incluindo a nossa cultura. No cinema é algo que a gente consegue observar com facilidade. Quem aqui nunca ouviu a frase “o Brasil só faz filme ruim” ou alguma das suas variações? Geralmente acompanhada de um comentário citando os mesmos três exemplos como os únicos bons filmes do nosso cinema. Eu nem preciso citá-los porque vocês com certeza sabem de quais eu falo.
É óbvio que isso é fruto de uma grande ignorância, tanto no sentido de falta de conhecimento do nosso cinema quanto no sentido de burrice mesmo. Tem até o agravante desse preconceito com os filmes nacionais ser alimentado por questões ideológicas, mas no geral eu acho que é só falta de repertório cultural mesmo.
Eu, que não sou um grande conhecedor do cinema nacional, consigo citar dúzias de ótimos exemplos. Filme internacionalmente premiado? O Pagador de Promessa. Filme mudo experimental? Limite. Comédia? Saneamento Básico: O Filme. Comédia e drama? O Palhaço. Drama teen com temática LGBTQI+? Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. Suspense? O Lobo Atrás da Porta. Filme de ação? Dois Coelhos. Filme infantil? Castelo Rá-Tim-Bum: O Filme. Animação que não seja Turma da Mônica? O Menino e o Mundo. O cinema brasileiro tem de tudo para quem estiver disposto a conhecê-lo, entretanto muitos preferem dar continuidade a ideia babaca de menosprezar nossa cultura que ignorância sob essa pele de vira-lata.
Essa mesma lógica aparece no público dos vídeo games, dando luz ao vira-latismo gamer do título. O comentário mais votado daquela publicação que citei no início chega falando que o que falta para o cenário nacional *sigh* é jogo bom. Isso deveria ser o bastante para ignorá-lo de imediato e se eu fosse uma pessoa sensata eu o faria, mas infelizmente eu não sou uma pessoa sensata. Então, armado de toda minha insensatez, continuei lendo. O usuário completou dizendo que os jogos não deveriam ter foco em temas brasileiros porque “ninguém além da gente se importa com isso” e isso me fez rir por três motivos.
O primeiro foi porque um mês atrás o desenvolvedor de Ultrakill endossou no seu perfil do Twitter o indie brasileiro AVIÃOZINHO DO TRÁFICO 3:ABRI UM PORTAL PRO INFERNO NA FAVELA TENTANDO REVIVER MIT AIA E PRECISO FECHAR. Mas como isso pode ser descartado como evidência anedótica, deixa que eu mesmo irei relevar.
Já o segundo motivo é porque essa ideia que os jogos brasileiros focam demais em temas nacionais parece o equivalente gamer daqueles que acham que os filmes brasileiros ou falam de favela/pobreza ou são comédias pastelonas. Mais uma vez, isso é apenas resultado de falta de repertório movida a generalizações baratas. Portanto nem me surpreende que o exemplo que o cara utilizou foi o mais óbvio 171, jogo este que recebe a alcunha de “GTA brasileiro”. Se eu quisesse até poderia ajudá-lo a fortalecer o argumento dele citando Tropicalia, Dandara, Arida: Backland’s Awakening ou Zueirama só para não parecer que ele teceu seu comentário com base num único jogo, todavia não o farei. Sabem por quê?
Porque eu prefiro usar meu tempo para citar títulos como: Dodgeball Academia, a franquia de Momodora, Vila do Nevoeiro, Dininho Adventures, Pocket Dimensional Clash 2, REDO!, Kaze and the Wild Masks, Fish Person Shooter, os quatro jogos da JoyMasher – que já falei aqui, aqui e aqui – Unsighted, 1-Bit Explorer, Raccoo Venture, Knights of Pen & Paper, Metamorfose S, Mullet MadJack, Horizon Chase, A Lenda do Herói, Slipstream, Chroma Squad, Maiden Cops, Surrealidade, etc.
Vejam só que coisa curiosa, dúzias de jogos brasileiros que não tem esses “temas brasileiros” que supostamente o cenário nacional foca tanto. É quase como se as pessoas não soubessem do que estão falando e apenas reproduzindo um discurso que ouviram de fulaninhos na internet, né? Mas com certeza não é isso, claro que o gamer brasileiro conhece profundamente o cenário nacional e não apenas aqueles dois ou três títulos que ganham um destaque maior na mídia.
Deixando o deboche de lado, a terceira e última razão da minha risada é um gigantesco “e qual o problema, porra?”. É muito ridículo achar que um jogo refletir elementos da cultura do seu país é algum demérito. Faz parecer que os jogos lá de fora não fazem a mesma coisa. Se Story of Seasons nasceu com a influência da cultura rural japonesa e virou uma série amada por um nicho de jogadores em vários lugares do mundo, então por que não podemos ter o nosso Gaucho and the Grassland? A franquia de GTA está há anos satirizando a cultura americana, logo por que Punhos de Repúdio não deveria fazer o mesmo com a nossa política?
Nesse último caso a gente sabe o porquê, mas deixa quieto!
É tudo pura bobagem do vira-latismo gamer que acha que fora do AAA gringo não existe salvação. Pois aí tem outro detalhe que eu esqueci de mencionar. Muito desse sentimento de vira-lata brasileiro se correlaciona a um espírito de ser capacho para estrangeiro. Naquela mesma publicação teve outros exemplos. Um usuário falou como poderiam pegar Ruff Ghanor – campanha de RPG que surgiu no Jovem Nerd e virou uma série de livros, livro-jogo de RPG e recentemente um deckbuilder – e fazer um jogo igual God of War, enquanto um terceiro falava que os desenvolvedores brasileiros deveriam se inspirar na mitologia nórdica. Ou seja, jogos brasileiros para serem bons (como se já não fossem) eles precisam ser iguais aos jogos de fora, seja em escopo ou temática.
O Nelson Rodrigues estava certo mesmo, o brasileiro – e por extensão o gamer brasileiro – é um puta narciso às avessas. Não, na verdade eu acho que é até um pouquinho pior. O Narciso da lenda pelo menos tinha total consciência da sua beleza. O vira-latismo gamer nem mesmo se presta a conhecer de verdade os jogos que ele julga não estar ao nível dos seus pares antes de cuspir neles.
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